V. S. Naipaul: “Sinto que tenho de escrever mais e mais. E outra vez, e outra vez”
No primeiro dia do Folio, em Óbidos, o Nobel da Literatura V S. Naipaul chegou ao palco numa cadeira de rodas, velho e doente, e só conseguiu exprimir algumas ideias muito simples. Mas seriam realmente só algumas ideias muito simples?
“Escrevo para tentar perceber o que se passa no mundo”, disse quinta-feira à noite V. S. Naipaul no Folio - Festival Literário Internacional de Óbidos. “A minha escrita flui, e não faço muitas revisões, porque escrevo com muito cuidado, com grande preocupação com o que se passa no mundo”.
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“Escrevo para tentar perceber o que se passa no mundo”, disse quinta-feira à noite V. S. Naipaul no Folio - Festival Literário Internacional de Óbidos. “A minha escrita flui, e não faço muitas revisões, porque escrevo com muito cuidado, com grande preocupação com o que se passa no mundo”.
Esta foi uma das ideias que o Nobel da Literatura repetiu, de várias formas, no palco da Tenda de Autores, no primeiro dia do festival, quer respondendo ao que o entrevistador José Mário Silva lhe perguntava, quer não respondendo propriamente ao que ele lhe perguntava.
“Sim, mais do que nunca”, respondeu Naipaul à pergunta “Ainda sente urgência em escrever?” Desta vez, sim, respondeu. Ele que, com 84 anos, chegou a Óbidos de cadeira de rodas, e, mal começou a falar, suscitou logo, na audiência que enchia o recinto, suspiros ambíguos, entre a indignação e a troça. Talvez estivesse já demasiado cansado para dar conferências, terá pensado a plateia. Demasiado velho. Talvez devesse ser protegido disto.
“Mais do que nunca”, respondeu porém Naipaul. “Porque sinto que me empurram para o repouso, para uma atitude de não fazer nada, como se já tivesse escrito tudo. Mas eu sinto uma preocupação constante. Sinto que tenho de escrever mais e mais. E outra vez, e outra vez. É terrível”.
Naipaul tem fama de ser antipático nas entrevistas. De ser antipático, ponto. Não é de agora, sempre tratou mal os jornalistas, sempre tratou mal toda a gente, diz-se. A começar pelos que lhe são próximos. Quando a primeira mulher, Patricia Ann Hale Naipaul, morreu, em 1996, ele próprio admitiu ser responsável pela sua morte, após 40 anos de maus-tratos. Agora, débil, esgotado, parecendo carregar nos ombros todo o sofrimento do mundo, continua a ser desagradável, com uma bela desculpa.
“Tente outra vez”, disse várias vezes a José Mário Silva, que nem por um momento abandonou a humildade inteligente de um grande entrevistador. Terá sido a mais difícil entrevista da sua vida. A mais difícil entrevista de qualquer um. “Tente outra vez”, dizia Naipaul, após longos segundos de reflexão, que por vezes levavam a crer ter adormecido. Mas não, era mesmo reflexão. “Ele está a pensar”, dizia o jornalista e crítico literário do Expresso, para desfazer dúvidas.
Naipaul pensava, e a primeira coisa que pensava era se gostava da pergunta. Se não gostava, pedia outra. Mas tinha algumas mensagens a deixar, e essas eram simples e claras. Interrogado sobre livros que tivesse eventualmente deixado inacabados, disse prontamente: “Não, não poderia fazer isso. É assim que eu defino a minha carreira: eu termino os livros”.
Como se fosse apenas essa a definiçao de um escritor. Também esta ideia Naipaul exprimiu de várias maneiras, numa estranha e límpida coerência que emergia do aparente caos da entrevista. Um caos acintoso e rabugento em que todos pareciam um pouco embaraçados, e temer pelo momento seguinte. Pelo que o escritor pudesse não ser capaz de dizer, ou ser capaz de dizer. Só ele dominava realmente a situação. Nos seus silêncios, nas suas frases aparentemente fora de contexto.
“Quando se escreve, não se deve pensar que se está a fazer algo inovador. Simplesmente faz-se o trabalho. É tão simples como isso”, disse Naipaul. E a emoção? Como se capta a emoção, tentava o entrevistador, interpretando a vontade que todos tinham de lhe arrancar alguma verdade última, algum truque que pudesse ser útil a todos os escritores, a todos os artistas, a todos os seres humanos com emoções maiores do que a sua capacidade de as exprimir. Como consegue ele? Qual é o segredo?
“É não se pensar sobre isso”, disse Naipaul. “Faz-se o trabalho, e há um momento em que ele fica carregado de emoção”. E depois, sobre os seus temas, a imigração, os sentimentos de isolamento, desapego e desenraizamento, diria: “É o que eu faço, mas não penso muito nisso”. Ou: “É um dos mistérios da escrita, encontrar os temas. Ninguém o pode fazer por nós, ninguém nos pode ajudar. Quando começamos, não sabemos sobre o que escrever, porque não temos nada para escrever”.
Não houve um momento morto em toda a conversa, apesar das pausas. Os espectadores fixavam com avidez o rosto de rapazola gozão de Vidiadhar Surajprasad Naipaul, Vidia, para os amigos, como quem não consegue parar de ler um livro. O rosto liso e belo de um dos autores que mais bem exprimiram, e pressentiram, os dramas do mundo contemporâneo. Um rosto afinal não muito diferente do do jovem escritor aventureiro de Uma Casa para Mr Biswas, ou A Curva do Rio. Apenas mais distante.
“Utopia? Não penso muito nisso, nem lhe dou muita importância. Acho que o mundo não precisa de utopias”, disse Naipaul, arrasando de uma penada, e logo no primeiro dia, a ideia que inspira o festival, este ano.
A uma pergunta sobre o momento em que decidiu escrever literatura de não-ficção, pareceu ficar sem saber explicar-se. Repetiu uma das frases que já ciciara várias vezes durante a sessão, como um lamento. “Não quero simplificar”. Acrescentou: “Estaria a ser tão injusto comigo próprio, se simplificasse”.
Uma voz enérgica e feminina levantou-se da plateia, em seu socorro. Era Nadira Khannun Alvi Naipaul, a actual mulher do escritor. “Ele chegou ao fim da ficção”, disse Nadira. “Quando escreveu Um Milhão de Motins Agora, o meu marido estava tão chocado com o que acontecia no mundo muçulmano, que achou que não podia escrever ficção. As pessoas vinham ter com ele e contavam-lhe coisas terríveis. Isto antes do 11 de Setembro”.
Naipaul calou-se, docilmente deixando fluir o pensamento através da voz da mulher. Ela compreendia-o. A preocupação com o mundo era a sua forma de estar vivo, de se agarrar à vida. A ficção podia esperar.
O PÚBLICO está em Óbidos a convite do Folio