O orientalismo é uma construção do Ocidente
Mathias Énard escreveu um romance melancólico sobre a busca do sentido do Oriente. É uma longa e erudita divagação nocturna por geografias afectivas e culturais, de Damasco a Teerão. Bússola recebeu o prémio Goncourt de 2015.
O escritor francês Mathias Énard (n. 1972) viveu no Cairo, em Damasco, em Beirute, em Teerão e em Berlim. Actualmente reside em Barcelona, onde ensina as línguas árabe e persa. O seu grande interesse pelo Oriente, bem como a relação deste com o Ocidente, vem dos tempos em que foi aluno universitário, confessou na entrevista que deu ao Ípsilon a propósito da publicação da tradução portuguesa do seu último romance, Bússola – vencedor do prémio Goncourt de 2015.
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O escritor francês Mathias Énard (n. 1972) viveu no Cairo, em Damasco, em Beirute, em Teerão e em Berlim. Actualmente reside em Barcelona, onde ensina as línguas árabe e persa. O seu grande interesse pelo Oriente, bem como a relação deste com o Ocidente, vem dos tempos em que foi aluno universitário, confessou na entrevista que deu ao Ípsilon a propósito da publicação da tradução portuguesa do seu último romance, Bússola – vencedor do prémio Goncourt de 2015.
Mathias Énard viajou por todo o Médio Oriente: “Sou um viajante muito lento, aprendo línguas, conheço os sítios, vivo neles, fico por algum tempo”, afirma. “A viagem rápida não me interessa”.
Em Bússola, um jovem musicólogo austríaco, Frank Ritter, fechado num apartamento em Viena, revê a sua vida, as suas viagens e as suas diversas obsessões culturais, numa noite de insónia – entre as 23h e as 7.30h – que ocupa as 400 páginas do romance. É uma divagação nocturna por cartografias afectivas que o levam a visitar as cidades sírias de Damasco, Palmira e Alepo, e ainda Teerão e Istambul.
Ao fazê-lo, Frank vai-nos dando conta, com um saber enciclopédico em várias áreas, das ondas culturais orientais que chegaram ao Ocidente nos últimos três séculos. Capítulo a capítulo, e enquanto faz uma deslumbrante e onírica exploração do orientalismo, o protagonista vai traçando a sua biografia intelectual e sentimental. Toda essa noite insone, todo o romance, se desenvolve numa espécie de diálogo com Sarah (que está algures nas florestas da Malásia).
Sarah é uma jovem universitária, inteligente, bela e evanescente, que o acompanhou em algumas das suas peregrinações, uma sombra fugidia por quem Frank está apaixonado e por quem tem “um longo e profundo desejo, um desejo perfeito porque não precisa de ser satisfeito, cumprido”.
A ideia para este romance era um projecto antigo de Mathias Énard, e do qual fazia também parte o texto que há alguns anos foi publicado com o título Fala-lhes de Batalhas, de Reis e de Elefantes (D. Quixote, 2013) – que não foi incluído por a acção decorrer num tempo longínquo e ter um registo narrativo diferente daquele que o autor acabaria por fixar para este livro.
“Bússola demorou quatro anos a escrever”, conta Énard. “O mais difícil do livro foi organizar a noite em que a acção decorre, isto depois de ter encontrado a voz da personagem principal e ter definido o cenário por onde as muitas histórias se desenvolvem, que é um espaço concreto e muito fechado. O ritmo da narrativa é de 90 segundos por página [de computador], escrevi como se a acção fosse regulada por um metrónomo, ao mesmo tempo que encadeava, naquela noite, todas as histórias que queria contar.”
Bússola é um texto por vezes belo e profundamente melancólico, que permite que nos assomemos para a beleza nostálgica desse mundo que tanto fascinou os viajantes de séculos passados, aventureiros da melancolia. Mas que ao mesmo tempo nos traz ecos contemporâneos de uma Síria em guerra. Na sua noite de insónia, e por entre vapores opiáceos e memórias feridas, Frank Ritter evoca viagens e estadas antigas com a amada Sarah: “regressar por instantes a Damasco, a Alepo, ao alaúde de Nadim durante a noite a embriagar as estrelas do céu metálico da Síria, tão longe, tão longe, agora não mais rasgado por cometas, mas por mísseis, obuses, gritos e guerra – era impossível imaginar em 1999, com uma taça de champanhe na mão em Paris, que a Síria ia ser devastada pela mais terrível violência, que o bazar de Alepo ia desaparecer sob o fogo, ruir o minarete da mesquita dos Omíadas, tantos amigos mortos ou obrigados ao exílio”.
A música
Aos poucos, apercebemo-nos na narrativa que o orientalismo mais não é do que a maneira como o Ocidente modelou na imaginação o Oriente, com relatos de viagens, com imagens, com poesia e música. Mathias Énard cita Lucie Delarue-Mardrus: “Os orientais não têm qualquer ideia do Oriente. O sentido do Oriente, somos nós, nós os ocidentais, nós, os infiéis, quem o temos.” O orientalismo surge assim como uma invenção do Ocidente. Como uma noção intelectual. A infinita busca do sentido do Oriente. “Mas onde começa o Oriente?”, parece ser uma das questões fundamentais do romance. A personagem Sarah afirma: “O que me interessa é compreender o porquê e o como de tantos viajantes terem visto em Viena e em Budapeste as primeiras cidades ‘orientais’, e o que é que isso nos poderá dizer sobre o sentido que os próprios atribuem a tal palavra. E se Viena é a porta do Oriente, abre-se para qual Oriente?”
Mathias Énard reconhece que Viena foi um lugar chave, o lugar onde os otomanos chegaram duas vezes. E afirma que para a acção do romance “também teria sido possível escolher Paris ou Lisboa [Pessoa é referido no livro, e o ‘Opiário’ de Álvaro de Campos], o Oriente está em todo o lado”. Mas o livro precisava de um lugar que tivesse a ideia de viagem para o Oriente, partir naquela noite insone para longe, e regressar. Ter um lugar onde a viagem, a história da viagem, se pudesse iniciar de maneira mais prática, “e Viena é esse lugar”, diz Énard.
Mas havia ainda outra razão de peso para a escolha da capital austríaca: a cidade é um lugar importante para a música. A História da Música, sobretudo a do século XIX, atravessa Bússola. Ela está sempre presente, mesmo nos momentos mais reflexivos sobre o sentido da vida (o protagonista recebeu nesse dia uma carta com o diagnóstico de uma doença grave): “A vida é uma sinfonia de Mahler, nunca volta atrás, não endireita o que nasce torto. À parte o ópio e o esquecimento, não há escape possível da consciência do tempo, a definição da mesma da melancolia, da noção de finitude.”
São conhecidas as influências do orientalismo na pintura, na escultura, na literatura (sobretudo na poesia), nas narrativas de viagens, mas na música conhecem-se muito pouco, parecem estar mais dissimuladas, ou menos perceptíveis. Mathias Énard, que se assume como um apaixonado pela música há bastante tempo, diz que tratar a influência da música oriental na europeia no romance foi das etapas mais desafiantes pois, apesar de ter muitos conhecimentos musicais, precisou de estudar bastante a História da Música sob a perspectiva do orientalismo. E acrescenta: “A música sempre precisou de se renovar. E no século XIX essa vontade coincidiu com o grande movimento de expansão política, económica e cultural dos europeus para essa área do globo. A Europa entrou no Oriente, e muitas coisas entraram também no Ocidente. Os artistas estavam em plena revolução romântica, mudanças de paradigma, e então aproveitam todos estes elementos para modificarem aquilo que tinham.” É a isso que se refere a “bússola” do título? Ao símbolo da atracção do Ocidente pelo Oriente, como a bússola que se encontra nos quartos dos viajantes islâmicos para procurarem a direcção de Meca? “Certamente”, responde Énard.
Num discurso quase sempre onírico, e numa prosa cuidada (refira-se aqui o excelente trabalho de tradução de Ana Cristina Leonardo), Bússola é um exercício narrativo quase perfeito, uma récita que flui como os decénios da História, mas por vezes a sua erudição aparentemente excessiva pode dificultar a fruição de leitores menos avisados. Nele se entrelaçam, de maneira profunda e subtil (mas nem sempre assim) centenas de referências históricas, musicais e literárias, umas mais conhecidas e outras obscuras. “Escuto calmamente a melodia distante, olho, de cima, para todos esses homens, para todas essas almas que se passeiam ainda à nossa volta: quem foi Liszt, quem foi Berlioz, quem foi Wagner e todos os outros que eles conheceram, Musset, Lamartine, Nerval, uma rede imensa de textos, de notas e de imagens, claras, precisas, um caminho, visível unicamente para mim, que liga o velho von Hammer-Purgstall a todo um mundo de viajantes, de músicos, poetas, que liga Beethoven a Balzac, a James Morier, a Hofmannsthal, a Strauss, a Mahler e ao doce fumo de Istambul e Teerão.”
Se Mathias Énard apresentasse no fim a bibliografia consultada, confessou o próprio, “a lista teria entre 300 a 400 títulos de livros e centenas de títulos de artigos científicos. O romance do século XXI aguenta quase tudo, e isso é muito interessante. Fotos, ensaio, poesia, recortes jornalísticos, interessava-me perceber como isto tudo poderia funcionar a nível formal”.
O Islão
“A tensão contra o Islão é um fenómeno recente nos últimos séculos”, diz Énard. “E é também muito superficial, nunca houve tantos muçulmanos na Europa como agora, e as coisas nunca estiveram tão misturadas. Há de facto muita violência, mas há uma forte instrumentalização do Islão, há a vontade de criar o medo de chegar ao ‘outro’, e isso acontece por uma questão de poder, de ambos os lados.” Para Mathias Énard, falta coragem aos políticos europeus, “eles têm mais medo do que os cidadãos comuns, têm o medo de perder o poder”. Uma das decisões urgentes a ser tomada seria o fim da violência na Síria. “Os políticos pensaram que o que acontecia em Damasco ficava em Damasco, e as coisas não são assim. Há gente que se aproveita destes conflitos para os manobrar de acordo com os seus interesses, dinheiro, contrabando, etc. É o que acontece com o Daesh, que são apenas piratas modernos, ou piratas pós-modernos, eles estão em toda a parte, conseguem recrutar soldados em qualquer parte do mundo. Isto não é uma guerra de civilizações. As actuais ideias de mundo [ocidental e oriental] estão caducas. Há que repensar tudo. Há que criar formas um pouco inéditas. Há que repensar o mundo como algo complexo, cosmopolita; se não for entendido dessa forma, é o medo do ‘outro’, o desconhecido, que vai tomar conta de nós. Os lugares onde os movimentos xenófobos têm mais sucesso, são aqueles onde há menos estrangeiros. Basta que olhemos para os números desses partidos xenófobos em cidades como Berlim ou Londres, onde de facto existem os estrangeiros, e ver que eles não são significativos.”