Pasta e Basta, para comer o mundo e as suas histórias
O mambo italiano de Giacomo Scalisi, um espectáculo de teatro, que nos põe a fazer pasta e a comê-la, chegou ao São Luiz, em Lisboa.
Há um homem condenado à morte que escreve uma carta à filha. Há uma história de amor. Há sabores muito diferentes. E há muita pasta italiana.
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Há um homem condenado à morte que escreve uma carta à filha. Há uma história de amor. Há sabores muito diferentes. E há muita pasta italiana.
Pasta e Basta, um mambo italiano – com sessões esta segunda-feira e terça-feira, às 19h, no Jardim de Inverno do Teatro Municipal São Luiz, em Lisboa, e também dias 24 e 25 numa nova versão para crianças – é uma criação de Giacomo Scalisi com Miguel Fragata e Afonso Cruz, que nasceu da vontade de pôr as pessoas a fazer massa com as próprias mãos.
As duas horas e meia do espectáculo passam a correr desde o momento em que somos recebidos e em que nos lavam delicadamente as mãos até ao final. E passam tão rápido porque grande parte do tempo é ocupado com a preparação da massa. Há dois anfitriões – o próprio Giacomo e André Amálio – que nos vão ajudar a preparar a refeição enquanto nos enfeitiçam com uma história, escrita por Afonso Cruz, que é uma espécie de pano de fundo de Pasta e Basta e à qual voltamos sempre por entre encontros e desencontros de mãos enfarinhadas.
“Pasta e Basta, um mambo italiano é um laboratório culinário que nasce da necessidade de encontrar uma forma de arte para falar da interculturalidade das cidades em que vivemos, dos alimentos que comemos”, explica, na folha de sala, Giacomo Scalisi, programador cultural italiano a viver em Portugal há muitos anos.
Quando o projecto começou, na edição de 2014 do Festival Todos, era apenas uma oficina para pôr as pessoas a fazer pasta – e, claro, aproximá-las através desse encontro de farinha, ovos e água que subitamente se transformam em algo mais e que, daí a pouco, como por magia, estão nos nossos pratos, primeiro, e, por fim, nos nossos estômagos.
Mas a ideia cresceu (o espectáculo foi, entretanto, apresentado noutros pontos do país), Afonso Cruz juntou-se ao projecto, escrevendo os textos, e Pasta e Basta ganhou uma vida própria – depois desta passagem pelo São Luiz seguirá para o Teatro Aveirense (14, 15 e 16 de Outubro, sendo a sessão de 16 para famílias) e para o Centro de Artes de Ovar (21, 22 e 23, com o último dia também para famílias).
O lado de partilha multicultural é muito importante no espectáculo. Para além de Giacomo e André, somos recebidos por duas mulheres, uma guineense e outra do Bangladesh (noutros espectáculos, estas anfitriãs podem variar e representar outros países), que trazem comidas de outras partes do mundo e que vão ajudar a cozinhar as pastas que iremos comer e que, naturalmente, integram também ingredientes de Portugal.
Logo no início, Giacomo e André dizem-nos que “adorar, do latim ad oris, significa ‘levar à boca’” e que “comer é como beijar”. Este é um espectáculo que nos faz comer ingredientes do Oriente ao Ocidente, do Norte ao Sul. E assim “beijamos o mundo todo”.
A cozinha está montada no centro do Jardim de Inverno. Há panelas grandes ao lume, cestos com cebolas, alhos, limões, molhos de coentros, temperos de todos os géneros. O público senta-se à volta, em mesas e bancos de madeira clara. À nossa frente, uma taça com dois ovos, outra com água, um saco com farinha e uma máquina para fazer a massa.
Estamos divididos em grupos e cada grupo tem uma massa diferente para criar. A nós, no ensaio a que assistimos, couberam-nos os cappelletti – que, há que reconhecê-lo, são os mais trabalhosos. À farinha de trigo juntámos um pouco de África sob a forma da cheirosa camoca, farinha de milho torrado. Os cappelletti, ou “pequenos chapéus”, em italiano, ficaram mais escuros, mas, com a ajuda de um instrumento especial, saíram rodinhas perfeitas, com o seu recheio de bacalhau, tomate, alcaparras, alho.
Os outros grupos faziam os tortelli e os tagliatelli. E nós, atrasados, às voltas com a nossa massa, que já tinha entrado na máquina dezenas de vezes e ameaçava quebrar quando, finalmente, atingia a espessura desejada, tentávamos acelerar para não atrasar o jantar de todos.
Mas havia muita gente para ajudar, e, na verdade, há sempre salvação para a massa como explicava um dos autores do espectáculo, Miguel Fragata que, por acaso, se sentara ao nosso lado e, pacientemente, ia fazendo a massa passar, mais uma vez, pela máquina. Um outro italiano, também nosso companheiro de pasta, recordava como os cappelletti são um prato tradicional de Natal na Emilia Romagna e como a família se costuma juntar toda para fazer as pequenas rodelinhas – actividade que, confessava, não era das suas favoritas.
Depois de muito darmos à manivela, a massa saiu bem e pudemos avançar para o jantar. “Gosto de pensar que comer é parte de um acto colectivo ancestral”, escreve Giacomo. “No viver actual perde-se o estar juntos, a preparação da comida com as nossas mãos a partir dos elementos base da culinária, esquecemos o comer em conjunto. Queremos recuperar esse acto colectivo do fazer e do comer.”
Mas, no meio da animada refeição, é preciso não esquecer que há um homem condenado à morte que escreve uma carta à filha – e que um prato de pasta pode muitas vezes conter outras histórias e outras vidas.