Os cinemas tropicais de Angola
Angola Cinemas – Uma Ficção da Liberdade recorda as enormes salas de cinema e as extraordinárias cine-esplanadas que nas décadas de 1960 e 1970 se espalharam por Angola. O livro foi agora editado em Portugal. As imagens podem ser vistas no Instituto Goethe, em Lisboa
São arquitecturas a desafiar o espaço, a deixar entrar o ar e a luz, a lançar-se em formas inesperadas – uma parece um animal da savana a dar um salto, a outra lembra um ovni pousado na terra. Cores vivas, letras enormes, ecrãs gigantes erguidos contra o céu e, à frente deles, centenas de cadeiras.
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São arquitecturas a desafiar o espaço, a deixar entrar o ar e a luz, a lançar-se em formas inesperadas – uma parece um animal da savana a dar um salto, a outra lembra um ovni pousado na terra. Cores vivas, letras enormes, ecrãs gigantes erguidos contra o céu e, à frente deles, centenas de cadeiras.
“Angola é dos países que tem mais cine-esplanadas. Acho que não existe mais nada assim no mundo”, diz o actor angolano Miguel Hurst, autor, com o fotógrafo Walter Fernandes, do livro Angola Cinemas – Uma Ficção da Liberdade, feito com o apoio do Instituto Goethe, e que acaba de ser lançado em Portugal.
A pretexto do lançamento, o Goethe apresenta uma exposição de fotografia com várias imagens do livro (até 15 de Novembro). E é junto a elas que o Ípsilon conversa com Miguel Hurst. “Este cinema que vê aqui é o Atlântico”, diz, apontado para uma das fotos. Nascido na Alemanha, Hurst viveu 24 anos em Portugal, onde tirou o curso de actor e dirigiu o grupo de teatro Pau Preto. Quando foi para Angola, em 2003, ocupou o cargo de director do Instituto do Cinema. “E no ano seguinte inaugurámos o Atlântico.”
Mas foi só em 2005, durante uma deslocação à província de Benguela, que viu o Kalunga. “É um espaço magnífico, extremamente aberto, com a cabine de projecção, as escadas, um bar, outro bar”, vai descrevendo e apontando para a imagem. “Visto do ar tem a forma de uma máquina de projecção de filmes.”
A fotografia seguinte mostra um edifício futurista, de linhas orgânicas a lembrar o trabalho do arquitecto brasileiro Oscar Niemeyer. “É o cine-estúdio do Namibe, de Botelho Pereira. Nunca funcionou”. Acabou de ser construído em 1974 e logo de seguida começou a guerra. Também de Botelho Pereira, embora muito diferente, em laranja e cor-de-rosa, é o Impala, de 1972, cuja estrutura faz lembrar precisamente o elegante salto da impala.
No meio das suas viagens pelo país, Miguel foi-se apercebendo que não eram meia dúzia, nem sequer uma dúzia, os cinemas de Angola. “Inicialmente tinha uma listagem de 54 salas mas encontrámos mais 20. Espalhadas por todas as províncias, todas as aldeiazinhas. Via-se muito cinema.”
Miguel está a falar dos tempos áureos, as décadas de 1960 e 1970, em que as salas de cinema – muitas delas cine-esplanadas porque era isso que o clima pedia – cresciam pelo país como cogumelos. Mas não é só o gosto dos angolanos por cinema que explica o fenómeno. “São os arquitectos que lá foram parar”, explica. “Salazar mandou os arquitectos para África. A maior parte foi parar a Angola e fizeram estas maravilhas únicas no mundo.”
Liberdade criativa
Longe de Portugal, os arquitectos portugueses – homens como Francisco Castro Rodrigues, Vasco Vieira da Silva, Botelho Pereira, João José Tinoco ou João Garizo do Carmo – encontraram um clima tropical e um clima de liberdade criativa como não conheciam na metrópole. E se os primeiros cinemas ainda seguiam muito o modelo clássico, a pouco e pouco as novas formas começaram a surgir.
Diz Miguel Hurst: “Foi dada total liberdade aos arquitectos. Aliás, a lógica do nosso livro é: do espaço fechado ao espaço aberto. Começa-se com a arquitectura do Estado novo, obras mais fechadas, e depois é sobretudo junto à costa, que é muito seca, que surgem as cine-esplanadas.”
Encantado com os cinemas que ia descobrindo, e cada vez mais convencido de que se tratava de uma realidade absolutamente original, Miguel propôs ao Ministério da Cultura de Angola que se fizesse um livro recordando estes lugares – alguns ainda em funcionamento, outros adaptados a usos diferentes e muitos simplesmente abandonados, em risco de se transformarem em ruínas. “Responderam-me que não, que estava tudo em mau estado e que não se podia mostrar”. Mas não desistiu da ideia e, por fim, conseguiu convencer o Instituto Goethe de Angola a apoiar o projecto.
Começou então a recolher toda a informação possível sobre os cinemas e os arquitectos – havia trabalhos importantes desenvolvidos por investigadores portugueses sobre esta arquitectura tropical, nomeadamente as obras de José Manuel Fernandes (Geração Africana – Arquitectura e Cidades em Angola e Moçambique 1925-1975), Ana Magalhães (Moderno Tropical – Arquitectura em Angola e Moçambique em 1948-1975) e Ana Tostões (Arquitectura Moderna em África: Angola e Moçambique).
Mas havia também, por todo o país, muitas memórias do que eram essas idas ao cinema. A política, afirma Miguel Hurst, não passava ao lado do fenómeno: “Apesar do mito de que o português se misturava, a verdade é que não se misturava nada. A mistura foi uma obrigação. Houve sempre pouca população em Portugal e para se conseguir manter a fronteira contra o inglês, o holandês, o afrikander, houve a necessidade de fazer pessoas e é assim que nasce o mulato.”
Espectáculo do “poder colonial”
Havia, é certo, uma “pequena burguesia negra e mulata que cada vez mais se integrava com o colonizador”. Mas, nas primeiras salas de cinema, ainda existia separação de raças: “o negro em cima, o branco em baixo”. A ida ao cinema era muito um espectáculo do “poder colonial”. E um momento de exibição social. “Era uma coisa pomposa. As pessoas aperaltavam-se, iam de luvas e até de casacos de peles.”
“Fizemos muitas entrevistas, falámos com muitas pessoas e elas tinham essas memórias vivas de ser uma ocasião solene”, prossegue o autor. “Isso encantou-nos”. Nos ecrãs passavam comédias portuguesas da época e muito cinema americano, com os galãs de Hollywood a fascinar os angolanos, grandes dramas a fazer chorar plateias e westerns a entusiasmar os jovens. Alguns cinemas ainda mantém as placas a recordar que Amália Rodrigues ali cantou ou que Vasco Santana passou por lá.
Com a passagem do tempo, o cinema foi-se democratizando, gradualmente. Começaram então a surgir salas nos bairros negros, como o Cine-África, que Miguel aponta numa das fotografias de Walter Fernandes expostas no Goethe.
Depois veio a independência. “O MPLA vira à esquerda em absoluto, a Warner Bros. já não manda filmes para Angola, começa-se a ver filmes checos, russos, do bloco de Leste.” E, por fim, voltou a guerra. “Os filmes pararam. As salas viraram igrejas, armazéns, imensas coisas diferentes.”
Com muitas casas destruídas pelos combates, alguns destes edifícios enormes são aproveitados pela população como abrigo. “Aqui dentro há uma aldeia montada, tem gente a viver, fazem mercado, igrejas, plantam-se couves, batata-doce, mandioca”, indica Miguel apontando para uma fotografia.
No meio deste cenário, alguns resistiram e nunca fecharam. Mas os hábitos de consumo cultural também mudaram e hoje estes espaços que ainda funcionam – e os que entretanto estão a ser recuperados – não servem tanto para ver filmes mas mais para outros espectáculos, teatro, concertos. “É caro comprar um filme e se um distribuidor não tem uma rede de salas, não o consegue rentabilizar”, explica Miguel. “Se for um filme legendado, o direito a legendar para Portugal e África é da Castelo Lopes e paga-se por película uns cinco mil dólares. É quase impossível rentabilizar um filme assim.”
O livro – que foi lançado em Angola em 2015 – veio reavivar muitas memórias e chamar a atenção para estes locais. A pouco e pouco começam a surgir iniciativas para recuperar alguns deles – parte dos quais eram privados e foram entretanto nacionalizados. “Preocupo-me com o meu povo”, diz Miguel. “O meu povo merece mais do que tem e [para que estes edifícios não se percam] é preciso provocar vontades” – do Estado, dos governos provinciais, das autoridades locais. “As revoluções fazem-se de muitas maneiras. E, se calhar, um livro é a melhor delas.”