De volta à Mesopotâmia em véspera da grande batalha
1. Anuncia-se a batalha para reconquistar o Norte do Iraque ao ISIS: “dentro de semanas”, diz a coligação, entre americanos e curdos. Os jihadistas estão a escavar uma trincheira à volta de Mossul, prometem lutar até à morte. Dentro da cidade, dois milhões de pessoas são reféns. As organizações humanitárias no Curdistão temem não dar conta de centenas de milhares de refugiados. E, num pequeno monte não muito longe de zonas infiltradas pelo ISIS, arqueólogos portugueses & cia acabam de cobrir com terra o trabalho deste Verão, para o proteger até à próxima.
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1. Anuncia-se a batalha para reconquistar o Norte do Iraque ao ISIS: “dentro de semanas”, diz a coligação, entre americanos e curdos. Os jihadistas estão a escavar uma trincheira à volta de Mossul, prometem lutar até à morte. Dentro da cidade, dois milhões de pessoas são reféns. As organizações humanitárias no Curdistão temem não dar conta de centenas de milhares de refugiados. E, num pequeno monte não muito longe de zonas infiltradas pelo ISIS, arqueólogos portugueses & cia acabam de cobrir com terra o trabalho deste Verão, para o proteger até à próxima.
2. É a equipa que em Maio de 2015 acompanhei. Este ano não deu, estava na Palestina, mas se Agosto é tórrido em Jerusalém, imagino naquele montinho mesopotâmico, sete horas a escavar ao sol. “Agora percebo porque ninguém vai para lá em Agosto”, diz André Tomé, um dos capitães do projecto. Os telemóveis deixavam de funcionar. As baterias do drone-fotográfico inchavam. O drone desmaiou, caiu a pique.
3. Esta pesquisa, luso-americana, é dirigida pelos portugueses André Tomé e Ricardo Cabral (Centro de Estudos de Arqueologia, Artes e Património e da Universidade de Coimbra) e pelo belga Steve Renette (Universidade de Pensilvânia). Os curdos são parceiros institucionais (como em qualquer escavação estrangeira) e depois a equipa varia consoante a temporada. O primeiro elenco, em 2013 (quando foi encontrada a tabuinha de argila com mais de cinco mil anos que comprovou a boa escolha daquele monte) era mais reduzido. No ano passado, os portugueses estavam em força, cinco arqueólogos. E este ano foi um verdadeiro “onze” internacional: dois portugueses, dois belgas, dois ingleses, uma italiana, um americano-iraniano-cubano, dois curdos iraquianos e um sírio curdo. Língua franca, inglês. Não houve cachecol do Benfica no frigorífico. E a cada volta a casa, depois da dura jorna das 5h30 às 12h30, havia a recompensa da cozinha síria, porque o perito sírio estava acompanhado da mulher, e ela salvou toda a gente.
4. Tal como no ano passado, André e Ricardo foram à frente. Chegaram a 9 de Agosto a Sulaymaniah para procurar casa onde alojar toda a equipa. A de 2015 era um pouco distante de mais, havia que passar um checkpoint. Este ano foi mais fácil, ficaram com a primeira que viram, no próprio vale de Bazian. A dez minutos de carro do monte, Kani Shaie, maior do que a anterior, e mais barata, 700 euros por um mês (se fosse para locais, 100). Então quando o grosso da equipa chegou, entre 12 e 13 de Agosto, já estava tudo pronto. Como Bazian é um vale de onde saíram jihadistas, terra natal de um cabecilha do ISIS, e a tomada de Mossul estava mais iminente, um dos cuidados extra este ano foi os estrangeiros deixarem de ir comprar comida em bando. Se André passa por curdo, Steve é ruivo e os restantes muito brancos. De resto, André foi checando os discursos do imã a cada sexta-feira, e o tom manteve-se sempre anti-ISIS, relataram os parceiros curdos.
5. Sendo maior, a casa não tinha ar condicionado. Portanto, fora o casal sírio, os quartos ficaram vazios e toda a gente levou o colchão para o telhado. Quem já dormiu na região em Agosto pode perceber. De vez em quando o vento trazia a poluição das cimenteiras e da refinaria, que estão a consumir aquele vale onde agricultura e economia nasceram. E é certo que todas as noites o telhado acordava com o muezzin a chamar para a primeira oração. Mas tudo parecia melhor do que sufocar.
6. Mais iminentes que o ISIS ou a batalha eram os escorpiões. A equipa viu pelo menos três, das espécies mais perigosas do mundo, segundo os locais. Mas ainda mais temível, talvez, fosse a possibilidade de um espectacular acidente na estrada, dada a tradição local ao volante, sobretudo em cruzamentos. As tardes, depois do repasto sírio, eram passadas em limpeza de materiais, lavagem de cerâmicas, desenhos, bases de dados, e a logística da casa para 12, que além dos alimentos implicava muitos garrafões de água. Ainda assim, depois de algum contacto com água não potável, Ricardo perdeu sete quilos em um mês. Tanto era o calor, e os perigos, que um dia acharam que mereciam uma cerveja. Discretamente foram a um dos poucos lugares de Sulaymaniah onde se vende álcool e que viram ao abrir o frigorífico? Sagres. Mais barata do que em Portugal. Esse foi um bom fim de tarde.
7. Também houve aquele dia em que André e Steve foram à televisão curda (a do PUK, porque também há a do PDK, os partidos locais). Uma entrevista de vinte minutos em directo, nada menos. Tinham um auricular com a tradução simultânea, mas André só conseguia perceber metade do inglês da tradutora e Steve quase nada, portanto respondiam ao que supunham que seria a pergunta, imperturbáveis, enquanto as belas imagens do drone iam mostrando aquele pedaço de Mesopotâmia escavado.
8. E os resultados desta temporada? Primeiro, muitos dias de frustração. A parede do quarto milénio antes de Cristo que tinham descoberto no ano passado, e prometia um edifício importante, com importantes coisas dentro, afinal deu em nada. Mas depois começaram a somar avanços. Estão certos de que naquele monte existiu uma espécie de caravançarai, um entreposto comercial (a tal tabuinha de argila é uma primeira factura, comprovante de trocas entre Norte e Sul da Mespotâmia). Já perceberam que as camadas descem pelo menos até ao sexto milénio antes de Cristo, porque encontraram fragmentos de cerâmica pintada com oito mil anos. Entretanto, o arqueólogo sírio, que se revelou um parceiro exímio, cobiçado por meio mundo nas redondezas e além, escavou a base do monte, onde costumam estacionar o carro, e encontrou um edifício monumental da época sassânida, ou seja, persas, algures entre o século III e a chegada dos árabes, sobre a qual pouco se sabe. E nos dois últimos dias da escavação no monte apareceu um silo com muitas impressões de selos. Os selos eram a assinatura do comerciante, os mesmos que se imprimiam nas tabuinhas de argila. E agora a equipa tem 22 impressões de selos em fragmentos. “É uma colecção extraordinária”, diz André. “O maior corpo conhecido nesta região de Zagros.” As montanhas que dividem Iraque e Irão. Também acharam “sementes de cevada preservada como nunca”, já enviaram amostras para os Estados Unidos, o americano-iraniano-cubano, que é paleoetnobotânico, suspeita que podem ser de uma espécie selvagem que se julgava já não existir naquela altura. Isto é estudar os primórdios da agricultura: “Não é vistoso como um tesouro, mas permite perceber como as pessoas viviam, o que comiam, como exploravam aquele ambiente.” Já finda a escavação, procederam ao re-enterramento num cemitério islâmico de todos os ossos que tínham escavado no ano passado, dando assim sepultura a 27 corpos, tal como as autoridades locais haviam requerido. É verdade que pelo meio vão alguns ossos pré-islâmicos, portanto politeístas, mas talvez a eternidade seja mais fácil do que 2016 quanto a isso.
9. Tudo somado, já descansado, em Coimbra, André pensa que quando está lá, no calor de Kani Shaie, exausto, mais os perigos iminentes, se pergunta: o que estou aqui a fazer? “Mas agora só quero voltar. Adoro estar lá.” Acho que entendo.