Grupo Lena pagou carro de irmão de Sócrates e descontou valor a amigo

O PÚBLICO ouviu as três horas do interrogatório ao presidente da comissão executiva do Grupo Lena, Joaquim Conceição, e resume o que foi dito.

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Defesa de José Sócrates não quis comentar declarações do presidente do Grupo Lena. Daniel Rocha

O Grupo Lena assumiu ter pago mais de 30 mil euros relativos a um Audi A5 usado pelo irmão do ex-primeiro-ministro José Sócrates, António Pinto de Sousa, montante que garante ter sido descontado mais tarde na conta corrente do empresário Carlos Santos Silva, amigo do governante e do seu irmão, que trabalhava regularmente para o grupo.

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O Grupo Lena assumiu ter pago mais de 30 mil euros relativos a um Audi A5 usado pelo irmão do ex-primeiro-ministro José Sócrates, António Pinto de Sousa, montante que garante ter sido descontado mais tarde na conta corrente do empresário Carlos Santos Silva, amigo do governante e do seu irmão, que trabalhava regularmente para o grupo.

Isso mesmo é assumido pelo presidente da comissão executiva do grupo, Joaquim Conceição, num depoimento prestado a 29 de Junho no Departamento Central de Investigação e Acção Penal, no âmbito da Operação Marquês. Joaquim Conceição foi ouvido como representante de quatro sociedades arguidas, todas do Grupo Lena, durante pouco mais de três horas. Na gravação do depoimento, à qual o PÚBLICO teve acesso, o presidente da comissão executiva do grupo nunca fala do eventual pagamento de subornos a José Sócrates, nome aliás poucas vezes referido durante o depoimento. Na maior parte das respostas, Joaquim Conceição deu uma versão que contraria muitas das teses sustentadas pelo Ministério Público.

O interrogatório, no qual Joaquim Conceição é acompanhado por dois advogados, concentra-se no funcionamento do grupo e nas relações deste com o empresário Carlos Santos Silva, que o Ministério Público acredita ser um testa-de-ferro do antigo primeiro-ministro. A venda de um terreno do grupo em Angola, conhecido como Kanhangulo, que foi negociado com o empresário luso-angolano Hélder Bataglia, ligado ao Grupo Espírito Santo, concentra uma parte substancial das perguntas do inspector tributário Paulo Silva e do procurador Rosário Teixeira.

Quanto ao episódio do carro do irmão de Sócrates, Joaquim Conceição, começa por dizer que houve uma “situação complicada” na Rentlei, uma empresa do grupo dedicada ao aluguer operacional de viaturas, levantada por um funcionário “muito mesquinho” e “muito rigoroso”. Explica que António Pinto de Sousa tinha um contrato de aluguer operacional de um Audi A5 com a Rentlei, que deixou de ser pago quando morreu, em Agosto de 2011. Diz que a determinada altura, um advogado da mãe entrou em contacto com a empresa, dando-lhe conta do interesse da familiar em ficar com a viatura.

Levantou-se então a questão de quem deveria pagar as rendas em atraso e o valor residual do carro, tendo a questão chegado às mãos do presidente da comissão executiva do grupo. Este diz que falou com Joaquim Barroca, um dos donos do grupo, que pediu orientações a Carlos Santos Silva, que tinha trazido aquele cliente. Questionado sobre se não teria mais lógica falar sobre este assunto com os herdeiros, Joaquim Conceição diz que o normal é abordar quem trouxe o negócio.  

“O Carlos está-me a dizer para pagares isso por nossa conta e para deduzires isso nas dívidas que temos ao Carlos”, contou Joaquim Conceição, numa alusão à conversa que teve com Joaquim Barroca. Face às dificuldades financeiras do grupo, o presidente do grupo diz que para cobrir “os 30 e tal mil euros” teve de recorrer a dólares vindos de Angola. “Fomos buscar onde havia”, justifica, assumindo que o dinheiro chegou a Portugal em “numerário”. Joaquim Conceição diz que de imediato foi transmitida a indicação aos responsáveis da empresa em Angola para descontarem essa quantia às dívidas que o grupo tinha com Carlos Santos Silva, que nessa altura estava a fazer o projecto de um edifício em Angola.

Divergências com Barroca

O procurador quis saber por que é que esses pagamentos feitos em 2011 e 2012, aparecem registados em 2013 num ficheiro que faz um balanço das despesas assumidas pelo Grupo Lena, mas que Joaquim Conceição considerava que deviam ter sido pagas por Carlos Santos Silva ou pelas suas empresas. O gestor insiste que nessa altura já se tinha feito o encontro de contas com o amigo de infância de Sócrates e que a inclusão daqueles montantes era uma “duplicação de débitos”. O presidente do Grupo Lena diz ter feito aquela manobra com o intuito de baixar o valor da renovação da prestação de serviços de Santos Silva, que acabou por ficar nos 2,7 milhões de euros, 10% abaixo da anterior.

O presidente da comissão executiva assume divergências com Joaquim Barroca por causa do poder de Santos Silva no grupo e diz não perceber por que se pagava tanto dinheiro àquele empresário e engenheiro. Conta que no âmbito da reestruturação do grupo, baixou salários a administradores e a accionista, mas não conseguiu baixar o de Carlos Santos Silva. Disse que não havia dúvidas que o empresário tinha trazido negócios para o grupo e tinha “os seus contactos”, mas considera excessivo o que lhe pagavam. Criticou a forma como Joaquim Barroca e Santos Silva decidiam a estratégia comercial do grupo, muitas vezes sem se coordenarem com outros responsáveis, e diz que tentou profissionalizar este trabalho.    

Contactado pelo PÚBLICO, a comissão executiva do Grupo Lena insiste, numa reacção enviada por e-mail que as declarações do seu presidente “não confirmam quaisquer das teses da investigação quanto ao envolvimento do Grupo Lena no pagamento de subornos a quem quer que seja, ou quaisquer outros crimes”. E acrescenta: “Pelo contrário, essas teses foram refutadas e entregues provas que as refutam”. Recusa fazer outros comentários, com o facto de o seu presidente estar vinculado ao segrego de justiça, lamentando as fugas de informação deste caso. Nem a defesa de Sócrates, nem a de Santos Silva quiseram reagir.

Um negócio "esquisito"

"Esquisito" e "anormal". O presidente do Grupo Lena, Joaquim Conceição, reconhece ser estranha a forma como decorreu a venda de um terreno do grupo em Angola, conhecido como Kanhangulo, que foi acordado por 35 milhões de euros e acabou por ser vendido por cerca de 20 milhões. Isto já depois de o grupo ter retido um sinal de oito milhões de euros e ter dado o negócio sem efeitos por incumprimento do comprador. “Não é comum alguém desistir do negócio seis meses depois... mesmo em Angola. Também não é comum um negócio ter sido feito em Angola e recebido em Portugal”, admitiu o gestor. Joaquim Conceição não soube explicar porque foram encontrados documentos relacionados com o negócio com datas posteriores à da criação dos respectivos ficheiros e várias versões do mesmo documento com datas diferentes. Remeteu esclarecimentos para Santos Silva, que intermediou o negócio e recebeu vários milhões de comissão, e para Joaquim Barroca. Insiste contudo que o comprador foi o mesmo, já que o interlocutor foi sempre o empresário luso-angolano Hélder Bataglia, ligado ao Grupo Espírito Santo. O Ministério Público considera que o pagamento do sinal de oito milhões e a sua retenção, foi apenas uma estratégia para passar fundos para Santos Silva, destinados maioritariamente a Sócrates.