O mundo não é apenas factos no Doclisboa

O festival de cinema documental apresenta esta segunda-feira em Lisboa a sua 14.ª edição, com duas dezenas de filmes portugueses e uma programação reorganizada. Mantém intacta a ambição de estar aberto à aventura. Começa a 20 de Outubro.

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“Andámos sempre a fazer uma espécie de surf entre fronteiras, e nunca quisemos categorizar nem definir essas fronteiras,” entusiasma-se Cíntia Gil enquanto folheia as provas do programa do Doclisboa 2016, apresentado esta segunda-feira em Lisboa. “E agora acredito que finalmente chegámos a um momento em que a programação do Doclisboa assume que a imaginação e o real são partes intrínsecas um do outro. Fazemos uma defesa da imaginação no cinema do real – e isto não significa uma procura da originalidade nem de formas extraordinárias apenas porque sim. Significa, apenas, reconhecer que o mundo não é apenas factos.”

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“Andámos sempre a fazer uma espécie de surf entre fronteiras, e nunca quisemos categorizar nem definir essas fronteiras,” entusiasma-se Cíntia Gil enquanto folheia as provas do programa do Doclisboa 2016, apresentado esta segunda-feira em Lisboa. “E agora acredito que finalmente chegámos a um momento em que a programação do Doclisboa assume que a imaginação e o real são partes intrínsecas um do outro. Fazemos uma defesa da imaginação no cinema do real – e isto não significa uma procura da originalidade nem de formas extraordinárias apenas porque sim. Significa, apenas, reconhecer que o mundo não é apenas factos.”

Há, ainda assim, factos a comunicar: no caso, a programação do 14.º Festival de Cinema Documental de Lisboa, decorre de 20 a 30 de Outubro na Culturgest, cinema São Jorge, Cinemateca Portuguesa e Fundação Calouste Gulbenkian. Sempre nas palavras de Cíntia Gil, directora do festival desde 2012, o Doclisboa continua a defender a todos os níveis “a diversidade no documentário”, exemplificada na retrospectiva Por um Cinema Impossível, Documentário e Vanguarda em Cuba. São 12 sessões temáticas dedicadas ao documentário cubano e comissariadas pelo cineasta e investigador Michael Chanan, em co-produção com o Museu Rainha Sofia de Madrid, que Davide Oberto, programador regular e co-director da edição 2016, explica ser modelo exemplar dessa diversidade: “Parece ser uma retrospectiva abertamente política, mas depois olhamos para os filmes e verificamos que está ali tudo misturado, documentário, ficção. Há uma explosão de géneros.” Essa “explosão” é essencial à própria identidade do Doc como um espaço de abertura e diálogo, como diz Oberto. "Não queremos ficar fechados em mundos fixos, queremos estar abertos a tudo.”

Não se podiam imaginar filmes mais abertos e diferentes uns dos outros, do que as escolhas para as sessões de arranque e fecho. Basta pensar que, a abrir, dia 20, está Oleg y las Raras Artes, do espanhol Andrés Duque, filme sobre o pianista russo Oleg Karavaychuk - “um pianista que fala de arte o tempo todo,” explica Cíntia Gil, “mas que está também a falar de política, porque foi o último homem a tocar no piano de Nicolau II e quase tem memória pessoal do assassinato dos filhos do czar… Queríamos uma abertura que ‘abrisse’, que nos deixasse cheios de vontade de ver coisas. E no encerramento queríamos provocar, em vez de fechar queríamos fazer perguntas e voltar a abrir.”

Daí a escolha para o fecho de Nos Interstícios da Realidade, labour of love de João Monteiro, director do MotelX, que há sete anos trabalhava neste documentário sobre o cineasta António de Macedo, autor de A Promessa, As Horas de Maria e Os Abismos da Meia-Noite. Cíntia Gil diz que colocar este filme no encerramento é “falar da gestão de uma certa memória do cinema português que se faz permanentemente, mas também propor uma outra maneira de olhar para ele”.

Essa memória do cinema feito entre nós prolonga-se no olhar sobre José Álvaro de Morais, autor de O Bobo, que José Nascimento (Repórter X, Tarde Demais) propõe na sua nova longa Silêncios do Olhar; e na recuperação de um documentário “perdido” realizado em 1981 para a RTP por Nascimento e Augusto M. Seabra sobre Manoel de Oliveira. Ambos os filmes integram a secção Riscos, o “laboratório de programação” que Seabra animou desde 2007 – a escolha de Manoel de Oliveira: 50 Anos de Carreira como sessão de abertura dessa secção funciona, aliás, também como uma homenagem ao programador e crítico do PÚBLICO, que cessou a sua colaboração com o Doc com a edição de 2015.

Pelos Riscos vai igualmente passar um mini-ciclo de seis sessões dedicado à correspondência no cinema intitulado Filmes de Correspondência: Missivas, Distâncias e Deslocações, com obras de Ute Aurand, Ruth Beckermann, Saul Levine, David Brooks, Atom Egoyan e Mark Cousins, e que “faz a ponte” com um outro título português: Correspondências, de Rita Azevedo Gomes, que teve estreia mundial em Agosto no concurso oficial de Locarno e chega oficialmente a Portugal integrado na competição principal do Doc.

Cíntia Gil fala de coincidências e contaminações: “A ideia deste ciclo de correspondências já existia quando apareceu o filme da Rita, mas tem também a ver com o que a Luciana Fina faz este ano.” Fina, artista multidisciplinar e programadora italiana radicada em Lisboa há 25 anos, é a convidada da secção multimedia Passagens; a instalação que estará patente na Gulbenkian até Janeiro, Terceiro Andar, está igualmente relacionada com a sua longa do mesmo nome que vai ter estreia no festival – sublinhando, mais uma vez, o modo como a própria montagem do programa vai abrindo “vasos comunicantes” que lançam outras luzes sobre os filmes. 

A directora do festival cita a presença nos Riscos de Night and Fog in Zona, documentário do crítico coreano Jung Sung-il sobre o cinema do chinês Wang Bing, que já venceu o grande prémio da competição por três vezes e cujo Ta’ang será exibido no festival; Davide Oberto evoca a presença da video-artista belga Manon de Beur, que irá completar a exibição do seu mais recente filme An Experiment in Leisure com um programa escolhido “à medida” do Doc, que inclui The Role of a Lifetime, obra do letónio Deimantas Narkevicius sobre o documentarista britânico Peter Watkins.

Vinte portugueses

Watkins é o alvo da outra grande retrospectiva do Doc 2016, uma integral que vai do célebre filme sobre a Terceira Guerra Mundial que realizou para a BBC em 1966, The War Game (e que ganhou o Óscar de melhor documentário), às produções que realizou já no auto-exílio de uma Inglaterra que sempre sentiu não o compreender. Watkins reconstituiu a vida do pintor norueguês Edvard Munch ou a Comuna de Paris e é um dos segredos mais bem guardados do documentário mundial. Cíntia Gil descreve-o como “alguém que tem assumidamente um olhar interventivo sobre a relação com a história e a imagem, mas que o faz de uma maneira muito original, experimentando nos anos 1970 uma série de coisas que agora nos parecem novidades”.

Quanto à presença portuguesa – composta de duas dezenas de filmes entre curtas e longas, tanto a concurso como fora dele – a directora do Doclisboa fala de uma oferta muito diferente, muito rica, onde se sente que “os realizadores estão a viajar”. É o caso de dois títulos que já vêm com recompensas internacionais, Ama-san, de Cláudia Varejão (sobre as mergulhadoras japonesas de abalone, premiado em Karlovy Vary) ou How I Fell in Love with Eva Ras, de André Gil Mata (rodado em Sarajevo e premiado no FIDMarseille), mas também estreias mundiais como Pedra e Cal, de Catarina Alves Costa.

Este último marca a presença portuguesa na nova secção Da Terra à Lua, onde se reencontram veteranos como Avi Mograbi, Sergei Loznitsa, Werner Herzog e o triplo vencedor Wang Bing, mas também obras de Rithy Panh, Pere Portabella ou Mark Cousins, ou o testemunho das memórias de Brunhilde Pomsel, secretária de Goebbels, em Ein Deutsches Leben. “Fazia sentido ter uma secção que não estivesse tão preocupada com questões necessárias a uma competição, e onde pudéssemos pôr filmes de autores que já não vão para a competição. Pareceu-nos fundamental propor ao espectador uma espécie de jogo do presente, fazer uma espécie de futurologia à volta destes filmes.”

A criação da nova secção integra-se numa reorganização da programação para 2016 – com menos salas em relação ao ano anterior, esta simplificação assenta na criação de dois “eixos” geográficos (São Jorge e Cinemateca de um lado, Culturgest e Gulbenkian do outro) e na “diferenciação de públicos entre as secções”. Cíntia Gil aponta a abertura das sessões escolares, até aqui restritas a grupos escolares, ao público geral, e a redefinição da secção Heartbeat como uma “celebração das artes” no geral, menos focada na música e abrindo também para o cinema ou as artes performativas.

A concurso, então, vão estar 30 filmes, metade dos quais em estreia mundial. Tal como em 2015, não há distinções entre “curtas” (abaixo dos 60 minutos) e “longas”: na competição internacional a vantagem vai para as longas, 12 ao todo, entre as quais Correspondências, os novos filmes de Pippo Delbono (Vangelo, sobre a encenação do Evangelho com um elenco de refugiados) e da dupla Joana Hadjithomas/Khalil Joreige (Ismyrna, sobre as mudanças da região otomana), Calabria de Pierre-François Sauter (que acompanha dois cangalheiros emigrantes, um dos quais português, no repatriamento de um cadáver) ou o muito falado Rat Film do americano Theo Anthony, um olhar sobre Baltimore (a cidade de The Wire) à luz da população de… ratazanas. Entre os 12 títulos no concurso nacional, 9 dos quais em estreia mundial, destacam-se Ama-san, a estreia portuguesa do documentário ensaístico de Edgar Pêra O Espectador Espantado ou a mais recente obra da brasileira Marília Rocha, A Cidade onde Envelheço, sobre a imagem de Lisboa para quem é português no Brasil ou brasileiro em Portugal. 

Há mais – muito mais – mas fica à descoberta no programa do Doc, disponível a partir desta segunda-feira no site oficial. Com a certeza, como diz Cíntia Gil, de que é “um festival aberto, que questiona, que propõe outra maneira de olhar." A primeira contribuição que fazem para o cinema é mostrar filmes.