Donald Trump e os americanos
Temos amanhã à noite o primeiro debate entre Hillary Clinton e Donald Trump. É o arranque do final da corrida até 8 de Novembro. É para ambos um confronto de alto risco. Todos esperam um debate fora dos modelos normais. A regra de ouro de um candidato é não cometer erros. Trump não funciona assim. Soma gaffes, provocações, indecências e não teme mentir para lá de todos os limites. O que noutro candidato seria defeito ou "suicídio eleitoral" nele parece virtude. Os seus adeptos podem reconhecer que é um demagogo ou um charlatão mas aplaudem essas tiradas — e tanto mais quanto sejam denunciadas pelos media ou adversários.
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Temos amanhã à noite o primeiro debate entre Hillary Clinton e Donald Trump. É o arranque do final da corrida até 8 de Novembro. É para ambos um confronto de alto risco. Todos esperam um debate fora dos modelos normais. A regra de ouro de um candidato é não cometer erros. Trump não funciona assim. Soma gaffes, provocações, indecências e não teme mentir para lá de todos os limites. O que noutro candidato seria defeito ou "suicídio eleitoral" nele parece virtude. Os seus adeptos podem reconhecer que é um demagogo ou um charlatão mas aplaudem essas tiradas — e tanto mais quanto sejam denunciadas pelos media ou adversários.
Estas eleições são diferentes. Resume The Economist: "Desta vez não é exagerado dizer que esta eleição não é apenas sobre quem deverá ser Presidente, mas sobre que espécie de país a América deveria ser."
O percurso de Trump, que desarticulou o Partido Republicano e agora desafia Hillary, foi uma surpresa e um facto extraordinário. Os fantasmas da América mais conservadora não explicam a dimensão e a persistência do fenómeno. Este faz certamente parte do vento populista que sopra no mundo, particularmente na Europa. Mas veste "roupas americanas". E tem uma ressonância particular porque está em jogo a sorte da maior potência do planeta.
Os temas e o estilo
A campanha de Trump tem duas vertentes que ele unifica numa mistura explosiva. Primeiro, exprime a ansiedade económica dos "perdedores da globalização", ferida agravada pela grande crise de 2008. Diz um seu adepto: "A candidatura de Trump é música celestial aos seus ouvidos. Critica as indústrias que exportam para o outro lado do mar os seus empregos. O tom apocalíptico adequa-se à sua experiência vivida no terreno. Ele adora irritar as elites, o que muitas pessoas desejariam fazer mas não conseguem por falta de instrumentos."
Os dados estatísticos não permitem olhar as classes médias brancas como um todo. Há ganhadores e perdedores, os que se adaptaram à globalização e os que ficaram de fora. É fundamentalmente esta segunda fracção que é a coluna vertebral do povo de Trump.
A segunda vertente é um estilo que baralha as regras. O Washington Post lamentou há dias a ineficácia dos "mainstream media" perante a campanha — de resto, apenas 14% dos americanos se informam através deles. Parte do eleitorado a quem Trump se dirige partilha das suas idiotices e provocações — contra imigrantes e refugiados, insinuações racistas, justificação da tortura, declarações de amor a Putin e outros ditadores, manifestando, enfim, a mais patente irresponsabilidade na política internacional, combinando o isolacionismo com brutais ameaças imperiais. Os outros absolvem-no: "As acusações [contra Trump] exprimem uma instituição ilegítima ou um sistema" que usa o seu poder para os frustrar. Eles desprezam a elite porque sentem que ela não os escuta e os despreza. Se as elites odeiam Trump é a prova de que ele está certo.
Transforma em revolta a frustração social e económica: "Nós contra eles". Dá uma demagógica expectativa de mudança. As elites têm aqui uma alta responsabilidade: quando ignoram a exasperação popular estão a preparar um imenso "motim". Escreve o Financial Times: "Nos Estados Unidos, a elite de direita semeou ventos e agora colhe tempestades. Mas tal pôde acontecer porque a elite de esquerda alienou a fidelidade de amplos estratos da classe média autóctone."
Um fascismo americano?
No fim de 2015 começaram a surgir na imprensa americana artigos que assimilam a campanha de Trump ao fascismo. Há uma interrogação recorrente sobre a repetição da História: "Poderia [o fascismo] acontecer aqui?"
Robert Paxton, historiador americano do fascismo, preveniu em Dezembro contra o abuso das analogias históricas. Prefere ver o fenómeno como um "nacionalismo populista". Mas não encerrou o debate. O historiador britânico Andrew Roberts apontou Mussolini como "a matriz secreta de Trump." O neoconservador Daniel Pipes fala em "neofascismo" e vê Trump como "um perigo interno inédito desde há 150 anos, uma ameaça que poderia minar a sociedade americana e pôr em causa a posição da América no mundo".
Outro e mais célebre neoconservador, Robert Kagan, voltou à carga em Maio com um artigo intitulado "Eis como o fascismo chega à América." Trump poderia conquistar o poder "apesar do seu partido, catapultado para a Casa Branca por uma devota massa de seguidores". Se ele vencesse, "imaginem o poder que teria". Kagan vai votar em Hillary.
Não interessa prolongar os exemplos, apenas sublinhar que não se trata de um debate histórico mas de um combate político: o termo "fascismo" serve para sublinhar a "perigosidade política" do milionário. A América é uma sociedade individualista incompatível com fascismos.
Escrevendo no fim das primárias republicanas, Jacob Weisberg, director do Slate, frisa que Trump não tem uma ideologia, é um oportunista. "O conflito na campanha de 2016 já não é entre Trump e os seus opositores republicanos: agora, é Trump contra o sistema político americano. (...) Os fundadores americanos designaram uma ordem constitucional para prevenir o exercício de um poder tirânico. Podemos crer na eficácia do sistema, mas sem desejar vê-lo testado desta maneira." Enfim: "Se os republicanos sãos falharam em eliminar Trump, esta tarefa caberá a Hillary Clinton."
O "factor humano"
"O estilo é o homem." Com a sua vulgaridade, Trump é um catalisador das frustrações. Ao mesmo tempo, desafia as instituições e a incerta a ordem mundial. Poderá, se for eleito, abandonar os seus temas — o ódio à imigração, a islamofobia, o desprezo pelas instituições, o proteccionismo, o isolacionismo, a hostilidade à NATO e à UE? Talvez os "tempere" mas renegá-los enfraqueceria a sua base. O seu programa é uma garantia de conflito entre os poderes.
Fala-se muito no factor "temperamento". A História conhece demasiados precedentes em que a personalidade dos líderes conduziu os povos umas vezes à redenção, outras à catástrofe. Egocêntrico, imprevisível e agressivo, como se comportaria no poder? Anotou Paxton numa entrevista: "O perigo parece-me ser o risco de bloqueio entre Trump e o Congresso ou entre Trump e os tribunais, ou que ele assuma acções inconstitucionais e as pessoas tenham medo de lhe dizer não."
Muitas das suas ideias já entraram nos espíritos e não desaparecerão tão depressa, mesmo se ele perder. Não seria apenas uma política externa à deriva o que enfraqueceria os EUA e semearia insegurança no mundo. Também uma América em convulsão interna seria uma ameaça para "o resto".
Tudo isto parece verdade. Mas, ensina a História, as instituições americanas sempre acabaram por absorver as convulsões e as ameaças à democracia. Pode demorar, mas não deixarão de funcionar.