Berlim ainda não percebeu como se exerce uma liderança
Angela Merkel garantiu ao Governo de Lisboa que "nunca se oporia" à candidatura de Guterres. Não cumpriu a promessa.
Há quase sete anos, pouco depois de um novo embaixador da Alemanha chegar a Lisboa, fui convidada por ele para um almoço que me pareceu ser de simples cortesia. Cheguei ao almoço, e foi uma daquelas vezes em que não tive resposta imediata ao que ele me queria comunicar. Diria mesmo que fiquei, na minha ingenuidade, de boca aberta. O embaixador, com o qual mantive depois uma excelente relação de cooperação, aliás, muito útil, tinha apenas uma coisa para me dizer de forma absolutamente explícita, sem qualquer linguagem diplomática. Portugal tinha de retirar a sua candidatura ao lugar não permanente no Conselho de Segurança que, tal como era hábito, já estava ser preparada praticamente desde a anterior eleição. A razão era óbvia: a Alemanha acabava de apresentar a sua, cerca de um ano antes da votação e o lugar era por direito dela. A argumentação era absolutamente clara. A Alemanha já deveria ter o seu lugar permanente no Conselho de Segurança, apenas adiado pela pouca vontade americana (em boa verdade, de todos os outros membros permanentes). Era, além disso, uma grande potência europeia, um contribuinte generoso para os cofres do sistema das Nações Unidas com um peso internacional incomparavelmente superior ao de Portugal.
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Há quase sete anos, pouco depois de um novo embaixador da Alemanha chegar a Lisboa, fui convidada por ele para um almoço que me pareceu ser de simples cortesia. Cheguei ao almoço, e foi uma daquelas vezes em que não tive resposta imediata ao que ele me queria comunicar. Diria mesmo que fiquei, na minha ingenuidade, de boca aberta. O embaixador, com o qual mantive depois uma excelente relação de cooperação, aliás, muito útil, tinha apenas uma coisa para me dizer de forma absolutamente explícita, sem qualquer linguagem diplomática. Portugal tinha de retirar a sua candidatura ao lugar não permanente no Conselho de Segurança que, tal como era hábito, já estava ser preparada praticamente desde a anterior eleição. A razão era óbvia: a Alemanha acabava de apresentar a sua, cerca de um ano antes da votação e o lugar era por direito dela. A argumentação era absolutamente clara. A Alemanha já deveria ter o seu lugar permanente no Conselho de Segurança, apenas adiado pela pouca vontade americana (em boa verdade, de todos os outros membros permanentes). Era, além disso, uma grande potência europeia, um contribuinte generoso para os cofres do sistema das Nações Unidas com um peso internacional incomparavelmente superior ao de Portugal.
A candidatura portuguesa já tinha feito o seu caminho, reunindo apoios em todo o mundo sem grande dificuldade. Precisamente porque somos um país pequeno mas com uma longa história, sem conflitos ou anticorpos de maior na cena internacional, capaz de construir pontes (era esse o lema), mas que contrabalançava a sua dimensão com a pertença à União Europeia (vide Timor). Isso e a persistência e eficácia da diplomacia portuguesa tinham-nos garantido sempre cumprir os objectivos fixados para o Conselho de Segurança. Não seria morte de homem se não ganhássemos, mas já era tarde demais para desistir. A não ser na cabeça do embaixador alemão. Conhecemos o desfecho desta história. Apesar de haver um terceiro concorrente muito forte, o Canadá, ganhámos folgadamente o nosso lugar e a Alemanha o seu. Pouco depois, na decisão sobre a intervenção na Líbia, o voto alemão alinhou com os países emergentes (China e Brasil) e não com os países ocidentais, provando que Berlim ainda não tinha clarificado a sua inserção internacional pós-unificação. Essa clarificação já aconteceu em grande medida. A Alemanha já se realinhou com os seus principais parceiros europeus e com os Estados Unidos. A Rússia e a desordem internacional ensinaram muita coisa à chanceler sobre defesa e segurança. Mas faltou, nessa aprendizagem, um pormenor: perceber que o facto de ser poderosa na Europa não lhe dá o direito de se comportar desta forma arrogante e unilateral.
Angela Merkel garantiu ao Governo de Lisboa que “nunca se oporia” à candidatura de Guterres, porque lhe devia um apoio incondicional na questão dos refugiados e via como muito útil o seu conhecimento de África, que alimenta e continuará a alimentar a fuga para a Europa de milhares e milhares de pessoas. Não cumpriu a promessa. Apoiou Kristalina Georgieva, que saiu direitinha do Berlaymont à última hora, mas com a mesma lógica: o que Berlim apoia é o que interessa e o que a Comissão fabrica é o que vale. A vice-presidente da Comissão pode ser a melhor pessoa do mundo, mas o mundo não teve oportunidade de saber. Uma das suas "qualidades" públicas é pertencer ao PPE para um cargo em que a cor política interessa muito pouco. O que é que Berlim ganha com isto? É difícil de entender a não ser compromissos anteriores, que conhecia antes de transmitir ao Governo português a sua “não oposição”, ou uma forma de manter os seus vizinhos de Leste satisfeitos. Haveria sempre outra dificuldade para Guterres, essa sim com alguma lógica, mesmo que não contribua para uma ONU mais aberta e mais transparente. A sua candidatura teria de passar o crivo de uma relação cada vez mais complexa entre Washington e Moscovo por causa da Síria no quadro de uma situação internacional verdadeiramente perigosa e da tragédia humana que se vive na região. Era provavelmente a isso que Marcelo se referia quando falou em crises internacionais imprevisíveis que ainda poderiam dificultar a vida ao candidato português. Afinal bastou a eurocracia e a displicência como em Berlim se olha para o Sul para colocar uma séria dificuldade a Guterres e à diplomacia portuguesa. Quem quer anular a sua candidatura sabe que o preço a pagar contra a transparência, o mérito, a capacidade e o currículo de António Guterres será rapidamente esquecido. Mas que seja a Europa, com a sua sempre tão proclamada “superioridade moral”, que queira torpedear um processo muito mais transparente e interessante dá-nos a triste medida da forma como as coisas funcionam.
Não há documento de política externa emitido em Bruxelas (o último sobre a estratégia de segurança europeia, preparado por Mogherini) que não fale na importância da ONU e que não defenda um “multilateralismo eficaz”, seja o que for que isso queira dizer. Querer eliminar um candidato europeu que, em cinco votações, esmagou os adversários é a negação de tudo isso. Quanto aos argumentos, como escrevia um diário britânico, falar de Europa do Leste deixou de fazer qualquer sentido desde a reunificação europeia. O conceito geopolítico desapareceu, como pretendiam os países do Leste que aderiram ao que designavam como “Europa”. O critério do género é apenas uma desculpa. E os cozinhados europeus deixam cada vez mais a desejar, numa altura em que a cozinha está a ser aberta ao público. O caso Neelie Kroes (a anterior comissária holandesa da Concorrência) é um escândalo sem nome vindo de um país europeu que olha para o Sul com um desprezo considerável. O caso Barroso não é propriamente exemplar. A Alemanha ainda não sabe como utilizar o seu imenso poder, o que é lamentável. Não foi só Merkel que tentou jogar com um pau de dois bicos. Teve outros companheiros que um dia viremos a saber quem foram. Mas desta vez, como aconteceu no Conselho de Segurança há sete anos, também pode, não digo perder, mas pelo menos “empatar”.