As canções sem maquilhagem das Señoritas

Com o fim de A Naifa, Sandra Baptista e Maria Antónia Mendes voltam a juntar-se, agora enquanto Señoritas. Um duo para canções cruas, nascidas sem qualquer ambição de grandiosidade.

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FOTO: Nuno Carvalho

Desde a adolescência, Sandra Baptista acumula cartas que escreve a si mesma. Não são propriamente páginas soltas de um diário intermitente. Não descrevem ao pormenor os seus dias; antes lhe falam de determinadas fases da vida, como a transição da puberdade para a adolescência plena, a entrada nos Sitiados, tudo o que aparentasse ter o peso de uma mudança significativa. São escritos avulsos, que a música diz que se foram aperfeiçoando, e lhe permitem aceder e arrumar emoções que lhe escapam de outra forma. “Saem só mesmo naquele momento em que estou comigo e consigo parar”, descreve ao Ípsilon. “Sou um bocado hiperactiva, estou sempre a mexer-me, e a escrita faz-me parar. Pára o tempo, conecta-me comigo e as palavras saem num rasgo.”

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Desde a adolescência, Sandra Baptista acumula cartas que escreve a si mesma. Não são propriamente páginas soltas de um diário intermitente. Não descrevem ao pormenor os seus dias; antes lhe falam de determinadas fases da vida, como a transição da puberdade para a adolescência plena, a entrada nos Sitiados, tudo o que aparentasse ter o peso de uma mudança significativa. São escritos avulsos, que a música diz que se foram aperfeiçoando, e lhe permitem aceder e arrumar emoções que lhe escapam de outra forma. “Saem só mesmo naquele momento em que estou comigo e consigo parar”, descreve ao Ípsilon. “Sou um bocado hiperactiva, estou sempre a mexer-me, e a escrita faz-me parar. Pára o tempo, conecta-me comigo e as palavras saem num rasgo.”

Foi um desses escritos saídos sem aviso que Sandra mostrou a Maria Antónia (Mitó) Mendes num almoço entre as duas, já A Naifa tinha ouvido a marcha fúnebre. Baixista e vocalista da “banda de fado” que Luís Varatojo e João Aguardela inventaram em 2004 – enxertando a sonoridade da guitarra portuguesa num grupo de morfologia rock –, ficaram ligadas pela amizade e por uma química instantânea.

Foi por aí que começaram: a amizade, a química e uma letra passada sobre a mesa do almoço. “Agora de manhã fiz esta letra”, anunciou Sandra. “Vê lá o que achas.” Foi quanto bastou. Assim que tiraram a comida do caminho, foram para a sala de ensaio em casa de Sandra – “é o nosso toys’r’us”, diz a baixista – em que adufes e xilofones disputam a atenção a guitarras e bateria. Tudo montado, tudo pronto a usar. Mitó agarrou numa baqueta e numa tarola, Sandra pegou no acordeão (que era o seu instrumento nos Sitiados) e Solta-me saiu de jacto, praticamente como a ouvimos agora em Acho que É meu Dever Não Gostar, o disco de estreia das duas Señoritas.

Para os mais distraídos, esclareça-se que Señoritas é o título de um dos temas mais populares d’A Naifa, canção construída sobre poema de Tiago Gomes. Quando Sandra e Mitó começaram a encontrar-se de “forma descomprometida”, adoptaram a designação por estar mesmo ali à mão. Só que quando deram por isso a designação já se tinha colado à pele fina das canções. E fina porque cada um dos temas das Señoritas assenta numa fragilidade quase total.

Tudo nestas canções é cru e pouco produzido, tudo é tocado pelas duas com recursos mínimos, pegando Mitó na tarola ou na guitarra e Sandra no baixo ou no acordeão para acompanhar a voz, vogando livremente entre referências como a acordeonista tradicional Eugénia Lima e as luminárias do pós-punk Joy Division.

Ou, como diz Sandra, entre uma canção “muito limpa e muito perfeita” como Nova, e “uma sujidade e um ruído” que impulsionam Acho que é meu dever não gostar, espécie de esqueleto western soturno. “O disco e as letras remetem-nos para uma zona que está tapada no dia-a-dia, aquilo que as pessoas não assumem mas que todos pensamos e sentimos de vez em quando”, resume Mitó. E exemplifica: “As frustrações, as raivas, os ressentimentos – que a Sandra escreveu muito bem”.

Dizendo-se bem resolvida e feliz, a cantora confessa que na criação artística se sente sobretudo atraída pelo lado mais negro dos dias. Negro não tanto no sentido de remeter para sentimentos reveladores de ruindade, mas antes por se reportar a zonas emocionais menos iluminadas. Por isso, quando Sandra lhe mostrou a primeira letra, precisou imediatamente de criar uma linha de voz que transportasse aquelas palavras. “Oh Mitó, tenho mais, tenho ali uma gaveta cheia, ok?”, disse-lhe Sandra no fim da primeira sessão.

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FOTO: Nuno Carvalho

Viver o momento

Depois de Solta-me ter nascido quase de chofre, o entusiasmo das suas tornou-se “uma drogazinha”, como lhe chamam. Feita uma primeira música e percebendo que estavam ambas a descobrir percursos musicais que desconheciam, os encontros entre as duas começaram a “tornar-se viciantes”. Em parte, dizem, porque nunca tinham estado na posição de criar um projecto de raiz. “Estive em vários grupos, mas todos já existiam”, diz Sandra Baptista. “Agora estamos na origem de tudo, somos nós que comandamos isto.”

E um dos mandamentos que adoptaram foi o de fazerem música para saborear sem pressões e em que se uma se enganar, a outra não responde com um raspanete. Não há nas Señoritas uma preocupação perfeccionista, facilmente derrotada pela ideia de que importa sobretudo “viver o momento”.

Daí que se a música nasceu entre as duas, nunca houve verdadeiramente a intenção de expandir o duo e transformá-lo em qualquer outra coisa que comprometeria a crueza original. Até porque só quando começaram a partilhar com alguns amigos próximos as gravações rudimentares das músicas em que andavam a trabalhar é que perceberam, pelas reacções, que nada daquilo podia resumir-se a uma brincadeira das horas vagas.

Tomando as letras de Sandra necessariamente como ponto de partida –  “a minha alavanca para musicar algo é sempre a letra”, diz Mitó –, as canções foram-se avolumando até terem a forma do álbum Acho que É meu Dever Não Gostar, título igualmente da canção que resume a postura das Señoritas enquanto mulheres que, cansadas de comportamentos tipificados, rebentam com um caminho para reclamar outro, num elogio à mudança.

As Señoritas abrem igualmente espaço para uma musicalidade que tanto aponta para um certo cabaret-pop que conhecíamos dos Três Tristes Tigres, de Partes Sensíveis, quanto para um lado quase-religioso tangente aos Madredeus dos primeiros tempos, ou para a pura teatralidade que faz de Alice uma canção perversamente infantil. “Considero-me muito mais actriz do que cantora”, reconhece Mitó. “Já n’A Naifa considerava isso. Será esse o lado mais forte que desperta em mim quando ela me mostra estas letras que me tocam muito.”

E é sempre por aí que começam. Por vezes, quando Sandra persegue durante vários dias uma frase ouvida a alguém na rua e que não a larga até que traz todo um poema rude e bruto atrás de si. Quando o Ípsilon encontra as duas numa esplanada de Lisboa, acabava de deitar para fora uma letra começada na boca de uma senhora que ouvira dizer: “Deus é um filho da puta”.