Tim Burton deixou de ser peculiar
Burton não foi sempre assim. Admirávamos a imaginação delirante, visual e narrativa.
A acumulação de filmes indistintos nestes últimos anos leva, por vezes, a que se pergunte: será que o cinema de Tim Burton foi sempre assim? Será que apenas se quebrou um feitiço, um estado de encantamento, e agora vemos os filmes de Burton com outra transparência, exactamente como eles são? A estas dúvidas basta fazer um rewind mental, e recordar os pontos altos da sua obra, títulos como Eduardo Mãos de Tesoura, Batman Returns, Ed Wood, Marte Ataca!, aliás todos dos anos 1990, que hoje aparecem, com bastante clareza, como o tempo do apogeu criativo do cineasta americano.
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A acumulação de filmes indistintos nestes últimos anos leva, por vezes, a que se pergunte: será que o cinema de Tim Burton foi sempre assim? Será que apenas se quebrou um feitiço, um estado de encantamento, e agora vemos os filmes de Burton com outra transparência, exactamente como eles são? A estas dúvidas basta fazer um rewind mental, e recordar os pontos altos da sua obra, títulos como Eduardo Mãos de Tesoura, Batman Returns, Ed Wood, Marte Ataca!, aliás todos dos anos 1990, que hoje aparecem, com bastante clareza, como o tempo do apogeu criativo do cineasta americano.
Não, Burton não foi sempre assim. Admirávamos a imaginação delirante, visual e narrativa, aquela feliz conjunção da “acção real” com a animação, muitas vezes tratadas como se fossem a mesma coisa, e o caldo de influências e referências, da tradição Disney ao “gótico americano” tal como Roger Corman o cultivou nalguns dos seus maiores filmes (e Vincent Price, um dos ex-libris desse “gótico” chegou a entrar, de modo significativo, no cinema do jovem Tim Burton). Admirávamos aquela espécie de violência latente, feroz, anárquica e subversiva mesmo que coberta por camadas de irrisão, de filmes como Pee Wee’s Big Adventure (a primeira longa de Burton, nos anos 80) ou Marte Ataca!, e de que o último vestígio terá aparecido em Charlie e a Fábrica de Chocolate (já em meados dos anos 2000). Admirávamos a maneira como, no mesmo filme, se podiam correr todas as gamas do espectro emocional, do choro ao riso, da comédia à tragédia (como em Eduardo, como em Ed Wood, como no tão subestimado remake do Planeta dos Macacos (em 2001). Admirávamos a musicalidade e o movimento, aqueles carnavais operáticos do Pesadelo Antes do Natal ou da Noiva Cadáver, que se terão apresentado pela última vez em Sweeney Todd. Portanto, puxar pela memória responde-nos sem margem para dúvidas: havia imensa coisa para admirar no cinema de Tim Burton.
Mas tudo isso tem vindo a desagregar-se aos poucos, e chega a um ponto particularmente baixo nesta Casa da Senhora Peregrine para Crianças Peculiares, adaptação de um best-seller de 2011. Estão lá, na superfície, todos os elementos típicos de Burton. A infância e o coming of age, através do miudo protagonista; a galeria de personagens “frankensteinianas”, de humanidade “monstruosa”, sem verdadeiro lugar dentro da comunidade “normal” (as ditas “crianças peculiares” do título, que muito lembram os Freaks de Tod Browning); a feérie e a magia, através da exploração dos poderes sobrenaturais das crianças peculiares, e o onirismo, a contiguidade entre vidas reais e vidas de pesadelo; e, mesmo, através das alusões ao gueto de Varsóvia (onde nasceu o avô do miudo protagonista), a sombra de um lado historicamente negro, no papel com toda a potência para transcender o conto de fadas ou a história da carochinha. Há até (o grosso do filme passa-se no País de Gales) todos os sinais da “aculturação” de Burton desde que, no princípio da década passada, se mudou para o Reino Unido, e que levou a uma curiosa “britanização” do seu cinema.
Só que depois nada funciona e nada cola. A Casa da Senhora Peregrine parece obra de um tarefeiro sem alma nem personalidade a quem tenha sido dada a encomenda de lidar com elementos burtonianos. Não há extremos: nem rimos nem choramos, tudo está cuidadosamente calibrado “ao meio”, uma coisa “nem nem”, como naqueles filmes de aventuras juvenis particularmente aptos a passarem na televisão numa tarde de domingo. A violência é meramente cartoonesca, sempre sob controlo, bonecos que são bonecos (como a personagem de Samuel L. Jackson, a repetir aqui, debaixo de make-up, os maneirismos dos seus vilões tarantinescos). Os efeitos especiais aparecem em enxurrada, anulam-se e neutralizam-se na maior indiferença, como de forma geral está ausente um mínimo sentido de coreografia ou “mise en scène”: acontece sempre muita coisa, mas na verdade nada se passa, é uma economia cumulativa bem longe da cuidadosa organização dos elementos visuais em que Burton já foi mestre. Nesta “massa” indistinta sobre alguma coisa para ver? Tememos que, e fora algumas escolhas do elenco (Terence Stamp ou Eva Green, esta também “neutralizada”, longe da explosão de sensualidade vermelha e carnal que salvava Dark Shadows), haja bem poucas razões para que um adulto justfiique tirar duas horas à sua vida com este filme. Talvez se não se tiver mais de doze anos - mas mesmo nesse caso deve haver melhores opções. Por exemplo, começar a rever Burton desde o princípio.