Os portugueses compraram mais uma pintura para o Museu de Arte Antiga
Parte do dinheiro que sobrou da campanha pública do Sequeira foi agora investido numa pintura de D. João V feita para celebrar uma vitória naval. Retrato com 300 anos mostra um “rei solar” e estava numa colecção brasileira. Custou 100 mil euros.
O que vemos neste retrato real é um homem ainda jovem, elegante, com um olhar desafiador e uma batalha naval em fundo. Supomos que se trata de um rei porque sobre a mesa há uma coroa e um ceptro. Está em traje militar, mas isso não impede que as suas mangas douradas sejam bordadas e a armadura deixe à mostra uma gola de renda delicada, a mesma dos punhos.
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O que vemos neste retrato real é um homem ainda jovem, elegante, com um olhar desafiador e uma batalha naval em fundo. Supomos que se trata de um rei porque sobre a mesa há uma coroa e um ceptro. Está em traje militar, mas isso não impede que as suas mangas douradas sejam bordadas e a armadura deixe à mostra uma gola de renda delicada, a mesma dos punhos.
Não se sabe exactamente quando foi executada esta pintura que acaba de entrar para a colecção do Museu Nacional de Arte Antiga, mas certo é que representa D. João V e que o seu autor é o pintor italiano Giorgio Domenico Duprà, o retratista favorito do monarca que associamos de imediato ao esplendor do barroco em Portugal.
Retrato de D. João V e a Batalha do Cabo Matapão foi apresentada esta quarta-feira ao final da manhã neste museu de Lisboa em conferência de imprensa. É a segunda obra comprada com os 746 mil euros conseguidos com a campanha pública da angariação de fundos “Vamos Pôr o Sequeira no Lugar Certo”, que o MNAA promoveu com o PÚBLICO, a RTP, a agência de publicidade Fuel e a Fundação Millennium BCP para comprar A Adoração dos Magos (1828), de Domingos Sequeira.
O objectivo inicial desta campanha que terminou em Abril e envolveu milhares de cidadãos, empresas, fundações, escolas e outras instituições era reunir 600 mil euros para adquirir esta importante pintura portuguesa, mas as contribuições ultrapassaram largamente as expectativas. Respeitando o regulamento da angariação de fundos, a verba remanescente deve ser aplicada na compra de outra obra ou obras para o museu, lembrou o seu director, António Filipe Pimentel, revelando que o retrato de D. João V de Duprà foi agora adquirido aos descendentes do embaixador do Brasil em Haia no início dos anos 1960, que vivem no Rio de Janeiro.
“Sobram cerca de 50 mil euros que ficam em reserva à espera de uma oportunidade idêntica a esta que agora se apresentou com o retrato do rei”, disse ao PÚBLICO Pimentel. “Vamos gastá-los com um rigor obsessivo, mas só quando acharmos que vale mesmo a pena.” A proposta para a compra do retrato foi feita ao museu pelos coleccionadores brasileiros quando a campanha do Sequeira estava ainda a decorrer.
Feliz e orgulhoso
Foram precisos largos meses de negociações para que o MNAA passasse a contar com mais esta pintura na sua colecção. “Um processo laborioso” com um “coleccionador amável”, segundo Pimentel. Depois de devidamente restaurado e de feito o seu estudo tão completo quanto possível, contando para isso com toda a informação reunida na fase de diagnóstico prévia aos trabalhos de conservação que serão feitos pelas duas técnicas do museu, o retrato estará exposto na última sala da renovada Galeria de Pintura e Escultura Portuguesas (inauguradas em Julho), a dedicada ao barroco, “muito provavelmente na próxima Primavera”. E muito provavelmente ao lado do retrato de Manuel de Azevedo Fortes, engenheiro-mor do reino, da autoria do outro pintor da corte de D. João V, o francês Pierre-Antoine Quillard.
António Filipe Pimentel não podia estar mais “feliz” e “orgulhoso”, disse aos jornalistas, e por vários motivos. Integrar uma “obra de altíssima qualidade” nas colecções é sempre motivo de festa, mas quando essa nova aquisição se deveu em boa parte ao trabalho de pesquisa da equipa do museu e é produto de uma “campanha inédita que provou que os portugueses sabem ser generosos quando se trata do seu património, da sua identidade”, há ainda mais motivos para celebrar. Aos “argumentos plásticos” de Duprà, deve juntar-se também o facto de esta pintura ter uma elevada carga simbólica: por um lado representa um monarca “absolutamente central na nossa história” num momento decisivo do seu percurso; por outro mostra que, ao contrário do que tem acontecido nas últimas décadas, também se pode importar património português, e não apenas vê-lo vendido no estrangeiro.
Este retrato de D. João V tinha já sido mostrado na grande exposição que o MNAA dedicou ao monarca e ao seu tempo em 2013 (A Encomenda Prodigiosa. Da Patriarcal à Capela Real de São João Baptista), depois de no ano anterior a equipa do museu ter decidido seguir-lhe o rasto. A pintura era conhecida de uma fotografia a preto e branco publicada em 1962 pelo historiador Armindo Ayres de Carvalho na obra D. João V e a arte do seu tempo, mas julgava-se que estava ainda na embaixada do Brasil em Haia. Só quando começou a investigar, e com a ajuda dos ministérios dos Negócios Estrangeiros português e brasileiro, é que o MNAA percebeu que pertencera à colecção pessoal do embaixador de então e que era hoje propriedade dos seus herdeiros.O diplomata comprara-a no pós-Segunda Guerra num antiquário em Londres, que a tinha atribuída a outro pintor que não Duprà e que confundira D. João V, o Magnânimo, com um rei inglês.
“Esta compra vem mostrar que este museu é um verdadeiro centro de investigação onde se produz conhecimento”, diz o seu director. “Mas na altura da exposição da Encomenda nem nos nossos delírios mais optimistas pensaríamos que um dia viríamos a ter este retrato nas nossas colecções.”
O grande pintor régio
Feita para marcar a vitória na célebre Batalha de Matapão, em que a armada real portuguesa, respondendo a um pedido do Papa Clemente XI, se deslocou até ao extremo sul da Grécia para enfrentar a frota do império otomano, esta obra de Domenico Duprà (1689-1770) não está datada, mas deverá ter sido executada há 300 anos. “Não sabemos ao certo quando, mas D. João V não fazia amanhã as encomendas que podia fazer hoje. E ele quer vender a sua imagem de sucesso. Não deve andar longe do próprio confronto naval.”
As duas armadas – à frota portuguesa, que foi absolutamente decisiva para o sucesso, juntava-se a da República de Veneza e a dos Estados Pontifícios, já que as outras grandes cortes católicas europeias, como França, preferiram ficar em casa, lembra António Filipe Pimentel – encontraram-se precisamente a 19 de Julho de 1717, quando D. João V (1689-1750) não tinha feito ainda 28 anos. “É por isso que aqui vemos um rei ainda jovem, mas já com todos os traços que o caracterizam”, diz o director do museu, um historiador de arte que tem dedicado boa parte da sua carreira de investigador a estudar o percurso deste monarca que define como um “homem inteligentíssimo, extrovertido, com uma personalidade solar”.
A Batalha de Matapão, “operação brilhante e meteórica” em que a armada portuguesa arrumou com a frota otomana que ameaçava a península itálica de uma assentada, viria a ser fundamental para a estratégia diplomática do monarca português junto da Santa Sé, que passou a equiparar Portugal às grandes potências católicas da Europa, permitindo até que Lisboa viesse a ter uma Sé Patriarcal. “É um retrato virtuoso, uma daquelas peças que faz deste museu uma caderneta dos cromos de Portugal”, brinca Pimentel. “Não é simplesmente uma obra de aparato. Tem uma história agarrada a ela, a de um momento com um alto impacto político.”
Além disso, esta aquisição permite ao museu expor uma obra de qualidade de Duprà que, mais do que Quillard, é o verdadeiro responsável pela criação da imagem de corte “moderna, actualizada, optimista e consequente” de que D. João V beneficia, argumenta o director de Arte Antiga. “Duprà é o grande pintor régio e este retrato é muito singular na sua obra porque tem uma paisagem em fundo, o que não era nada habitual na sua pintura.”
Para António Filipe Pimentel, ter o retrato agora comprado nas paredes do museu que dirige é mais uma forma de homenagear o monarca que conhece tão bem. Um homem que “tem consciência do que vale, altivo,” e que se faz notar quando entra numa sala, um “workaholic incansável” que acordava ministros a meio da noite com perguntas, ordens e ideias.