A farsa no virar da página
Como não pode ter um discurso ancorado na verdade do problema, o Governo entra na bravata jacobina e transforma a austeridade numa banal factura só para alguns.
A história repete-se, a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. A tese de Karl Marx tem um passado de 164 anos, mas aplica-se bem à nossa aflição do presente. Os apertos da era Sócrates repetiram-se tragicamente nos dias de Passos Coelho e voltam agora a repetir-se em jeito de farsa com António Costa e Mário Centeno. A crise persiste e ameaça agudizar-se, mas apenas na realidade, jamais na consciência. Tornou-se uma farsa na qual se criam impostos como se de um capricho se tratasse. Não se diz se é por necessidade, porque a miragem do “virar de página” persiste. Mas, um imposto é um imposto é um imposto. Uma violência que só se justifica pela gula, pela arrogância ou pela necessidade. Criá-los como se nada fosse, como se em causa estivesse uma simples vírgula no texto do défice público, é uma artimanha. Que chega ao esplendor quando Mariana Mortágua rejubila com a salvação da classe média, como se o significado da carga fiscal, ou da dita austeridade, não fosse um problema que existe independentemente dos seus alvos civis.
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A história repete-se, a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. A tese de Karl Marx tem um passado de 164 anos, mas aplica-se bem à nossa aflição do presente. Os apertos da era Sócrates repetiram-se tragicamente nos dias de Passos Coelho e voltam agora a repetir-se em jeito de farsa com António Costa e Mário Centeno. A crise persiste e ameaça agudizar-se, mas apenas na realidade, jamais na consciência. Tornou-se uma farsa na qual se criam impostos como se de um capricho se tratasse. Não se diz se é por necessidade, porque a miragem do “virar de página” persiste. Mas, um imposto é um imposto é um imposto. Uma violência que só se justifica pela gula, pela arrogância ou pela necessidade. Criá-los como se nada fosse, como se em causa estivesse uma simples vírgula no texto do défice público, é uma artimanha. Que chega ao esplendor quando Mariana Mortágua rejubila com a salvação da classe média, como se o significado da carga fiscal, ou da dita austeridade, não fosse um problema que existe independentemente dos seus alvos civis.
Já vimos este filme no estertor do Governo Sócrates: afinam-se as palavras e mudam-se os impostos para que a austeridade continue escondida debaixo da propaganda. Ao menos, Passos Coelho não se escondia em metáforas para escamotear a realidade. Assumia os custos dos cortes ou aperto fiscal em nome da pressão da troika e da sua crença messiânica, estúpida, no poder redentor do ajustamento. António Costa não tem a mesma liberdade e disfarça as amarras ao Bloco e ao PCP tergiversando. Aumentar impostos sobre quem tem património é mais justo e mais de esquerda do que manter a carga sobre os suspeitos do costume, os cidadãos da classe média. O pior é que essas “alterações fiscais” que as Finanças estão a negociar com os seus parceiros não nascem do reconhecimento de que a situação está difícil. Não configuram uma terapia para uma cura. São parte da narrativa da devolução de direitos e de rendimentos em curso. Uma mentira piedosa para justificar a preocupação do Governo em controlar o défice. Mas, ainda assim, uma mentira
O Governo faz bem em reagir. Pior do que não inventar impostos seria negar a seriedade da situação. Por culpa própria e falhas alheias, a economia encalhou, a conjuntura externa piorou, os juros da dívida afastam-se dos da Espanha ou da Alemanha, o investimento trava a fundo, a suspeita de que o país poderá ter de mendigar um novo resgate cresce (na economia, bem se sabe, as profecias auto-realizam-se). Os avisos da UTAO ou do Conselho das Finanças Públicas não deixam dúvidas: estamos outra vez mais perto do precipício. Não é partidarite, nem maus fígados, nem uma culpa exclusiva do actual Governo: é a factura de um país com uma economia encalhada pela falta de investimento e pela desconfiança. Reconhecendo os perigos do lugar onde estamos, o Governo tem toda a abertura do mundo para os atacar. Se não for por reformas estruturais (impossíveis num governo minoritário), que seja por medidas de emergência, ainda que qualquer novo imposto seja um insulto para quem trabalha e um perigo para o investimento.
Se o Governo tivesse fibra e maioria no Parlamento para assumir decisões duras contra o perigo (ainda distante, mas real) de um novo resgate, tudo seria melhor. Há contas a acertar e vale mais taxar património imobiliário acima do meio milhão de euros do que voltar a sobrecarregar o IRS ou o IVA. É melhor taxar fortunas ou bens de raiz do que cortar nas prestações sociais. Mas para que essa iniciativa seja entendível e aceite, António Costa devia criar um ambiente que mobilizasse o país para o risco da tempestade. Aí, teria de reverter a redução do horário da função pública para as 35 horas, teria de restaurar o IVA na restauração, teria de ser menos generoso na devolução da sobretaxa do IRS, teria de conter a narrativa dos tempos idílicos da “reposição de direitos” ou da devolução de rendimentos. Como não pode ter um discurso ancorado na verdade do problema, o Governo entra na bravata jacobina e transforma a austeridade numa banal factura só para alguns.
Pois, o novo imposto é para os ricos. Como se os ricos fossem párias. Um Governo com a matriz do PS não pode ser contra os ricos, tem de ser “contra” os pobres. E mesmo que agora nos venham dizer que os impostos sobre o imobiliário estejam no programa eleitoral do PS, o que é duvidoso, o Governo não consegue escapar à suspeita de que se deixou intoxicar pela aversão da extrema-esquerda à livre iniciativa, à economia aberta, à democracia liberal, ao sucesso dos que arriscam e, felizmente para eles e para todos, conseguem enriquecer. Essa percepção alastra, alimentada também pela aberrante obrigação de os bancos comunicarem ao fisco movimentos das contas bancárias com mais de 50 mil euros. E é um perigo, como notou esta semana o Presidente da República, referindo-se à instabilidade fiscal. Os que pensam em investir em Portugal, ou os que compram títulos de dívida pública, serão tentados a pensar que caminhamos inexoravelmente para um passado à albanesa.
A aprovação do orçamento de 2017 vai ser um momento definidor do Governo. A pressão externa, o défice, os mercados, os analistas, a Europa, vão obrigá-lo a escolhas difíceis e, ao mesmo tempo, a manter o equilíbrio político que o sustenta. É aí que está o seu Rubicão. Reverter parte da construção ideológica que projectou é o maior drama existencial do Governo. Dizer agora que um país periférico, incapaz de competir, endividado e sem nervo para gerar riqueza está vulnerável à ingerência externa dos credores é um risco. Reconhecer que, neste contexto, é indispensável ajustar as contas do estado pode ser o princípio do fim. Assumir a “austeridade” levaria à sublevação.
A fantasia que nos vendem é uma decorrência dessas escolhas dramáticas. A farsa que tenta conjugar a propaganda sobre o virar página à austeridade com o lançamento de novos impostos é a cola que mantém o Bloco e o PCP na órbita do Governo. O Governo tenta ser um Governo do PS sabendo que tem de ser também um pouco do governo de Catarina Martins e Jerónimo de Sousa. Se não na prática, ao menos no discurso.
O confronto entre essas palavras boas do Governo e as notícias más da conjuntura ou dos mercados começam, porém, a tornar a situação insustentável. O défice está controlado, mas no futuro imediato, ou a economia cresce ou vai ser preciso considerar medidas mais duras. Porque nenhum de nós quer viver nem voltar a ser olhado como um cidadão de um país falhado, que não se governa nem deixa governar. Está na hora de começar a chamar os bois pelos nomes. De se dizer que há mais impostos porque a coisa está preta.