Um ano dourado: 1988
Em 1988, o botão vermelho do VHS transformou uma série brasileira de 20 episódios no entretenimento de um Verão inteiro. Uma vida depois, é difícil encontrar alguém que saiba sequer que ela alguma vez existiu. Um rebuçado, ou mesmo dois, para quem ainda se lembrar dos Anos Dourados.
Há um limite para a quantidade de diálogos de séries televisivas que é possível memorizar (os diálogos de filmes entram noutra quota, ilimitada, e seria possível ocupar todo o espaço desta crónica só com citações de frases mortalmente fotogénicas), e isso torna especialmente embaraçoso assumir que um dos poucos que ficaram para sempre é este:
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Há um limite para a quantidade de diálogos de séries televisivas que é possível memorizar (os diálogos de filmes entram noutra quota, ilimitada, e seria possível ocupar todo o espaço desta crónica só com citações de frases mortalmente fotogénicas), e isso torna especialmente embaraçoso assumir que um dos poucos que ficaram para sempre é este:
Ele: Eu não te procurei porque eu… não consegui
Ela: Não fala nada
Ele: Você vai se casar?
Ela: Vou. Com você. Quando você se formar. E acho que a gente vai ser muito feliz, muito, porque você me ama e eu te amo muito também
É uma atenuante alegar que tudo isto se passou no Verão dos 11 anos? Que a série tinha sido escrita pelo Gilberto Braga? Que o genérico, instrumental, foi composto de propósito pelo Tom Jobim (e que depois o Chico Buarque, intocável herói familiar, quis lá encaixar uma letra)? Que esses 20 episódios foram a introdução a muitas coisas, incluindo o Smoke gets in your eyes dos Platters, seguido da revelação de que nem só as músicas dos Beatles eram boas para chorar? Que ela, a Malu Mader, era a rapariga mais linda do mundo? Ou que os beijos com que terminava esta cena pareciam mesmo, mesmo, mesmo verdadeiros (verdadeiros de carne, como numa piada privada um pouco mais adulta do que os 11 anos deste Verão, mas igualmente embaraçosa)?
Porto, 1988, o Verão dos Anos Dourados, o Verão do VHS, ou como o botão vermelho de gravar mudou o mundo – e salvou in extremis umas férias em Palma de Maiorca, congeminadas unilateralmente pelo único maior de idade lá de casa, indiferente ao facto, absolutamente apocalíptico, de em Palma de Maiorca não estar a passar uma série brasileira de 20 episódios chamada Anos Dourados escrita pelo Gilberto Braga, com genérico do Tom Jobim, o Smoke gets in your eyes dos Platters, a rapariga mais linda do mundo e beijos mesmo, mesmo, mesmo verdadeiros. Sapos enormes, muito maiores do que o Mário Soares em que o maior de idade lá de casa tinha votado (mas não contrafeito, antes pelo contrário) para Presidente da República, foram engolidos para que no regresso das férias duas ou três belas cassetes VHS de marca Kodak repletas de episódios pudessem ser consumidas de forma doentia – ao ponto de um diálogo especialmente embaraçoso ter ficado gravado para sempre na memória. As reconstituições ficcionadas da cena com outros protagonistas – incluindo certo rapaz do 8ºA que se tornaria uma obsessão quase tão grande como os Beatles, primeiro, e os Anos Dourados, depois – comprometeram o processo de selecção natural que em condições normais teria condenado este diálogo ao esquecimento e permitido que agora fosse possível estar-se perante uma crónica sobre uma série mais, digamos, consensual e candidata a likes.
Aparentemente, não é o caso: entrevistas aleatórias feitas nas últimas semanas a uma amostra alargada e representativa de pessoas permitiram concluir com razoável margem de segurança que praticamente ninguém em Portugal se lembra desta mini-novela da Globo que a RTP1 exibiu no Verão de 1988 e que integrava um projecto da Casa de Criação Janete Clair, aparentemente abortado ao fim de dois módulos (o segundo seria Anos Rebeldes) para produzir uma série de ficção sobre cada década da história contemporânea do Brasil. Anos Dourados, que acompanhava o romance evidentemente contrariado – anos 1950, a ditadura ainda não tinha endurecido o Brasil mas a moral da classe média ainda era o que era – de Marcos (Felipe Camargo), filho de mãe “desquitada” com um emprego como caixa numa boîte, um caso com um homem casado e um penteado de “taradinha” igual ao da Gina Lollobrigida, e da “normalista” Lurdinha (Malu Mader), foi a primeira. Pôs Gilberto Braga a sair da sua zona de conforto (era até aí “o escritor da Zona Sul e dos grã-finos”) e a subir até ao Bairro da Tijuca, que pelos vistos não era só onde morava o Zé Carioca mas um lugar real no Rio de Janeiro onde as meninas da Escola Normal se apaixonavam pelos rapazes do Colégio Militar em bailes de formatura – tudo muito Fúria de Viver do Nicholas Ray, pelo menos ao nível dos pais (mas a Lurdinha nunca lhes teria gritado: “You’re tearing me apart!”) e do guarda-roupa, mas isso só se tornaria óbvio anos mais tarde, graças ao ciclo James Dean da RTP2 que também ficou imortalizado em cassetes VHS da Kodak.
Ao contrário desse filme que veio a ser outra obsessão adolescente, os Anos Dourados terminavam bem, claro (mini-série é um eufemismo: era uma verdadeira telenovela). É outra frase que ficou para sempre (o Can’t buy me love dos Beatles que se ouve por baixo tem definitivamente de ser considerado uma atenuante, se é que memorizar uma frase deste calibre pode ter perdão): “Marcos é hoje um excelente veterinário e Lurdes uma competente orientadora educacional. Muito raramente encontram os amigos da juventude. Continuam a ter um casamento extremamente bem-sucedido: três filhos lindos, saudáveis constituem o que costumamos apontar como exemplo de uma família ajustada e feliz.”