Cinco bailarinos para falhar a perfeição
Em Uníssono, Victor Hugo Pontes livra-se das narrativas e mergulha numa busca pela perfeição de corpos que se imitam uns aos outros. Como numa prova de natação sincronizada ou numa parada militar. Estreia esta sexta-feira.
Provas de natação sincronizada e paradas militares na Coreia do Norte. É difícil pensar em dois exemplos mais perfeitos de sincronismo. E é tão difícil que ambos serviram de material de pesquisa e de inspiração para Victor Hugo Pontes construir Uníssono.
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Provas de natação sincronizada e paradas militares na Coreia do Norte. É difícil pensar em dois exemplos mais perfeitos de sincronismo. E é tão difícil que ambos serviram de material de pesquisa e de inspiração para Victor Hugo Pontes construir Uníssono.
Depois de ter criado Carnaval para a Companhia Nacional de Bailado (a partir de O Carnaval dos Animais, de Camille Saint-Saëns) e sobretudo de varrer as palavras de A Gaivota, texto teatral de Anton Tchékhov, do qual ficou apenas com os movimentos suscitados pelo texto, o coreógrafo quis livrar-se das narrativas que sempre acompanham as suas peças e, desta vez, partir apenas do movimento. De uma vontade de movimento fundada na abstracção, assente numa ideia de uníssono, de corpos que procuram imitar-se numa mesma frase para testar a possibilidade de funcionarem como um só.
Se Alguma Vez Precisares da Minha Vida, Vem e Toma-a, a partir de Tchékhov, eliminava o texto mas agarrava-se fielmente às palavras e aos conflitos dramáticos que empurravam a história. Em Uníssono – estreia no Teatro São Luiz, Lisboa, entre 30 de Setembro e 2 de Outubro, seguindo para o Rivoli, Porto, 7 e 8 de Outubro – a questão que Victor Hugo Pontes se quis colocar foi como gerir toda a partitura coreográfica a partir da ausência de conflito. Não há escassez de leituras simbólicas em Uníssono, mas os sinais legíveis poderão funcionar como meras projecções do público sobre uma intenção que, na verdade, não existe. “Para mim”, diz o coreógrafo ao Ípsilon, “são cinco solos que acontecem em simultâneo, em que temos uma partitura e cinco bailarinos que a executam durante toda a peça, sendo que nalgumas alturas os vemos a todos e noutros momentos podemos ver dois, três ou quatro. Tento jogar com essa ideia de composição.”
Desde logo, Victor Hugo quer relacionar-se com essa cortina que separa o visível do invisível. De cada vez que um dos cinco bailarinos deixa o palco e a coreografia fica entregue aos restantes, somos sempre levados a crer que a transporta consigo para fora do nosso campo de visão. Como se Uníssono funcionasse enquanto zoom in sobre uma ampla realidade colectiva e que, só por manifesta falta de espaço, nos “obriga” a olhar para cinco intérpretes quando podíamos estar a dividir a atenção por centenas ou milhares – como numa parada militar – repetindo o mesmo gesto.
Claro que diante de um grupo, maior ou menor, que se define pelo mesmo gesto, ressalta também a ideia da diluição da identidade. E de uma formatação que, em específico, não atrai especialmente Victor Hugo Pontes. Fascina-o mais a “ideia de multiplicação, de como um movimento que, por muito pequeno que seja, ao ser repetido por mais do que uma pessoa atinge uma escala maior e pode chegar a algo gigantesco pela acumulação”. Puxa, portanto, pela espectacularidade.
A mesma espectacularidade que alimenta tanto os desfiles diante de Kim Jong-Un quanto as cerimónias de abertura dos Jogos Olímpicos ou os videoclips de grande parte do vocabulário pop. “Acho fascinante a escala da abertura dos Jogos Olímpicos, em que aquelas pessoas se tornam pixéis”, diz. “Nesses espectáculos transmitidos pela televisão, já atribuímos às pessoas o significado de pixel, passam a ser quase números e pontos que, todos juntos, formam depois uma imagem.”
Calhou que os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro coincidiram com o período de criação de Uníssono, pelo que acabaram por infiltrar-se naturalmente no desenho dos movimentos, retomando uma exigência e um olhar atléticos sobre os bailarinos que Victor Hugo sempre explorou. Só que, desta vez, o impacto foi mais pronunciado. “Era impossível acabar um ensaio, chegar a casa e ver natação sincronizada sem ficar a ver como conseguem estar, mesmo no slow motion, exactamente iguais”, confessa. “Da mesma forma que podia sair de um ensaio em Guimarães e estar a acontecer uma aula de zumba com 500 pessoas a fazer a mesmíssima coisa.”
Todas essas imagens foram abastecendo uma bolsa de memórias depois vertida para a peça, ajudada também por passos extraídos da música de dança, do hip-hop ou do ballet clássico, aqui transformados e reconfigurados.
Individual ou colectivo
À medida que os bailarinos de Uníssono vão entrando em palco, as ligações entre eles estabelecem-se não apenas pelo movimento partilhado, mas também por algumas peças de roupa que se repetem, sem que haja coincidências perfeitas – uma camisola comum a dois intérpretes, uns ténis que juntam noutros dois.
Aos poucos, no entanto, todos se vão aproximando de um único figurino, anulando as diferenças. “Como é que podemos manter a nossa identidade estando dentro de um colectivo?”, questiona Victor Hugo Pontes. “Será que conseguimos manter ou somos esmagados pelo colectivo? E se conseguimos manter, o que é que fica?” De facto, se num primeiro momento as mesmas roupas reforçam a ideia de diluição da identidade para formar um todo e de inconscientemente, no contexto de um grupo, se caminhar para os reforços das semelhanças, a busca pelas particularidades de cada um torna-se mais apurada, é transferida daquilo que é menos pessoal (a camisa, os ténis) para aquilo que há de específico nos gestos, na intensidade, na energia de cada bailarino.
Para que isso sobressaia, no entanto, o trabalho faz-se precisamente no sentido contrário. Victor Hugo Pontes dedicou-se a limpar o movimento até ao mais ínfimo detalhe, no caminho da despersonalização e de uma certa frieza – da correcção dos dedos seguiu para os olhares e para a posição das cabeças numa procura pela perfeição do uníssono algo obsessiva. Mas, num certo sentido, o coreógrafo parece travar uma batalha que pretende perder, como se forçando o mais possível a apresentação imaculada do uníssono, quisesse ser consolado pela derrota demasiado humana do erro. Parece perseguir a perfeição apenas para ser lembrado que, fatalmente, sempre que se aproxima de uma imagem impoluta de ordem, o mais pequeno desacerto surge para declarar que a humanidade está sempre à espreita e que há sempre um vislumbre de caos e de identidade a boicotar, com subtileza, o quadro de um colectivo em absoluto sincronismo. E, mesmo que não o diga aos bailarinos, nesses momentos Victor Hugo Pontes permite-se suspirar de alívio.