Isto não pode ser verdade
Como foram capazes de me fazer isto a mim, vocês? Logo a mim, que nunca tinha tido pena dos técnicos do FMI.
Estou fora do país e não acredito que me fizeram isto. Páginas falsas na net, emissões de televisão forjadas e até conspirarem com a minha família para me enganarem nos telefonemas. Porque isto não pode ser verdade, certo? Não é verdade que o arquiteto José António Saraiva, diretor do Sol, tenha escrito um livro de “mexericos”, incluindo sexuais, a partir de conversas privadas com políticos. Não é verdade que Pedro Passos Coelho vá apresentar esse livro, certo? Certo? Pois.
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Estou fora do país e não acredito que me fizeram isto. Páginas falsas na net, emissões de televisão forjadas e até conspirarem com a minha família para me enganarem nos telefonemas. Porque isto não pode ser verdade, certo? Não é verdade que o arquiteto José António Saraiva, diretor do Sol, tenha escrito um livro de “mexericos”, incluindo sexuais, a partir de conversas privadas com políticos. Não é verdade que Pedro Passos Coelho vá apresentar esse livro, certo? Certo? Pois.
Sabem por que não me apanham? Li que este livro continha “revelações”. A única revelação possível num livro de José António Saraiva sobre a vida íntima de outras pessoas seria a de que o seu autor é jornalística e literariamente impotente. Só um autor impotente se excitaria ao escrever coisas que “roçam a violação de privacidade”, nas palavras do próprio, para conquistar leitores que não têm qualquer interesse no que ele escreve.
Confesso que quase acreditei, porque fazer um livro com a vida sexual de terceiros é cobarde, e isso seria plausível. O próprio subtítulo do livro Eu e os políticos — “O que não pude (ou não quis) escrever até hoje” — é cobarde. Se os segredos fossem de interesse público, o seu autor, nominalmente jornalista, deveria tê-los revelado antes. Mas como não têm interesse público o autor esperou por um momento em que a conveniência de vender livros fosse maior do que a conveniência de manter as suas fontes, e despejou as pessoas com quem falou na lama. Num dos casos fê-lo com um político que já morreu. Instrutivo.
Bem. Estou convencido que o tal livro não pode existir. Mas mais convencido ainda que, a existir, eu não o leria e ninguém o deveria ler. Com uma exceção: a pessoa que o vai apresentar.
E aí, mais uma vez, tenho de admitir que fraquejei. Por um lado, a ideia de que Passos Coelho fosse apresentar este livro era uma adição tão absurda à mentira original que escancarava completamente o jogo. Por outro lado, que Passos Coelho fosse apresentar o livro sem o ter lido pareceu-me completamente verídico. Este é o Pedro Passos Coelho que conhecemos. O homem que quis ir “além da troika” antes de conhecer o memorando da mesma. Nem por um minuto eu duvidaria que se Passos Coelho fosse convidado para apresentar um desastre deontológico ele se manteria firme nesse propósito. Nem por um segundo duvido que ele só apresente livros que não leu. É por isso mesmo que o lugar dele não é à frente do governo mas ao lado do arquiteto Saraiva a apresentar livros.
A verdade só se revelou mesmo quando li uma crónica propagandeando no jornal de Saraiva o livro de Saraiva por um autor — João Lemos Esteves — quase tão bom como Saraiva. Aí é que eu percebi que tinha tudo de ser mentira. O título era “A democracia vai nua!” e a seguir ao ponto de exclamação o autor exprimia o desejo de “que José António Saraiva seja eterno” para escrever comentários tão importantes que “não por acaso os diplomatas estrangeiros e os técnicos do FMI lêem regularmente as crónicas de José António Saraiva no Sol”. Os técnicos do FMI — ponto de exclamação!
Como foram capazes de me fazer isto a mim, vocês? Logo a mim, que nunca tinha tido pena dos técnicos do FMI.