Pensar primeiro e dançar depois
Vortex Temporum de Anne Teresa de Keersmaeker revela um método de pesquisa aprimorado, concisão e depuração.
Como expor o metabolismo comum à dança e à música? Esta tem sido, desde as obras iniciais dos anos 1980, a principal inquietação criativa de Anne Teresa de Keersmaeker (Bélgica, 1960). Dar forma à experiência de ouvir - sejam sons naturais, a magnitude da música antiga, a atonalidade ou o minimalismo contemporâneo, as previsibilidades da pop, os intrincados do jazz ou do raga indiano, ou mesmo o silêncio – é o seu lugar autoral no panorama da dança europeia.
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Como expor o metabolismo comum à dança e à música? Esta tem sido, desde as obras iniciais dos anos 1980, a principal inquietação criativa de Anne Teresa de Keersmaeker (Bélgica, 1960). Dar forma à experiência de ouvir - sejam sons naturais, a magnitude da música antiga, a atonalidade ou o minimalismo contemporâneo, as previsibilidades da pop, os intrincados do jazz ou do raga indiano, ou mesmo o silêncio – é o seu lugar autoral no panorama da dança europeia.
Vortex Temporum é mais uma variação sobre o tema. O que nos traz, então, a esta coreografia para a difícil partitura homónima de Gérard Grisey (França, 1946-1998), figura tutelar da música espectral, importante escola de composição da última metade do século XX?
Keersmaeker não é avessa a reciclar estratégias. Reconhecemos, na relação fusional entre corpos e música, En Atendant e Cesena (2010-2011; Bienal Artista na Cidade, 2012); e, nas três secções que compõem a peça, estrutura idêntica a 3Abschied (2010; Fundação Calouste Gulbenkian, 2012) ou a Partita 2 (2013; Teatro Maria Matos, 2014): a abrir, o colectivo musical Ictus, ao vivo; segue-se uma silenciosa sequência de dança, versão quase palpável da música; a concluir, músicos e bailarinos em cena, num formato mais convencional.
Subtis efeitos de luz da grelha superior dirigem-nos para as zonas de acção na sóbria caixa negra. Espirais traçadas a giz no chão parecem replicar os ciclos de expansão/retracção da partitura. De calças e camisetas escuras (bailarinos) e roupa casual de tons neutros (instrumentistas), todos circulam em cena (piano de cauda incluído), numa declaração subliminar de que não há hegemonia de uns sobre outros.
Mas não se trata aqui colocar a dança em sincronia simples com a música. O movimento dos sete bailarinos resulta de um estudo aturado das interpretações dos seis instrumentistas, e da relação física com o seu instrumento: as qualidades percussivas do piano (dois bailarinos a fazer o papel de cada uma das mãos do pianista), as fricções do arco sobre o violino, viola e violoncelo, ou as vibrações da flauta e do clarinete, são reinterpretados, respectivamente, por saltos, gestos de braços, ou respirações, a que as diferentes personalidades motoras dão tradução livre. Ouvimo-los murmurar contagens, a evidenciar o rigor analítico da peça. A imprevisibilidade da composição de Grisey não tem pontos de apoio, e os apontamentos harmónicos são fugazes.
A minúcia deste concerto coreográfico é ciclópica; interpretá-lo requer um alinhamento mental de monge zen.
Vortex Temporum revela um método de pesquisa aprimorado, concisão e depuração; o timing dramatúrgico, bem urdido, dá alimento à hora de duração da peça e sabe pôr-se a caminho do desfecho assim que o tema se evidencia perante o espectador: antes de uma última incidência luminosa recair sobre as mãos do maestro, numa atmosfera crepuscular, movimentos vagarosos acompanham o que lembra o respirar pausado de um corpo adormecido.
Com precisão de ourives, esta dança desencripta a música, dando-lhe legibilidade quase didáctica. De tão embrenhados em tal propósito, coreógrafa e bailarinos entregam-se a um voo confinado. O desfrute é, porventura, sobretudo cognitivo. Dance first think afterwards, dizia Becket, com ironia, em Godot. A trajectória de Keersmaeker tem sido a inversa. Será essa a sua ordem natural.