O PSOE e a crise da social-democracia europeia
O PSOE passou meteoricamente da honradez do seu slogan de 1979 para a impunidade dos partidos habituados à perenidade do poder.
É o mais antigo partido espanhol e um dos mais antigos da Europa: nasceu em 1879, tornou-se em 1931 o partido mais votado e com mais militantes de Espanha, dirigiu, no governo, a resistência republicana contra o fascismo na Guerra Civil de 1936-39 e foi desfeito pelo exílio e a repressão franquista. Quando em 1979, nos primeiros anos da Transição Democrática, comemorou "100 anos de honradez", à esquerda costumava lembrar-se-lhes que neles se incluíam 40 de férias - mas a verdade é que o PSOE saiu da ditadura franquista como o referencial político principal para a maioria do mundo do trabalho. Quando Felipe González chegou ao poder em 1982, o PSOE já praticamente nada tinha da memória da resistência antifranquista e era a encarnação de uma sociedade aliviada pelo fracasso do golpe militar de 23 de fevereiro de 1981, cujas elites políticas haviam negociado um processo de transição pós-autoritária sob a ameaça permanente do pronunciamento. González montou, ao longo dos 16 anos seguintes, um modelo de poder que ficou conhecido por felipismo (1982-96), baseado numa gestão económica liberal que em muito (a crueldade social da reconversão industrial, o desemprego de massa: 16% em 1982, 24% em 1994, de novo 20%-26% desde 2010) se parecia ao thatcherismo de que foi contemporâneo. A cultura do pelotazo (de patobravismo), da riqueza fácil feita a coberto de governos centrais e regionais quase todos nas mãos do PSOE, veio acompanhada do crescimento da alta corrupção, da violência policial que, a pretexto da violência homicida da ETA, dificultava perceber diferenças entre a polícia franquista e a da pós-Transição. O PSOE passou meteoricamente da honradez do seu slogan de 1979 para a impunidade dos partidos habituados à perenidade do poder.
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É o mais antigo partido espanhol e um dos mais antigos da Europa: nasceu em 1879, tornou-se em 1931 o partido mais votado e com mais militantes de Espanha, dirigiu, no governo, a resistência republicana contra o fascismo na Guerra Civil de 1936-39 e foi desfeito pelo exílio e a repressão franquista. Quando em 1979, nos primeiros anos da Transição Democrática, comemorou "100 anos de honradez", à esquerda costumava lembrar-se-lhes que neles se incluíam 40 de férias - mas a verdade é que o PSOE saiu da ditadura franquista como o referencial político principal para a maioria do mundo do trabalho. Quando Felipe González chegou ao poder em 1982, o PSOE já praticamente nada tinha da memória da resistência antifranquista e era a encarnação de uma sociedade aliviada pelo fracasso do golpe militar de 23 de fevereiro de 1981, cujas elites políticas haviam negociado um processo de transição pós-autoritária sob a ameaça permanente do pronunciamento. González montou, ao longo dos 16 anos seguintes, um modelo de poder que ficou conhecido por felipismo (1982-96), baseado numa gestão económica liberal que em muito (a crueldade social da reconversão industrial, o desemprego de massa: 16% em 1982, 24% em 1994, de novo 20%-26% desde 2010) se parecia ao thatcherismo de que foi contemporâneo. A cultura do pelotazo (de patobravismo), da riqueza fácil feita a coberto de governos centrais e regionais quase todos nas mãos do PSOE, veio acompanhada do crescimento da alta corrupção, da violência policial que, a pretexto da violência homicida da ETA, dificultava perceber diferenças entre a polícia franquista e a da pós-Transição. O PSOE passou meteoricamente da honradez do seu slogan de 1979 para a impunidade dos partidos habituados à perenidade do poder.
Foi este modelo que o PP de Aznar veio copiar e agravar nos anos 90. Não surpreende ninguém que os maiores escândalos de corrupção envolvam os governos de longa duração do PSOE na Andaluzia (consecutivamente desde 1982) ou do PP em Madrid (desde 1991) e em Valência (1995-2015). E menos admira que sejam justamente os socialistas andaluzes que tenham agora aberto uma guerra dentro do PSOE para impedir que o seu frágil líder, Pedro Sánchez, ouse sequer pensar numa saída à esquerda do impasse político em que a Espanha caiu há nove meses.
Por duas vezes (dezembro e junho passados) os espanhóis retiraram largamente a maioria absoluta ao PP e impediram uma maioria de direita deste com o novo partido liberal-nacionalista, os Ciudadanos. No campo dos que não querem tocar na estrutura de poder herdada da Transição (PP, PSOE e Ciudadanos), todas as soluções são inúteis salvo uma: a do bloco central PP-PSOE. Ou, então, que o PSOE deixe o PP governar sem sequer exigir partilha de poder. Sánchez tem invocado os cinco milhões de desempregados e a corrupção endémica no PP para impedir qualquer uma das duas possibilidades, mas os pragmáticos do seu partido não pensam o mesmo. Para estes, a sobrevivência do PSOE não passa por retirar as lições devidas da sua rapidíssima perda de representatividade: em sete anos, perdeu metade dos seus apoios (de 43%-44% dos votos em 2004 e 2008 para os atuais 22%). Eles, e com razão, acham-se muito mais próximos do PP que da esquerda que conseguiu sintonizar com uma grande parte da deceção e raiva sentida pelos que foram esmagados pela crise. Para eles, um PSOE partido em dois é melhor do que um PSOE que vire à esquerda. E esse é o caminho definitivo para a pasokização daquele que foi o maior partido da Espanha do séc. XX - o único, aliás, que tivera representação suficiente em todas as regiões e nações do conjunto do país, o que lhe permitia (e hoje já não) dizer que assegurava alguma vertebração de um projeto tão complicado e desgastado como o do Estado das Autonomias.
O horror com que um grande número de socialistas espanhóis encara hoje ter que negociar com a frente Unidos Podemos, e a sua completa intransigência na recusa de uma qualquer forma de consulta sobre o futuro dos catalães, diz muito do estado da social-democracia europeia. Por todo o lado, a devastação austeritária que, a pretexto da crise financeira, propicia esta persistente ofensiva contra o Estado Social e consolida uma cultura racista e neoautoritária, está a deixá-la em farrapos. Reduzida aos seus mínimos históricos desde 1945, ela é obrigada a tomar partido: ou colabora na devastação ou opõe-se-lhe. Com exceção de Portugal, e no contexto excecional em que o PS se encontrou há um ano, a regra tem sido a primeira. Os principais governos que dirigem na Europa a imposição do Consenso de Washington incluem social-democratas no seu seio. Com as consequências que se conhecem. O SPD, que desde 2013 partilha pela segunda vez o governo com Merkel, viu reduzida a metade a sua representatividade, valendo hoje tanto quanto o PSOE em Espanha. Os trabalhistas holandeses (PVdA), o partido do mais simbólico dos ministros das Finanças do Eurogrupo, o nosso conhecido sr. Dijsselbloem, podem vir a ter 6%-7% dos votos numa próxima eleição; em 2012 tiveram 25%. O mapa político da Escandinávia, esse, há muito que deixou de ser uma cartografia do que se dizia ser o melhor da social-democracia, com a consolidação de partidos abertamente racistas integrados (salvo na Suécia) em coligações de governo de direita. Em França, Hollande aparece com estimativas de 10% dos votos nas eleições do próximo ano, menos que o principal candidato à sua esquerda e sistematicamente menos de metade do apoio que se atribui aos candidatos da extrema-direita e da direita clássica (Juppé ou Sarkozy). No mais que remoto caso de poder passar a uma 2.ª volta, Hollande perderia contra todos, incluída Marine Le Pen!
A crise do PSOE é um dos casos mais gritantes do momento decisivo por que passa a social-democracia europeia no novo ciclo histórico que a grande crise do capitalismo globalizado abriu. Nos tempos que vivemos, para que serve politicamente a social-democracia? Depois de 60 anos a defender a salvação do capitalismo através da redistribuição da riqueza, há quase 40 que, considerada a sua gestão económica, acha irremediável a reconcentração oligárquica da riqueza e do poder à escala planetária. Desde há 90 anos que defende o multilateralismo, mas quando governa em Paris ou em Londres participa empenhadamente nas aventuras bélicas do Ocidente no Médio Oriente, no Afeganistão ou em África, na boa velha regra de bombardear primeiro e multilateralizar depois. Filosoficamente liberais e garantistas, socialistas espanhóis, britânicos e alemães geriram políticas antiterroristas feitas de vigilância massiva, guerra suja e violação de direitos humanos dignas de uma qualquer ditadura, enquanto os franceses recuperaram no Estado de Emergência que decretaram há quase um ano uma tradição repressiva que lhes ficara da guerra da Argélia.
Era já tempo de mudar.