Sete bailarinos para música espectral

Anne Teresa de Keersmaeker traz à Culturgest Vortex Temporum, peça construída a partir da relação entre os bailarinos e os músicos em palco.

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Anne Van Aerschot

Anne Teresa de Keersmaeker tem um dealer de música. Chama-se Thierry de Mey e costuma colocar a coreógrafa na rota de música mais inesperada. Há alguns anos - confessou em entrevista ao seu assistente dramatúrgico Bojana Cvejic -, Mey instou-a a assistir à apresentação pelo ensemble de câmara Ictus “de uma das peças seminais da música contemporânea criada nos últimos quarenta anos”. Falava de Vortex Temporum, do compositor francês Gérard Grisey, que deslumbrou Keersmaeker ao ponto de empreender a pouco óbvia tarefa de juntar movimento a uma peça tão esquiva na sua complexidade.

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Anne Teresa de Keersmaeker tem um dealer de música. Chama-se Thierry de Mey e costuma colocar a coreógrafa na rota de música mais inesperada. Há alguns anos - confessou em entrevista ao seu assistente dramatúrgico Bojana Cvejic -, Mey instou-a a assistir à apresentação pelo ensemble de câmara Ictus “de uma das peças seminais da música contemporânea criada nos últimos quarenta anos”. Falava de Vortex Temporum, do compositor francês Gérard Grisey, que deslumbrou Keersmaeker ao ponto de empreender a pouco óbvia tarefa de juntar movimento a uma peça tão esquiva na sua complexidade.

Confessando a sua admiração pela música antiga e por Bach, saltando por cima dos períodos clássico e romântico, e readquirindo interesse pela música do século XX e pelos autores contemporâneos, as escolhas musicais de Keersmaeker para as suas criações surpreendem com frequência por escaparem ao cardápio habitual – Golden Hours (As You Like It) partia de Another Green World, de Brian Eno, A Love Supreme (que terá uma nova versão em 2017) nasceu do encantamento com o álbum homónimo de John Coltrane. E na sua obra nunca a música é uma escolha aleatória, uma coordenada de relação ténue com os movimentos que se desenham em palco.

 No caso da música de Gérard Grisey, Keersmaeker enamorou-se pela sua inscrição naquilo a que se chamou “música espectral” nos anos 70, movimento de que o francês foi um dos principais impulsionadores. Ao contrário de outras peças em que a coreógrafa belga começa por dirigir uma série de improvisações até encontrar o tom certo para aquilo que pretende desenvolver, em Vortex Temporum, diz Michaël Pomero da companhia Rosas ao PÚBLICO, “ela tinha uma ideia muito clara daquilo que queria fazer desde o início, já sabia como queria que a coreografia existisse no espaço”. Um dos princípios que estava já definido era a interpretação ao vivo da peça de Grisey pelo ensemble Ictus e a associação de cada um dos sete bailarinos a um dos sete músicos em palco. Cada bailarino teria de dançar em ligação ao músico e ao instrumento correspondente.

Para que isso pudesse acontecer, a coreografia foi gerada a partir de uma rigorosa e detalhada análise da partitura, compasso a compasso. Tanto assim, relata Pomero, que foram necessárias “cinco semanas para criar os primeiros dois minutos do terceiro movimento”. “Tivemos de escavar e escavar, até finalmente descobrirmos como compor esse trecho. Só depois a peça se desvendou de uma forma muito mais rápida.” Até porque apenas no momento em que começaram a saber de cor uma partitura extremamente exigente puderam começar a relacionar-se com os músicos e a encaixar movimento nas notas, a descobrir uma unidade entre dança e música.

Em vez do período habitual de experimentação com os bailarinos, Anne Teresa de Keersmaeker iniciou os ensaios com a companhia levando consigo “uma frase base, o esqueleto de toda a coreografia”. A cada um dos intérpretes foi depois pedida uma série de variações em torno dessa frase-mãe. “E porque sabíamos que estávamos neste projecto e já conhecíamos a música”, diz Pomero, “começámos a construir material que não faríamos provavelmente se fosse Mozart, Bach ou Beethoven.”

História e instinto

Grisey está, de facto, muito longe de ser Mozart, Bach ou Beethoven. Numa partitura de um desses compositores, as coordenadas de ritmo ou tempo são relativamente fáceis de seguir para os bailarinos. Mas em Vortex Temporum, quinta e sexta-feira na Culturgest, em Lisboa, os compassos são complexos e mutantes o suficiente para exigir uma atenção extrema e constante ao som. Michaël Pomero reconhece que nunca até aqui tinha desenvolvido uma relação tão intensa com a música de um espectáculo ou com um músico concreto. “É isso também que torna esta obra tão prazenteira e tão focada no instante”, defende o bailarino. Ao contrário de uma coreografia aprendida e gravada na memória do corpo para reprodução mais ou menos automática, Vortex Temporum é diferente todas as noites, tal como o são as salas, o som, o clima, a disposição do ensemble. “E estamos tão ligados aos músicos”, acrescenta Pomero, “que quaisquer erros ou hesitações que eles façam ao tocar implicam uma ‘queda’ imediata para nós. A relação é tão extraordinária que pela natureza da própria música, complexa e em que as camadas dos instrumentos são subtis, que se não estivermos sintonizados com o nosso músico acabamos a dançar toda a massa sonora – e não é isso que nos interessa.”

Há um lastro deixado por Vortex Temporum nos bailarinos desde a estreia, em 2013. Michaël Pomero confessa que a sua relação com a música que dança se alterou desde então, procurando uma ligação diferente com as notas e a textura do som, mesmo quando é tempo de abordar reportório de música antiga. Até mesmo agora, quando a companhia prepara a estreia da ópera de Mozart Così fan Tutte, a estrear em Janeiro de 2017 na Ópera de Paris, há algo que permanece dessa experiência. A grande diferença, esclarece o bailarino, é que em Così fan Tutte há que convocar também o passado para uma apresentação contemporânea. Em Vortex Temporum, não existe História a respeitar. Manda apenas o instinto.