Fabian foi salvo por um organóide
Um rapaz com fibrose quística evitou um transplante de pulmão graças ao uso de mini-intestinos produzidos em laboratório, que permitiram testar fármacos em ambiente in vitro. Este é um dos exemplos do potencial dos organóides.
Ainda estamos longe de fabricar um órgão de tamanho real e funcional, mas já é possível fabricar “mini-rins” ou “mini-intestinos”. É o novo mundo da medicina regenerativa. Sylvia Boj e Jamie Davies são dois cientistas que fazem parte deste mundo e estiveram este mês no Porto a falar dos seus trabalhos. Sylvia Boj apresentou o caso de Fabian, um jovem de 14 anos com fibrose quística, que responde à questão: para que serve um organóide?
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Ainda estamos longe de fabricar um órgão de tamanho real e funcional, mas já é possível fabricar “mini-rins” ou “mini-intestinos”. É o novo mundo da medicina regenerativa. Sylvia Boj e Jamie Davies são dois cientistas que fazem parte deste mundo e estiveram este mês no Porto a falar dos seus trabalhos. Sylvia Boj apresentou o caso de Fabian, um jovem de 14 anos com fibrose quística, que responde à questão: para que serve um organóide?
Num qualquer dicionário, organóide é o que se assemelha a um órgão, a um corpo organizado. Na ciência, a definição é mais complexa. Os órgãos criados em laboratório — sejam miniaturas, modelos tridimensionais ou outras tentativas — são hoje uma das mais promissoras áreas de investigação. O objectivo é, um dia, “(re)produzir” órgãos capazes de corrigir ou reparar as falhas do nosso organismo.
Há vários laboratórios em todo o mundo a tentar replicar os passos e o resultado da formação de órgãos que ocorre no desenvolvimento embrionário. Sylvia Boj — que trabalha na fundação Hubrecht Organoid Technology, na Holanda, na equipa dirigida pelo imunologista e biologista molecular Hans Clevers, um dos primeiros investigadores a dedicar-se ao “fabrico” de organóides — é uma dessas cientistas entusiasmadas.
Na sexta-feira, a investigadora esteve no Porto e tentou resumir dez anos de trabalho em vinte minutos. Falou de forma acelerada para um auditório cheio com jovens cientistas e estudantes do 11.º YES (Young European Scientist) Meeting, na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Mostrou esquemas, equações, imagens paradas e em filmes feitos ao microscópio que mostravam a viagem e o crescimento das células. Exibiu imagens de mini-intestinos feitos a partir de células estaminais que são alimentadas com estímulos químicos para que cresçam.
Mas para que servem estes organóides? No final da apresentação — numa altura em que quase nos sentíamos tentados a admitir que um mini-intestino pode ser uma estrutura bonita —, Sylvia Boj falou no caso de Fabian. Disse que se tratava de um rapaz com fibrose quística (doença genética que torna o líquido dos pulmões viscoso, dificultando a respiração e propicia infecções que no pulmão) e que tinha uma mutação genética única que nunca tinha sido descrita. Por isso, os médicos não sabiam se reagiria ao dispendioso tratamento para a doença.
A equipa do laboratório de Hans Clevers foi chamada para ajudar Fabian. O plano era fazer uma biópsia ao intestino — um dos órgãos afectados por esta doença e a área de especialização da equipa — e fazer um mini-intestino de Fabian no laboratório para depois testar os fármacos no tecido fabricado, o tal organóide.
“Em apenas três dias, as células que retirámos do intestino de Fabian conseguiram produzir um mini-intestino. Todas as células estaminais do intestino têm esta capacidade e uma pequena amostra é suficiente para fazer centenas de mini-órgãos”, contou Sylvia Boj ao PÚBLICO no final da apresentação. O plano teve sucesso, anunciou a investigadora a sorrir. O tecido reagiu às drogas e os investigadores convenceram os médicos a avançar para o dispendioso tratamento. “Cerca de três semanas depois de ter iniciado o tratamento, Fabian já estava bem melhor e já tinha voltado ao campo de hóquei.”
A experiência com Fabian foi realizada em 2014, com o consentimento dos pais, no âmbito de uma colaboração com o Hospital Pediátrico de Hubrecht. “Com a experiência no laboratório queríamos provar que ele ia beneficiar com o tratamento. O hospital concordou em dar o tratamento por três meses. São tratamentos que custam cerca de 250 mil euros por ano, por doente”, conta, adiantando que com os resultados e as melhoras rápidas de Fabian a empresa farmacêutica acabou por concordar suportar os custos. “Agora está bem, vai à escola, joga hóquei e está fora da lista para transplante de pulmão. É claro que não está curado, estas drogas não curam a doença, mas está bem melhor”, diz.
Com o trunfo do sucesso preditivo obtido com Fabian na mão, a equipa de Hans Clevers já se aventurou num jogo mais ambicioso que conta com a aprovação das (inicialmente cépticas) autoridades da saúde na Holanda. “A fibrose quística é uma doença fácil porque é o resultado de apenas um gene que não está a funcionar bem e temos um bom modelo para testar como as drogas podem afectar o funcionamento deste gene. Podemos dizer com toda a certeza que em aproximadamente três anos, todos os doentes com fibrose quística na Holanda [são cerca de 1500, em Portugal existem entre 300 a 400 doentes] serão ‘rastreados’. Vamos gerar organóides de todos eles para perceber se são elegíveis para tratamentos com os fármacos”, explicou Sylvia Boj ao PÚBLICO.
Organóides e cancro
A equipa está também empenhada em usar organóides na luta contra o cancro colorrectal e outras doenças. “Estamos a tentar desenvolver organóides de outros tecidos que também são afectados por doenças causadas por apenas um gene. Também estamos a trabalhar no cancro, onde podemos beneficiar uma população muito maior se pudermos usar o valor preditivo dos organóides nos tratamentos, mas estamos conscientes da complexidade desta doença”, refere Sylvia Boj. Para já, avança a optimista investigadora, “o nosso objectivo no cancro é, pelo menos, identificar os doentes que não respondem a determinado tratamento e usar os organóides para decidir se é melhor avançar para uma segunda ou terceira linha de fármacos sem que o doente tenha de se submeter aos tratamentos de quimioterapia”.
A estratégia é desenvolver o mesmo tipo de experiências usadas na fibrose quística em doentes com cancros colorrectal, do pâncreas, do pulmão, da mama. “A nossa expectativa é que os organóides serão úteis para um subgrupo de doentes com estes tipos de tumor. Adorávamos poder dizer o mesmo para todos os tumores em todos os locais, mas achamos que alguns, pelo tipo de mutação que os causa, serão mais difíceis.”
Um dos obstáculos é a complexidade genética de um tumor. “O tumor é uma população de diferentes células com diferentes mutações que respondem de forma diferente às drogas. Por isso, estamos a verificar que se tratamos um tumor com um fármaco podemos estar a matar 20, 30, 40, 80% das células mas há sempre uma parte das células que não são mortas, são resistentes e que provocam as recaídas alguns anos mais tarde”, explica a cientista.
Também há uma série de interacções entre as células que compõem o tumor e o ambiente que o rodeia que a equipa ainda não conseguiu replicar no laboratório. “Estamos a desenvolver a tecnologia para tentar incorporar todos estes possíveis factores em jogo”, revela Sylvia Boj. A Hubrecht Organoid Technology conseguiu todas as autorizações necessárias para trabalhar com material humano. Todos os participantes nas experiências têm de assinar consentimentos informados. Uma das frentes de trabalho acontece com doentes que já estão incluídos em ensaios clínicos e fazem uma segunda biópsia para recolher o tecido para criar organóides e depois testar a resposta a fármacos. Depois, é feita uma análise retrospectiva e avaliado o sucesso preditivo.
“Estamos perfeitamente convencidos de que os organóides serão uma realidade no tratamento de fibrose quística”, diz a investigadora. Mas e fora do mundo científico? As pessoas acreditam numa solução que passa por criar mini-órgãos em laboratório? “Tenho a certeza de que a mãe e o pai de Fabian, depois de verem estes resultados, acreditam. Somos apenas um grupo de cientistas muito entusiasmados que depois de terem passado dez anos no laboratório a tentar perceber coisas que não sabíamos se teriam impacto na sociedade sente que está muito perto de ter um efeito real e de mudar a forma como vemos os cuidados de saúde nos próximos dez a 15 anos. Estamos a trabalhar no duro para tornar os organóides uma realidade. E talvez daqui a 15 anos, as pessoas, da mesma forma que vão fazer uma análise ao sangue, poderão ter a possibilidade de fazer crescer um organóide para saber se vão reagir a determinado tratamento. Este é o nosso objectivo.”
A árvore do rim
Jamie Davies, professor de anatomia experimental na Universidade de Edimburgo, na Escócia, tenta há vários anos fazer um rim no laboratório e põe algum travão no entusiasmo à volta dos organóides. Na apresentação que fez durante o 11.º YES Meeting, tentou explicar como é difícil conseguir que as células se organizem da forma correcta para desenhar a complexa “árvore” que é o rim, com os seus ramos [ductos colectores] e milhões de pequenos frutos [nefrónios] nos lugares certos.
“A verdade é que ainda não sabemos o que acontece desde o ovo fertilizado até nós”, lamentou. Ao contrário de outras construções que nos rodeiam, no corpo humano não há uma planta, nem um responsável de obra, nem é possível desligar o sistema para fazer esta ou aquela alteração ou substituição. É difícil. Mas Jamie Davies já conseguiu alguma coisa. “Conseguimos construir rins realistas de ratinhos mas que são demasiado pequenos para se manterem vivos, a funcionar. Podemos construir rins muito menos realistas de humanos que, na melhor das hipóteses, só servem para testar fármacos. E ainda não sabemos sequer se servem para isso. Estamos ainda nos primeiros passos de uma longa viagem.”
São os primeiros passos mas são importantes e suficientemente entusiasmantes para que continue a fazer esta incrível viagem. “Os rins que conseguimos fazer em laboratório têm cerca de dois milímetros e, mesmo para um ratinho, eles precisam de ter pelo menos um centímetro e para um humano cerca de 6 centímetros. O problema é que quanto maior, mais complicado é manter o órgão vivo numa incubadora e esse é um grande desafio que temos de enfrentar”, contou ao PÚBLICO.
Há muitos desafios e até medo, admite Jamie Davies. “Qualquer pessoa responsável que trabalha com células estaminais também tem um medo sempre presente de poder estar a criar um cancro e não um tecido normal. Até termos experiências com um prazo longo de observação de análise de resultados não vamos saber isso com certeza”, diz o investigador. “Portanto, há uma questão de segurança que tem de ser tratada com experiências com modelos animais, nomeadamente grandes animais como os porcos. E para sabermos se é seguro vamos ter de esperar alguns anos, será preciso manter os porcos vivos pelo menos cinco anos, para perceber como estão. Temos de saber se isto é seguro durante anos antes de pensarmos em colocar qualquer coisa nos humanos.”
Os avanços sobre os organóides enchem páginas das revistas científicas. O objectivo final será criar um órgão de tamanho real, seguro e funcional no laboratório. Mas não é suposto que seja uma corrida para ver quem chega primeiro à meta, defende o cientista: “Nós estamos a trabalhar em rins. Outros grupos estão a trabalhar com pulmões, Sylvia Boj está a trabalhar com o intestino. E há estruturas mais simples que já estão a ser feitas com células estaminais como, por exemplo, os trabalhos relacionados com a traqueia. Há já alguns anos que é possível usar células estaminais para fazer traqueias saudáveis e isso já funciona. Julgo que vamos ser capazes de criar órgãos diferentes em alturas diferentes.”