Eu, zelota da privacidade
A última coisa de que precisamos é que livros abjectos se tornem vulgares, aceitáveis, e impunes. Cá por mim, sou um zelota desse combate.
No seu editorial de anteontem, a propósito do abjecto livro de Saraiva, o PÚBLICO resolve fazer um daqueles exercícios salomónicos que infelizmente ajudam, do meu humilde ponto de vista, sempre os infractores, criando um falso equilíbrio entre dois lados de uma questão, como se houvesse neste caso excessos equivalentes numa matéria tão delicada como é a privacidade. Refere, em contraponto a Saraiva, aquilo a que chama os “zelotas da privacidade” e como eu não conheço muitos, não me importa de enfiar a carapuça. Sim, sou um zelota da privacidade e todos os dias fico mais zelota, porque o contínuo ataque à privacidade e mesmo, como é este caso, à intimidade, o hábito de a violar sem consequências, a emergência de uma cultura da exposição pública, e a indiferença com que se aceita que privados e estados a violem, é para mim muito preocupante como tendência do futuro. O que está em causa é a liberdade e um difícil e pelos vistos muito frágil direito à privacidade, um dos elementos básicos dessa liberdade que demorou quase 200 anos a conquistar, e mesmo assim só para muito poucos.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
No seu editorial de anteontem, a propósito do abjecto livro de Saraiva, o PÚBLICO resolve fazer um daqueles exercícios salomónicos que infelizmente ajudam, do meu humilde ponto de vista, sempre os infractores, criando um falso equilíbrio entre dois lados de uma questão, como se houvesse neste caso excessos equivalentes numa matéria tão delicada como é a privacidade. Refere, em contraponto a Saraiva, aquilo a que chama os “zelotas da privacidade” e como eu não conheço muitos, não me importa de enfiar a carapuça. Sim, sou um zelota da privacidade e todos os dias fico mais zelota, porque o contínuo ataque à privacidade e mesmo, como é este caso, à intimidade, o hábito de a violar sem consequências, a emergência de uma cultura da exposição pública, e a indiferença com que se aceita que privados e estados a violem, é para mim muito preocupante como tendência do futuro. O que está em causa é a liberdade e um difícil e pelos vistos muito frágil direito à privacidade, um dos elementos básicos dessa liberdade que demorou quase 200 anos a conquistar, e mesmo assim só para muito poucos.
A primeira das objecções quanto a falar-se deste abjecto livro é garantir-lhe a publicidade e, de facto, custa-me ter que o fazer. Mas admito que o mal já está feito e não tenho dúvida de que uma multidão de “saraivinhas” lá irá espreitar pelo buraco de fechadura da capa naquilo que é, mais do que voyeurismo, onanismo sem disfarce. Bom proveito, até porque tem o patrocínio de um responsável de um jornal e de um ex-primeiro-ministro, candidato a voltar a sê-lo, que aceitou dar-lhe caução pública, pelos vistos sem o ler. Duvido muito que tenha sido assim, tanto mais que a referida pessoa, que já tinha dito que lera na sua adolescência um livro de Sartre que não existia, reiterara a sua vontade e determinação irrevogáveis de apresentar o livro de Saraiva quando o seu conteúdo com detalhes mais picantes (por exemplo sobre um seu antigo membro do governo) já estava exposto por todos os lados – e ele lê jornais. Oh se lê! – veio depois mentir dizendo que apenas tomara a decisão de não apresentar este livro depois de o ler. Assustou-se com as reacções e recuou, mas os estragos já estavam feitos quanto à sua pretensão de ter “sentido de Estado”. Como já tive ocasião de dizer: pobre bandeira na lapela que é levada para sítios mal frequentados.
Acrescento mais: que não me venham com a vitimização do autor e do abjecto livro numa defesa da liberdade de expressão contra a censura e os censores, sendo que os comentadores profissionais daquelas caixas de comentários não moderadas, que fazem parte da mesma cultura do abjecto livro, quando souberam do patrocínio do ex-primeiro-ministro desataram a politizar a coisa dizendo que se tratava de “censura de esquerda”, porque o livro atacava “personalidades de esquerda”. Compreende-se, não tinham lido o livro, e depois do recuo do apresentador tiveram que engolir em seco. Aliás, um aspecto interessante das “revelações” do abjecto livro é que se centram nas conversas que teve sobre a vida privada e íntima e em insinuações de carácter, deixando de lado todo o manancial de conversas que certamente também teve sobre a vida económica, dinheiros, fraudes, esquemas. Se essas conversas são da mesma natureza das “revelações” dos “segredos” fez bem, mas a opção é, pelo menos, interessante.
E ainda mais uma prevenção: eu também faço parte da lista de nomes do índice, mais um dos golpes publicitários para incluir nas “revelações” o maior número de pessoas conhecidas. O autor, com quem nunca privei e que só encontrei uma ou duas vezes, conta que se maçou muito com uma conversa anticomunista com ele num comboio para o Porto e repete uma história de ganância, que já tinha publicado, em que troquei escrever para o Expresso pelo Diário de Notícias porque este pagava mais. E depois elogia-me pela apresentação de um livro de seu pai. Não é pois certamente por retaliação com estas “revelações”, que eu digo que o livro é abjecto. Podia ficar caladinho e passar pelos pingos da chuva, alinhando com muitos que tem medo de se meter com esta gente, por óbvias razões – entre outras coisas vingam-se.
O editorial do PÚBLICO refere no comportamento de Saraiva essencialmente a violação das regras do jornalismo, e esse é um aspecto importante dos múltiplos aspectos em que o livro infringe códigos que o seu autor se obrigara a respeitar. Que fique como prevenção para as “fontes” que alimentam o jornalismo com intrigas muito mais do que com informações, e em particular com “informações” que não são mais do que opiniões que nenhum off devia proteger. Mas este é apenas um aspecto, sendo que o outro é o eventual cometimento de crimes no âmbito da violação da vida privada e íntima, difamação e calúnia, razão porque sabiamente a editora, que sai disto tão mal como o autor do abjecto livro, se preveniu contra eventuais processos. Se pessoas e famílias atingidas pelo lixo que Saraiva colocou no livro, muitas vezes na boca de mortos e admitindo saber que não era verdade, não derem esse passo, mais uma vez fica impune este ataque a valores sobre os quais construímos a nossa civilização e costumes, por nenhuma razão que não seja ganhar dinheiro e quinze minutos de fama que nunca teve na sua longa carreira de jornalista.
Mas vamos admitir que algumas coisas são verdade. E depois? O problema subsiste na mesma, não deveriam ser escritas e publicadas porque não há nenhum interesse público que esteja em causa com essas “revelações”, e o direito das pessoas a conduzirem a sua vida privada como entendam é uma parte constitutiva da ideia de liberdade que os homens livres prezam. Não se trata sequer do dilema das revistas cor-de-rosa, que acham que as pessoas devem “assumir” namoros e namoricos, nem me parece correcto descrever o livro como sendo de “mexericos”. Não, é bem mais grave.
Argumentam os não-zelotas da privacidade que há dois tipos de pessoas com direitos de “privacidade” diminuídos, os “famosos” e os políticos. Sempre achei essa argumentação muito perigosa e destinada a justificar abusos e a venda de papel. Sim os “políticos” têm um escrutínio mais rigoroso, principalmente na sua vida financeira e isso pode ser justificável. Mas a sua orientação sexual, a sua vida íntima deve estar tão protegida quanto a de todos, pela razão simples de que é um direito e um valor de todos. Há casos em que, como aconteceu no caso Profumo, ou no risco que a orientação sexual ou determinados modos de vida possam permitir chantagem, em que existe um interesse público em causa. Mas, mesmo aí, trata-se de matéria que deve ser em primeiro lugar das polícias e dos serviços de informação, e só a sua inacção perante um risco real, pode justificar um jornalista fazê-lo e mesmo assim com toda a prudência.
A insinuação de que a defesa da privacidade significa que se “tem algo a esconder” é também um dos caminhos para a violação da privacidade. Sim, têm direito, como toda a gente no mundo livre, em “esconder” a sua vida privada e mais ainda, ninguém tem o direito de lhes perguntar porquê, nem considerar que isso é o “fumo” que implica que haja “fogo”. Há outra variante das mesmas portas para a violação da privacidade é o facto de muitos “famosos” e “políticos” se exporem demasiado para obter efeitos de publicidade e propaganda. É verdade, e há um dia em que se arrependem, e deixam de querer tanta fotografia na praia. Mas, mesmo que dêem o flanco, e cada vez mais dão, nem por isso deixam de ter o direito de mudar de ideias e de exposição, para bem de todos, porque o mau exemplo, infelizmente vem de cima. Nem o dar o flanco permite ir mais longe, a fronteira da privacidade e da intimidade, em particular esta última, não deve nunca ser ultrapassada.
Demoramos muito tempo em sair da aldeia, da vida controlado por todos, para agora aceitarmos que na “aldeia global” o mesmo se possa fazer. Nos últimos duzentos anos na nossa civilização, e falo deliberadamente em civilização, fomos criando o valor e as condições da privacidade. Os quadros de Vermeer mostram o início dessa domesticidade “burguesa”, acessível a muito poucos, mas que tem vindo a evoluir quando as pessoas podem ter casas com espaço para não viveram quatro ou oito no mesmo quarto, têm cortinas nas janelas, e podem ter direito a um espaço de intimidade e de privacidade. Infelizmente para todos nós caminhamos para uma cultura de exposição e indiferença face ao valor da privacidade, impulsionada pelas redes sociais, pelas empresas de comunicações, pelo jornalismo cor-de-rosa a caminho de tablóide, pela cabeça demasiado ligeira de adolescentes e adultos que deveriam ter mais juízo. A última coisa de que precisamos é que livros abjectos se tornem vulgares, aceitáveis, e impunes. Cá por mim, sou um zelota desse combate.
Historiador