Metamorfose do modelo político
A questão central é a de saber que PS vai sobreviver e resultar quando terminar esta metamorfose da política portuguesa.
Se alguém tinha dúvidas do quanto mudou o modelo político depois das legislativas, as últimas semanas desfizeram--nas. A metamorfose do modelo político ficara já patente com a forma como o PS de António Costa buscou e conseguiu negociar entendimentos como o BE, o PCP e o PEV de modo a que estes apoiassem parlamentarmente o seu Governo e chegasse a primeiro-ministro, mesmo tendo ficado em segundo lugar nas urnas.
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Se alguém tinha dúvidas do quanto mudou o modelo político depois das legislativas, as últimas semanas desfizeram--nas. A metamorfose do modelo político ficara já patente com a forma como o PS de António Costa buscou e conseguiu negociar entendimentos como o BE, o PCP e o PEV de modo a que estes apoiassem parlamentarmente o seu Governo e chegasse a primeiro-ministro, mesmo tendo ficado em segundo lugar nas urnas.
Perante o ineditismo dos acordos de poder, muitos consideraram que se estava face a uma jogada política oportunista de António Costa, para conseguir concretizar o seu projecto de chefiar o Estado. Mas não era isso. Por mais que Costa seja um político pragmático, o seu projecto de poder incluía a demanda de mudar os azimutes da orientação estratégica e de programa político do PS, mudança indiciada de forma mais ou menos vaga nas moções às primárias internas, assim com na ao Congresso de 2014 e nos programas eleitoral e de governo.
Essa mudança de orientação político--programática foi expressa primeiro na rejeição do modelo de austeridade que tinha imperado no final do Governo PS de José Sócrates, e depois consubstanciado com o Governo de Pedro Passos Coelho e Paulo Portas. Uma alteração que foi então vista, de forma simplista, como uma mera mudança propagandística. Mas era mais que isso, como se tornou patente. Concretamente, com a notícia de que o Governo se prepara para avançar com um novo perfil de impostos sobre os bens imóveis. Mas também a aprovação anterior do diploma, à espera de promulgação do Presidente da República, que acaba com o sigilo bancário quando as contas acumulam mais de 50 mil euros.
O problema que se coloca não é — ou não é apenas — o de saber se o PS está a enganar o seu eleitorado. Um programa de governo não tem de antecipar à partida o perfil de impostos a aplicar. E não é inédita uma mudança no sistema fiscal não anunciada antes das urnas. A questão central é a de saber que PS vai sobreviver e resultar quando terminar esta metamorfose da política portuguesa, bem como que correlação de forças quer à esquerda, quer também à direita existirá em Portugal.
É certo que muito do que tem sido dito e proclamado em relação ao próximo Orçamento do Estado faz parte do jogo de sombras próprio de qualquer negociação entre partidos. E muito do que se semeia como ideia não é mais do que um teste e uma etapa de um jogo de forças negocial. Faz, aliás, parte das regras proclamações públicas grandiloquentes para tentar forçar a prevalência de propostas negociais. Daí que seja até compreensível a razão por que o PS deu espaço a que, quer o BE, quer o PCP defendessem aquilo que é normal passar por propostas de partidos mais à esquerda.
O que resta perceber é até onde irá o PS nesta negociação. Se irá mesmo avançar com a versão mais radical do novo imposto, ou se ficará por alterações ao IMI. Até porque não é de admitir que esta medida seja pacífica ou aceitável pelo PS, que até hoje nunca questionou o modelo económico, que, aliás, ajudou a construir. Nem nunca pôs em causa o modelo fiscal. Nem sequer o modelo de poupança ou de acumulação de riqueza por meios lícitos. Como vai agora o PS aceitar como limite para a propriedade o valor de um milhão de euros? Irá o PS considerar mesmo que a partir desse valor falamos de luxo e de acumulação parasitária?
Por agora, o cimento do poder tem mantido calados os socialistas. À excepção das críticas de Sérgio Sousa Pinto — que desde o início teve a clarividência de perceber a mutação profunda que se ia operar no PS —, vimos já o membro do secretariado do PS e presidente da Câmara de Lisboa, Fernando Medina, distanciar-se. Assim como os deputados Helena Roseta e Paulo Trigo Pereira.
Mas talvez mais profundo do que a alteração de modelo proposto para a recolha de tributação destinada a garantir a redistribuição de riqueza que o novo imposto poderá trazer é o diploma que introduz o fim do sigilo bancário. É tão brutal a alteração que o próprio PCP já veio questionar a sua constitucionalidade. E aqui, mais uma vez, a questão é a de saber se os militantes, dirigentes e eleitores do PS consideram mesmo que ter mais de 50 mil euros no banco pode ser riqueza suspeita. Mesmo para quem poupou uma vida de trabalho ou herdou dinheiro que já foi e é tributado pelo fisco.
A mudança será então surpreendente, já que o PS durante duas décadas tem rejeitado medidas mais duras em relação ao sistema bancário como forma de combater a corrupção. Contrariou primeiro as propostas sobre enriquecimento ilícito do ex-dirigente, ex-ministro e ex-deputado do PS João Cravinho, e depois votou contra os diplomas apresentados pela deputada do PSD e ex-ministra da Justiça Paula Teixeira da Cruz. Até que ponto estará o PS e o seu eleitorado disponível para aceitar que seja posto em causa o princípio da liberdade individual da propriedade privada, que é estruturante das democracias liberais?