Palavras como “boys”, “troika” ou “geringonça”, usar ou não usar?
Tinham existência e significado próprio antes de entrarem no léxico político, mas ganharam nova vida quando foram adoptadas por deputados, comentadores e muitos portugueses. São usadas também por jornalistas. Bem ou mal?
Alguns dos significado de geringonça, disponíveis em dicionários, são “coisa malfeita ou construção com pouca solidez”, “caranguejola”, “aparelho ou mecanismo de construção complexa”, “engenhoca”.
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Alguns dos significado de geringonça, disponíveis em dicionários, são “coisa malfeita ou construção com pouca solidez”, “caranguejola”, “aparelho ou mecanismo de construção complexa”, “engenhoca”.
Caranguejola também quer dizer “construção, artefacto, máquina, que tem pouca solidez”, “sociedade ou empresa que inspira pouca confiança”, “traquitana velha”, “acervo de coisas sobrepostas e mal seguras”, “calhambeque”; “carangueja”, “carripana”, “engenhoca”, “geringonça”, “jangada”…
“Geringonça” e “caranguejola” são só dois exemplos mais recentes de palavras que entraram no léxico da política de forma expressiva, mas polémica. Uma vingou, outra nem por isso. Os investigadores dividem-se quanto à legitimidade de os jornalistas as usarem ou não. Vieram dar alguma cor a um discurso, por vezes, cinzento na política? São tendenciosas? Por que razão são tão usadas?
Um pouco de contexto
A primeira vez que alguém deu uma leitura política a “geringonça” foi o cronista Vasco Pulido Valente, em 2014, para falar do PS, depois das eleições primárias que deram a vitória a António Costa sobre António José Seguro. Mais tarde, em Novembro de 2015, o então líder do CDS, Paulo Portas, usou-a para descrever os acordos entre PS, PCP, PEV e o BE. E como acontece com quase tudo aquilo que Portas escolhe transformar em sound bite, a palavra pegou.
A 14 de Abril, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, disse, numa entrevista à Visão, que “não há nada mais engenhoso do que uma geringonça” – até já os visados justificavam a palavra. Dias depois, a 28, já não houve surpresas quando o próprio primeiro-ministro António Costa recorreu ao termo: “Sim, sim, é geringonça, mas funciona. É uma grande vantagem, estão a ver? É geringonça mas funciona.” E prosseguiu, depois das palmas da esquerda: “A nós não nos incomoda nada ser geringonça, mas a vocês incomoda-vos muito que funcione.”
O líder parlamentar do PS, Carlos César, tinha tentando antes referir-se à “direita que se desconjuntou” como uma “caranguejola”, mas o sucesso não foi o mesmo. A palavra “geringonça” entrou no léxico da política. Passou a ser usada, não em contextos de formalidade institucional, mas em debates parlamentares mais acesos e, também, em textos e em títulos de jornais.
Mas há outras expressões que entraram no léxico da política: “boys”, “arco da governação”, “bomba atómica”, “troika”. Os especialistas dividem-se: há quem considere que podem ser usadas por jornalistas; há quem discorde.
Opiniões distintas
A ex-jornalista Estrela Serrano explica por email, que o uso das metáforas “geringonça” e “caranguejola” pode considerar-se “natural no discurso político, porém, não o é no discurso jornalístico, precisamente porque este obedece a regras de rigor e de transparência”.
Também André Freire, politólogo, defende que os jornalistas devem fazer um “esforço” para se descolar de um discurso político que “não é inocente”. Os jornalistas, entende o professor universitário, devem evitar as palavras que se colem “muito à própria luta política”, devem estar um pouco “mais recuados”.
Opinião diferente tem a professora de jornalismo e investigadora na área dos media na Universidade do Minho, Felisbela Lopes, que entende haver uma “renovação do léxico” para falar de política e que essa renovação é “intrínseca à própria natureza da língua” que é “dinâmica”. Felisbela Lopes acrescenta que há “um ambiente mediático” propício à “recriação permanente de um certo vocabulário político” que é “expressivo”, o que faz com que o seu uso “seja muito apelativo ou atractivo”.
Num email enviado ao PÚBLICO, também Eduardo Cintra Torres, com doutoramento em Sociologia e mestrado em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação, reflecte sobre o tema: “Geralmente, palavras que aparecem ou as que ganham novos sentidos são necessárias porque correspondem a realidades novas ou porque as definem melhor do que palavras que estavam a uso.”
Vozes contra
Estrela Serrano, antiga provedora dos leitores do Diário de Notícias que foi assessora para a Comunicação Social do Presidente da República Mário Soares, diz que “geringonça, no seu sentido original é uma coisa obsoleta que não funciona bem”. Quando “aplicada aos acordos do PS com os partidos da esquerda parlamentar é uma metáfora pura, no sentido de que não necessita de mais palavras para exprimir uma ideia negativa (sobre os acordos), deixando a terceiros a descodificação dos significados possíveis”, acrescenta.
Na opinião de Estrela Serrano, “ao adoptarem ambas as expressões fora de um contexto de citação (isto é, sem aspas ou sem menção da origem) os jornalistas estão implicitamente a assumir ambas as expressões como naturais, legitimando o sentido negativo e achincalhante que está na sua origem.”
Diferente é o caso dos estrangeirismos boys e troika. Troika, justifica, “é um termo cujo significado é de valoração neutra, sendo usado geralmente para referir uma equipa de três pessoas que num determinado momento prosseguem um objectivo comum. Trata-se de uma simplificação para evitar a identificação das entidades que integram a equipa. No caso do jornalismo, não oferece problemas de rigor devendo contudo ser explicitada (pelo menos na primeira menção, tal como no caso de abreviaturas)”.
Já o termo “boys”, prossegue, “surgiu na política portuguesa com António Guterres, integrado na expressão ‘no jobs for de boys’, pelo que o seu uso isolado pressupõe que se conheça a expressão completa. A frase está conotada com favoritismo concedido a amigos e conhecidos mas foi sendo reduzida à palavra boys para significar ‘os rapazes do partido’ a quem os políticos dão emprego”. Os jornalistas, considera, “usam-na sem cuidarem de lhe dar o devido contexto”.
Alguns destes pontos de vista são partilhados pelo politólogo André Freire que recomenda cuidado aos jornalistas, aconselhando distanciamento e reflexão sobre a forma como se colam aos termos usados pelos políticos, como “geringonça”. “Ninguém fala assim das alianças à direita que, quando começaram, também foram muito instáveis”, sublinha.
Neste caso, prossegue, a palavra “geringonça” pretende “diminuir” a actual solução política. “Os jornalistas deviam ter algum cuidado nisso e distanciar-se. Acho que isso era desejável, porque são designações pejorativas que são utilizadas só para um lado, não para o outro”, acrescenta.
O mesmo se passa com “arco da governação”, diz. “Pior do que usá-la é naturalizá-la, como se fosse uma verdade incontornável. Agora a realidade vem rebatê-la, mas até aí havia a ideia que era assim, que tinha de ser assim, porque sempre foi assim.” Ora, diz o politólogo, usar essa expressão significa traduzir “uma espécie” de dado adquirido, algo “incontornável, perene e insuperável”. Note-se que a expressão “arco da governação” se refere aos três partidos que integraram governos constitucionais – PS, PSD e CDS.
Vozes a favor
Felisbela Lopes, da Universidade do Minho, não vê problema em que jornalistas e, sobretudo, comentadores, usem a palavra “geringonça”, porque reúne em si “um conceito forte”, diz. É uma palavra “muito expressiva” – o que permite que os próprios visados brinquem com ela – e também “muito sintética”.
Para Felisbela Lopes, “geringonça” integra hoje um “vocabulário central” para se falar da actualidade política. “Geringonça faz parte uma forma de fazer política e de diálogo também entre o poder legislativo e executivo muito particular. Acho que é uma palavra-chave nessa nova realidade”, diz a docente que tem uma licenciatura em Português e não se considera “uma purista”.
“A língua tem a necessidade de se renovar”, sublinha. “Em determinados períodos, quando a realidade também é nova, essa necessidade ainda é mais premente”, continua, admitindo que “geringonça” pode ter pegado por ser uma lufada de ar fresco num léxico por vezes cinzento, por despertar curiosidade, por fazer as pessoas quererem perceber como funciona essa nova dinâmica política.
O facto de a palavra não ser usada pelos políticos em determinados contextos institucionais não faz confusão à docente: “São contextos hiperconservadores. Não apenas ao nível da linguagem verbal, mas também não-verbal. Há uma natureza conservadora por excelência em momentos institucionais, o que significa que as pessoas usam a língua na sua forma mais pura.”
Doutorado em Sociologia e mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação, Eduardo Cintra Torres escreve, por email, que “geralmente, palavras que aparecem ou as que ganham novos sentidos são necessárias porque correspondem a realidades novas ou porque as definem melhor do que palavras que estavam a uso”.
Cintra Torres reconhece que, “mal se publicam, os dicionários são cemitérios de palavras mortas” e que “é nas ruas e nos media que encontramos palavras novas ou as novas utilizações para outras”. Há, continua, “muitas palavras que são inventadas pelo poder político e que entram em uso comum”. Em geral, escreve, “são eufemismos, como ‘contribuintes’, de êxito estrondoso: esconde que se trata de um pagamento odiado, esconde a sua essência e facilita a sua aceitação pelos pagantes”.
O “jargão político também nos trouxe o ‘inconseguimento’ e a ‘inverdade’, que amaciam a realidade de ‘falhanço’ e ‘mentira’”, diz. Já “arco da governação” é “uma metáfora, mas também eufemística. Pretende substituir ‘Bloco Central’ ou ‘sistema’, ambas com conotação negativa. Outros exemplos são ‘taxa moderadora’, que sugere taxa ‘moderada’, e ‘indemnização compensatória’, um eufemismo destinado a adocicar a injecção de dinheiro a mais numa RTP gastadora irresponsável, até tempos recentes. Nem era indemnização nem compensatória”, defende.
Para Eduardo Cintra Torres os media “precisam de algumas palavras para simplificar títulos e textos”. “Troika” é um exemplo, ilustra: “A palavra é usada há muito e simplifica ‘triunvirato’. No contexto do resgate de 2011, foi da maior utilidade. Dizer BCE-UE-FMI [Banco Central Europeu, União Europeia e Fundo Monetário Internacional] seria uma complicação. ‘Troika’ simplificou, sem acrescentar sentidos enviesados”, justifica.
Por fim, o caso mais recente: “geringonça”. “De novo, precisava-se de uma palavra para uma realidade nova, um governo do PS aguentado pelo BE e pelo PCP”, nota. “Se este uso da palavra não fosse bom, não teria sido apropriado pelo discurso político, mediático e popular. Era preciso dar nome à coisa e deu-se. É interessante que os próprios apoiantes da solução de governo usem o vocábulo. Porquê? Porque não tinham outro e assim procuram dar-lhe uma valoração positiva, carinhosa, que não tinha”. Em resumo, diz Cintra Torres: “Se não temos uma palavra para uma realidade é como se ela não existisse. Só existe o que podemos nomear.”
Dicionário
O significado político das palavras e alguns dos seus autores
Arco da governação: O dicionário da Priberam escreve que é uma expressão que define o “conjunto de partidos políticos que fazem ou estão em condições de fazer parte do governo de um país”. Antes das últimas eleições legislativas, que tiveram como resultado um Governo PS apoiado em três acordos com a esquerda, a expressão foi muito usada para falar do PS, o PSD e CDS-PP.
Boys: É uma parte da frase no jobs for the boys usada por António Guterres em campanha (contra Fernando Nogueira), em 1995, para prometer que o seu governo não distribuiria cargos e postos de trabalhos pelas máquinas partidárias. Daí ficou a palavra boys, como sinónimo de pessoas ligadas ao partido que estão no poder e que conseguem emprego nos sectores dependentes do Estado.
Autor: António Guterres na campanha das legislativas de 1995
Caranguejola: Foi usada no Parlamento para fazer referência à coligação de direita – PSD e CDS –, mas nunca pegou verdadeiramente.
Autor: Carlos César, no Parlamento
Geringonça: Pretende designar o Governo actual, formado com base em três acordos feitos entre o PS, o Bloco de Esquerda, o PCP e o PEV. A palavra foi adoptada primeiro pela direita (para ridicularizar a solução), mas a esquerda também já a usou.
Autor: Vasco Pulido Valente no PÚBLICO (sobre o PS). Mais tarde, foi Paulo Portas quem a usou para ilustrar a solução de governo.
Forças de bloqueio: Nascida em pleno cavaquismo, a expressão começou por referir-se a todos os que funcionavam como oposição à actividade do Governo, nomeadamente o Presidente da República, os partidos da esquerda e o Tribunal de Contas. Mais tarde, quando Passos Coelho era primeiro-ministro, a lista passou a incluir o Tribunal Constitucional.
Autor: Cavaco Silva, no final do seu último mandato como primeiro-ministro.
Inconseguimento: A palavra não existe e o facto de a então presidente da Assembleia da República, Assunção Esteves, a ter usado no sentido de frustração, de algo que não se realiza, apenas a colocou no léxico político pelo lado da ironia. Nunca ganhou consistência.
Autora: Assunção Esteves, num vídeo da RR
Inverdade: No site Ciberdúvidas da Língua Portuguesa a palavra é definida como característica do que não é verdade, mentira, falsidade. “O termo inverdade é uma inovação linguística, já introduzida na nossa língua, do tipo significante novo e conceito já existente. Num determinado momento surgiu um novo significante (inverdade) para um conceito já existente (mentira).” É um termo geralmente utilizado para suavizar a utilização do termo mentira.
Pântano: Nunca se chegou a perceber o que António Guterres queria dizer exactamente quando usou a expressão “pântano político”, mas ela passou a ser usada para designar forças obscuras que estão para vir e que podem comprometer o desenvolvimento do país.
Autor: António Guterres, na noite em que o PS perdeu as autárquicas de 2001
Tacho: Palavra que foi integrada no léxico político para designar um cargo apetecível, ao qual se chega por compadrio. Está relacionada com ‘boys’.
Troika: Substitui o trio de instituições que avaliaram as contas de Portugal e que fizeram parte da equipa quando o país foi alvo de intervenção. Refere-se à Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional.