Muito mais do que choco frito
A ideia era conhecer a região em três dias, com três guias. Na verdade, mais gente se juntou à romaria e ainda bem. Uma cidade é feita de muitas coisas. Escolhemos os passeios, a gastronomia e o património para desfrutar o que nos resta destes últimos dias de Verão.
1.º dia. A paisagem
Se há cinco anos dissessem a Vanessa Lima, agora com 38, que iria voltar a viver em Setúbal, ela responderia com uma risada. Hoje, é vê-la montar de manhã na bicicleta para ir ao mercado comprar o seu queijo fresco preferido, passar os dias no mar, regressar a casa extenuada, sabendo que nada é melhor que isto.
A sua história é a história de muitos em Setúbal, diz. Cresceu aqui, foi para fora estudar, lançou uma carreira na publicidade. Viveu a viajar, até chegar o dia em que, já com uma filha, decidiu que tinha de mudar de vida, abrandar, fixar-se. “Muita gente da minha geração saiu e está agora a voltar”, e com este regresso a cidade está a transformar-se. “Há mais trabalho e um trabalho mais diversificado porque há mais pessoas com coragem para seguir o seu sonho.” O seu foi a empresa Sea Life Lovers, que organiza passeios no mar.
Mas Vanessa Lima também gosta de estar em terra, e quando é preciso deslocar-se nada melhor do que a bicicleta. Por isso, ainda antes de nos lançarmos à água, o nosso primeiro dia em Setúbal vai começar em cima de duas rodas, tentando não atropelar os transeuntes. “É uma cidade relativamente plana. Vou de bicicleta para todo o lado, incluindo para as reuniões”, diz.
O caminho é feito pela Avenida Luísa Todi (a principal artéria da cidade, paralela ao Sado), que tem uma ciclovia de 1,29 km por baixo das suas árvores frondosas, dando alguma sombra. Depois, acompanhamos o estuário até à praia da Saúde, onde apesar de ser dia de semana muitos aproveitam o calor para estender a toalha. É uma praia urbana, que pouco poderá rivalizar com as vizinhas Galapos, Galapinhos, Figueirinha... Mas para um mergulho de emergência serve.
Depois do Parque Urbano de Albarquel, faz-se inversão de marcha. Antes de voltar à margem do rio, pelo clube naval e os dois cais marítimos dos ferries para Tróia, entramos nos bairros tradicionais colados à avenida: Fontainhas, Santos Nicolau, Troino, Fonte Nova. Virá dos troinos o sotaque de “r” carregado: era aqui que estavam muitas fábricas de conservas com proprietários franceses, que passaram a pronúncia à população, explicam-nos. Há quem diga a brincar que o sotaque vai voltar em força com o investimento imobiliário que alguns franceses estão a fazer (compraram vários dos 57 prédios que nos últimos dois meses e meio se venderam na Baixa da cidade, afirma José Fernando Gonçalves, da Casa da Baía).
A ligação à indústria conserveira, e à pesca, está em todo o lado. Ora em fachadas de prédios com grafittis aprimorados, como ao longo da Rua Vinte Seis de Setembro, ora nas chaminés que restam aqui e ali.
Neste dia de final de Verão, e à medida que se aproxima a hora do almoço, se só tivéssemos um cheiro para descrever o centro de Setúbal, seria a peixe grelhado. As esplanadas invadem ruas estreitas e largos. Vários edifícios (dois, três andares no máximo) estão abandonados ou a precisar de obras, mas muitos acabaram de ser recuperados e mostram uma Baixa charmosa. Vanessa Lima vai cumprimentando do alto da sua bicicleta. Vista daqui, a cidade tem uma escala confortável: suficientemente grande para que o passeio não saiba a pouco, suficientemente pequena para ficarmos com a falsa sensação de ter visto quase tudo o que vale a pena ver, mesmo sabendo que nunca veremos o suficiente.
Siga a marinha. Um dos barcos da Sea Life Lovers está à nossa espera com o mestre Carlos ao leme e a Ana Lúcia para dar apoio. A empresa foca-se em viagens de barco personalizadas: recentemente, recebeu durante o fim-de-semana uma festa de despedida de solteira. Entre rio e mar, experiências gastronómicas ou musicais (com jam session, por exemplo), dias inteiros ou um par de horas, na companhia de champanhe ou vinho branco, as alternativas são tantas quanto os clientes, ainda que haja alguns pacotes pré-definidos. “Nunca tenho uma saída igual a outra.”
A ideia é “fazer na água o que se faz em terra”, durante o ano inteiro, continua Vanessa Lima. “No Verão as pessoas vão para a água para se divertirem, no Inverno tem de haver um motivo para isso.” Um deles pode ser chegar a locais onde nunca se chegaria de outra maneira. Esta é também uma forma de explorar “a panóplia de ambientes que temos naturalmente”. É essa diversidade que temos neste instante diante dos olhos: o rio, o mar, a cidade e a serra.
Como esta é uma forma de conhecer a região, a gastronomia tem um papel importante a bordo, com degustação de produtos locais. A nós calhou-nos o tradicional choco frito, com gomos de lima, e uma bela massada de sapateira, saboreados perto da Caldeira de Tróia, passando já os esqueletos das embarcações que encalharam com a descida da maré e ali ficaram para sempre, as ruínas romanas que sobrevivem no areal, com os pinheiros em fundo, os dois pescadores que lançam pacientemente a cana à água.
A esta viagem juntou-se João Serralheiro, da Lima e Limão Cycling Services. Trabalhava numa multinacional antes de se estabelecer aqui; andou por todo o mundo. “Quando se viaja e se está muito tempo sozinho, vai-se tomando notas. A área do turismo em bicicleta foi uma das minhas notas.” Passeios pela serra é com ele. E, mais uma vez, o cliente é quem decide. “O turismo em Setúbal é recente, tem dois ou três anos. Os serviços estão a organizar-se em função da procura.” Habitualmente, os passeios que organiza não descuram a parte gastronómica. Quem pedala gosta de almoços em adegas e provas de vinho.
A região está a ser cada vez mais visitada por estrangeiros, mas a anfitriã quer sobretudo trazer os turistas portugueses e acha importante realçar isto: “Nós somos os nossos próprios testemunhos. Temos de trazer as pessoas de dentro [e mostrar que] Setúbal não é choco frito.” É verdade que é uma vantagem estar perto da capital, “mas não faz sentido inseri-la no Turismo de Lisboa”, avisa. “Não é um apêndice de Lisboa, tem uma estrutura totalmente diferente.”
Indo agora na direcção oposta, como o rio seguindo para o mar, ficamos com o porto e a zona industrial à direita. Um desperdício de paisagem para fábricas e chaminés: Lisnave, Eurominas, Portucel, a central termoeléctrica... Mais adiante, à esquerda, está o casino de Tróia. É seguir viagem. À direita novamente: o forte de Santiago do Outão, que foi convertido em hospital ortopédico, o forte de S. Filipe, o convento da Arrábida...
Nas enseadas da serra sucedem-se praias de água fria e cristalina: Figueirinha, Galapos, Galapinhos, Coelhos, Creiro, Portinho da Arrábida (uma das sete maravilhas de Portugal), Alpertuche. Não vemos golfinhos, mas só por acaso. Estamos agora a regressar. Um cargueiro gigante faz balançar o barco como se houvesse tempestade. Mas tudo acalma num instante.
A chegada à marina não tarda, e à nossa espera, antes de um arroz de lingueirão com pregado no Miguel, estará uma lata de ovas de sardinha com um copo de vinho branco. E como as coisas boas da vida são para ser partilhadas, o tal queijo fresco comprado de manhã no mercado vem também para a mesa.
2.º dia. A gastronomia
Marcámos encontro às nove horas no Mercado do Livramento, e às nove horas o chef Luís Barradas lá está, na Casa das Bifanas do senhor Ramiro e da dona Celisa. É o seu pequeno-almoço e de muitos outros que lhe chamam a melhor bifana de Setúbal – uma classificação que não é (nunca é) consensual.
Olhemos em volta. Na zona lateral, estão os “caramelos”, os pequenos produtores que têm quintas nos arredores da cidade: “São um barómetro da estação, que nos ajuda a ter ideias para os pratos.” No centro, estão os vendedores com banca fixa.
A “praia” de Luís Barradas é o peixe. Aos 40 anos, é um sushiman certificado pelo All Japan Sushi Association, e foi director de investigação e desenvolvimento do grupo Sea Me; actualmente, é chef executivo no restaurante da Quinta do Tagus, no Monte da Caparica. Tem um atum rabilho tatuado no braço esquerdo (“é o peixe mais apreciado da cozinha japonesa”) e há-de ter também um charroco e um choco. No braço direito, o seu número da sorte: 13.
E é pelo peixe que começamos. Na banca de Ana Conceição e filhos, há um espadarte de 100 quilos com a cabeça decapitada ao lado, bico espetado para cima, como uma espada pronta a ser usada. O chef vai listando: peixe-galo, também chamado “S. Pedro” por uma mancha que se diz ser a marca do seu polegar, ou alfaquim (na banca em frente há-os mais pequenos, bons para fritar), rodovalho, sargo, salmonete (“um dos meus peixes preferidos”), peixe-agulha, também chamado “peixe do casamento” ou, ainda mais popular, “peixe da foda”. Adiante. Cabra-vermelha (“da família dos peixes voadores; a minha avó gostava muito dele cozido”), pescada, abrótea, chaputa (“há quem cozinhe as bochechas como se fossem peitinhos de pombo”).
É na banca do sr. Paixão que normalmente faz as compras para a caldeirada à setubalense, onde não podem entrar os peixes de escama, avisa, e são bem-vindos os fígados de tamboril. A tramelga está em vias de extinção e deixou de aparecer no tacho, tal como o peixe-anjo, esse já extinto. Que venham então o safio, o tamboril, a raia (“no Japão, usam a pele da raia seca para ralar o wasabi”, diz Luís Barradas), pata-roxa (um pequeno tubarão, cuja pele também parece lixa e nem sequer secou ainda), cação (agora chamado “perna de moça”), charroco (que dá o nome à pronúncia setubalense e muito gosto à caldeirada, segundo o peixeiro). “Segundo a lenda do mar, a pata-roxa não quis casar com o salmonete. Ela no mar é linda, cheia de cores, e cá fora é feia; o salmonete é ao contrário”, explica o sr. Paixão.
A ligação ao mar está bem representada também nos azulejos do mercado, construído em 1930, com cenas sobre a descarga das redes, o transporte de sal, a reparação das redes (que Luís Barradas ainda se lembra de ver), a recolha do sal, a descarga da sardinha e a salga do peixe. Depois, uma vista geral da região, na qual se vêem os castelos de S. Filipe e de Palmela (“o triângulo Setúbal, Palmela e Azeitão deveria ser património gastronómico da humanidade”, comenta o chef), e também os bairros antigos. Na sequência vem agora o campo: colheita da azeitona, lavra, sementeira, ceifa do arroz, vindima, o antigo mercado e a rega do pomar. Resumindo, a prova de como esta é “uma cidade virada para os dois mundos”.
Passemos então para as coisas da terra. “O que a horta da Quinta do Tagus não produz eu compro aqui.” Aqui é a banca da D. Donzília, onde brilham as maçãs riscadas de Palmela que Barradas costuma servir com ostras no seu restaurante. “Quando era miúdo, no Verão ia lavá-las ao mar e essa mistura de doce e salgado traz-me muitas memórias.” Há ainda figos, uvas, pêssegos.
Ao lado do pão, do sr. Victor, também se encontram enchidos e torresmos. “Este torresmo do rissol é o torresmo no seu estado puro, cozinhado na banha”, explica Luís Barradas. “É uma bomba, mas é o meu preferido. Uso esta gordura para os nigiris de pargo ou besugo, porque a minha mãe sempre fez o pargo assado com toucinho branco.” Descreve a sua cozinha como “de fusão luso-nipónica” e já estamos a perceber porquê.
Com duplas portas para o mercado e para a rua, os talhos sucedem-se. Paramos no Talho da Luz. “Vê-se o esforço para ter produtos acabados, como aqueles hambúrgueres de beterraba ou espinafres. Os cortes são os habituais, mas fazem coisas diferentes.” Uma dessas coisas é uma massa de pimentão caseira. “É a que eu uso. Uma delícia.”
Na banca da Alice, há maxixe (parece pepino e é bom para pickles), giló, da família das beringelas, vários tipos de malagueta. Na banca da Adriana, temos a Arrábida. Ou melhor, as ervas da Arrábida que o marido vai apanhar. “A serra é o que temos para a nova geração. A gente precisa tanto de respirar. Nós é que estamos a matar isto tudo”, diz a vendedora. Aqui está o alecrim, rosmaninho (com folhas mais finas que o habitual), perpétua das areias, que se encontra nas dunas de Tróia e que transporta o chef para a praia. “Fiz uma cama de algas frescas e perpétua das areias com lingueirão”, conta o chef. “Também costumo fazer com ostra e dá um muco que parece que saiu de uma técnica de infusão avançadíssima! Faço uma cozinha de casa: mais arcaica. Andei para o passado numa altura em que está tudo concentradíssimo na técnica.”
Para chegar a Faralhão e visitar Célia Rodrigues, produtora de ostras, é preciso sair da cidade, passar pelos esqueletos das antigas conserveiras, atravessar o cheiro azedo da fábrica de fermento, deixar para trás a monstruosa central eléctrica, já desactivada, com as suas duas torres gigantes. Agora as ruas de vivendas e pomares, tascas com anúncios de choco frito, prédios baixos dos anos 1980. Por fim, o sapal.
O Neptuno, um rafeiro alentejano, passa indolentemente por nós. Foi baptizado depois da empresa de Célia Rodrigues, a Neptunpearl, ostras da Reserva Natural do Estuário do Sado. E já agora: Faralhão é a síntese de Faro e Olhão, explica-nos. “Pessoas dessas cidades vieram para trabalhar nos arrozais, nas ostras. Ao início de forma sazonal, mas acabaram por se fixar cá.”
Pendurado na fachada de uma cabana de madeira onde se guarda material, está um rosário feito com cascas de ostras, já todo branco. Para que servia? “Como vivem num ambiente lodoso, depois da fecundação, que se dá na água, as ostras precisam de encontrar uma superfície sólida para se fixarem.” Enfiadas num arame, as conchas davam essa estabilidade. “Nos bancos naturais, ficam em cima umas das outras, como cachos. Antigamente, os extractores iam apanhá-las, e depois em mesas corridas as mulheres destroncavam-nas [separavam-nas] e lançavam-nas outra vez na lama.” Na altura de as vender, iam buscá-las e faziam-nas seguir para França, o principal cliente, onde eram conhecidas como les portugaises.
As antigas salinas foram afundadas para dar lugar à piscicultura, porque o negócio do sal é bem menos rentável: uma tonelada custa 60 euros. Muitas delas são agora campos de lodo escuro. “Venho fazer ostras para aqui para aproveitar estes espaços”, diz Célia Rodrigues. Entre os campos, cresce salicórnia com fartura, ainda que longe do que se via no ano passado. Também se encontra cabelo de velha, alface do mar, códium, tudo algas que poderiam ser mais utilizadas pelos cozinheiros portugueses, diz. “No futuro, vai ser a nossa base de alimentação”, prevê Luís Barradas. Na maré cheia, o sapal fica inundado, quando desce ficam umas ilhotas à superfície, e que agora estão à vista. E os sacos de ostras ficam também fora de água.
A anfitriã é de Peniche, de uma família de pescadores e peixeiras. “Sou pouco terrestre, quase nada. Ainda hoje tenho o sonho de viver num barco. Para mim, a terra é difícil”, confessa. Instalou-se em Setúbal há 18 anos (tem 43) para montar uma maternidade de peixes. “Fui para aquacultura para proteger os mares.” Porque “há aquacultura e aquacultura”, comenta o chef. A que Célia Rodrigues faz é uma ostricultura em aquacultura integrada: as ostras são biofiltradoras e ajudam a reduzir a carga orgânica libertada pelos peixes, “porque o sapal é um ambiente já com imensa matéria orgânica”. Aproveita-se a fauna local e as marés. “Interessa mostrar tudo o que aqui habita. Isto é uma maternidade natural. Tudo nasce aqui.”
Para além disso, ajuda a preservar a crassostrea angulata, a ostra autóctone, que quase desapareceu quando em 1968 a doença das brânquias provocou uma crise mundial nas ostras, e que em Setúbal foi agravada pelo início da industrialização, na mesma altura. “Em Lisboa, que era o maior banco natural de ostras da Europa, já nem havia ostras por causa da poluição de metais pesados”, adianta. Foi depois disso que se começou a introduzir a crassostrea giga, “mas ela não se aguentou e as pessoas largaram a actividade”. Só que, com a introdução da giga, “ficou tudo misturado. É muito importante preservar a crassostrea angulata na medida em que oferece diversidade genética”.
Em frente à tal cabana de madeira há uma mesa. E em cima da mesa está uma travessa cheia de ostras fine de claires, que Célia Rodrigues abre com uma desenvoltura invejável. Corta o músculo, “lava-as” na sua própria água, que deita fora, e depois vão directamente para a boca, sem mais nada. É difícil ser melhor do que isto.
Foi só o aperitivo, porque o almoço será no Orlando, um restaurante mesmo à beira do mercado, onde Luís Barradas gosta de vir almoçar quando está de folga. “Peixe fresco, comida simples”, com produtos do terreno do proprietário, Paulo Rodrigues, seu amigo há 20 anos. Vêm para a mesa besugos, carapaus-manteiga, salmonetes. Todos eles são servidos em cima de uma fatia de pão, que no final vai a assar na grelha.
Depois de combinar esta visita guiada com a Fugas, ocorreu a Luís Barradas que as suas primeiras memórias de comida estão no Palácio da Bacalhôa, onde tínhamos marcado uma visita. Isto porque a sua avó, que já morreu, foi governanta da casa. Acompanham-nos agora a mãe, Maria do Rosário (que casou lá) e a filha do chef, Luna, que nunca tinha ido ao palácio, em Vila Fresca de Azeitão, e que pertence agora à Fundação Berardo.
Construído na primeira metade do século XV como propriedade real, era já uma ruína quando nos anos 1930 uma norte-americana fascinada por azulejos – Orlena Scoville – o descobriu e decidiu comprá-lo. Sabendo que a nova proprietária estava a resconstruí-lo, e tendo na adega um caixote cheio de azulejos que teriam vindo de lá, a avó paterna de Maria do Rosário mandou entregá-los à Quinta. Orlena Scoville agradeceu enviando uma peça de loiça e aí começou uma amizade que faz com que Maria do Rosário e Thomas, neto de Orlena, ainda hoje continuem a comunicar.
Como a sua mãe se tornou governanta na casa, Maria do Rosário passava lá muito tempo – e conheceu muitas das suas visitas, incluindo Robert Kennedy, senador e irmão do ex-Presidente americano, ou o então embaixador Frank Carlucci. Mas há mais de 20 anos que não a visitava.
Quando entramos, mãe e filho avivam as memórias das peças que estavam e não estavam em determinado local. “Aqui havia um raspa-pés com a forma de cão”, diz o chef apontando para a porta de entrada da cozinha que dá para o exterior. Mesmo ao lado, na sala onde agora estão cadeiras empilhadas e copos guardados em caixas, Maria do Rosário lembrava-se de ver depositada a bagagem de Orlena quando vinha passar uma temporada a Portugal.
“O Thomas estava sempre a convencer-nos a fazer escavações porque achava que ia encontrar um tesouro”, ri-se Maria do Rosário. O neto de Orlena tinha razão numa coisa: havia algo por descobrir, porque há toda uma galeria de tijolo à mostra que antigamente estava soterrada e que agora abriga realmente um tesouro (parte da colecção do empresário Joe Berardo). Foi este o neto que recebeu a quinta de herança — “fomos à festa de noivado dele”, conta — e foi ele quem decidiu começar a plantar vinha, em 1974. “O primeiro vinho foi pisado por nós.” Hoje, os vinhos da Bacalhôa contam com 300 hectares de vinha espalhados pela península de Setúbal, mas só cinco é que estão na área do palácio.
Maria do Rosário tem pena de não ver as nogueiras centenárias que ocupavam uma alameda onde agora só há calçada branca. Mas os novos donos fizeram “um bom trabalho. Não há nada a dizer”.
Quem também fez um bom trabalho foi Rui Simões. Tem uma medalha de ouro da World Cheese Awards pelo seu queijo de Azeitão DOP. O segredo? “Boa higiene e boa matéria prima.” A Queijaria Simões é um negócio de família que começou “como uma brincadeira”. Ao início usavam 80 litros de leite por dia. Agora são dois mil. “Já não tenho ovelhas, agora compro o leite”, diz.
Apesar do prémio, é difícil exportar o queijo para o exterior. “Só o vinho e o azeite é que têm boa imagem no estrangeiro”, afirma este produtor de 55 anos. Mesmo cá, já se vendeu mais: “As mulheres antigas levavam sempre o queijo aos doutores. Agora nada. Como eles dizem, é a conjuntura.” Antigamente, encontravam-se muitas queijarias aqui na Quinta do Anjo. Agora, só duas. E a sua é a única queijaria artesanal de Azeitão licenciada, garante.
Visitamos a sala do cardo, onde a flor é triturada para fazer uma pasta que será filtrada e que ajuda o leite a coalhar. Depois, a zona de fabrico, com duas cubas de 200 litros e uma de 300. De seguida, as câmaras de cura, onde os queijos repousam primeiro a 11ºC, depois a 14ºC, para secar a casca. O processo é fundamental para ficar amenteigado. No total, nunca recebem menos de 25 dias de cura. “Tem de ser um processo quase natural, sem precipitações.”
E já que aqui estamos, mais vale dar um pulo a outro negócio de família. A pastelaria O Cego está aberta desde 1901. José Pinto, de 53 anos, recebeu-a do pai, que a comprou em 1975. Quem lá entrar agora encontra-o acompanhado da mulher, Teresa, e a filha, Beatriz, “para ela aprender a gostar, que isto não é fácil”, desabafa do outro lado do balcão. “Mas à frente está sempre o nome da casa. Temos de manter a qualidade.”
Não é pasteleiro. Aprendeu tudo com as pessoas que sempre fizeram os Esses e as Tortas de Azeitão, tentando manter o tradicional, mas actualizando onde pode. Exemplos? Serve-nos um granizado de Moscatel acompanhado por Memés: uns deliciosos pastéis de massa filo com requeijão de ovelha e doce de ovos por cima, que têm de ser feitos na altura para não amolecer. E a mesma ordem de ideias manda comê-los de uma só vez.
3.º dia. O património
Todas as sexta-feiras, Bruno Ferro e Maria Miguel Cardoso encontram-se com Raul Gamito Gomes, Alexandre Portela e Rogério Vaz de Carvalho para olhar para fotografias antigas da cidade e tentar identificar pessoas e lugares. Hoje é sexta-feira.
Bruno Ferro tem em mãos, através da Casa Bocage, o espólio de Américo Ribeiro (1906-1992), autor de todas as fotografias que são analisadas. Maria Miguel Cardoso é antropóloga e trabalha no Museu do Trabalho Michel Giacometti, que criou este Centro de Memórias. Vaz de Carvalho está de férias no Algarve, por isso cabe a Gamito Gomes (85 anos) e Portela (78) a tarefa de voltar atrás no tempo.
Olhamos para algumas fotografias que já foram analisadas e que por terem feito parte de uma exposição, em Janeiro, estão protegidas por acrílico. Como esta de 1929, um ano antes da construção do porto, tirada a partir do bairro Santos Nicolau, e que exigiu a Gamito Gomes várias caminhadas até encontrar o exacto ângulo que produziu a imagem actual.
Alexandre Portela conta que tem um site com mais de 3 mil fotos, e que desde os 20 anos é fotógrafo amador. Mas é sobretudo Raul Gamito Gomes quem faz as despesas da conversa. Aponta para a “Batalha das flores, 15 de Maio de 1949”. Todas as raparigas que aparecem no carro alegórico que venceu o desfile, incluindo as que não se vêem na foto por estarem tapadas pelo carro (cheio de flores de papel, cavalos marinhos, um tridente), foram identificadas com a sua ajuda. Percebeu que uma delas era Rita Fuzeta da Ponte e foi ela quem ajudou a dar o nome às outras 13.
O Centro de Memórias funciona desde 2007 e o grupo já fez o reconhecimento de mais de 6800 fotografias. O espólio conta com 140 mil. Américo Ribeiro “foi uma espécie de fotógrafo oficial da cidade”, dizem os anfitriões. “Registou todos os acontecimentos importantes: as cerimónias não começavam enquanto ele não chegava e não deixou nenhum tema de fora: transformações urbanísticas, desporto, trabalho”, acrescenta.
É Bruno Ferro quem prepara as 50 imagens a ser analisadas na sexta-feira, com toda a informação recolhida pelo próprio fotógrafo. Através do computador, ampliam-se para se ver melhor os detalhes. Este grupo dá “um contributo valioso para o estudo desta colecção. Ajuda a dar vida a uma imagem que é fixa e a ver o que ela representa: os hábitos, o quotidiano”, diz. Gamito foi o primeiro treinador de andebol do Vitória. Conhece muita gente na terra e tem uma memória afiada. “Não há muitos que não consigam identificar. Eles são muito persistentes”, comenta Maria Miguel Cardoso. Já aconteceu descobrirem erros nas legendas, como este: “Largo da Misericórdia, 1939”. A data não está certa porque o prédio que aparece foi demolido antes disso. Em frente havia o restaurante Novo Dia, onde Gamito ia lanchar ao final da tarde para comer “o melhor choco frito da cidade”.
Pouco depois (antes haverá ainda um almoço no Snack Bar da Ti'Amélia com linguados fritos, carapaus e arroz de tomate), estaremos a passar por aquele mesmo local na companhia de Leonor Soares.
Trabalha no serviço educativo dos Museus Municipais e por isso é a pessoa certa para nos mostrar coisas que estão à frente dos nossos olhos, mas que sem ela não conseguiríamos ver. Como a porta manuelina na Rua Dr. António Joaquim Granjo, 42, decorada com flores, pinhas e romãs, que simbolizam a fertilidade. Ou as antigas cantarias em brecha da Arrábida, um conglomerado que foi utilizado na muralha, em habitações, igrejas, e que muito polida parece mármore. Numa rua aponta para o entalhe de três bicos, que representa a santíssima trindade. Noutra para o painel de azulejos com santos protectores, colocados nas fachadas depois do terramoto de 1755. “Diz-se que 40% da população morreu com o terramoto”, por causa do sismo, do tsunami e dos incêndios, conta. Por exemplo, a igreja de S. Julião, do século XIII, na Praça do Bocage, “ruiu quase toda e apenas sobraram os dois portais manuelinos”.
Seguimos agora em direcção à Casa do Corpo Santo, que no exterior apresenta ainda os restos da muralha de 1350 (a primeira a ser construída; a segunda é de 1650 e inclui já os bairros do Troino e Fontainhas). “É uma antiga confraria de pescadores e navegantes, também chamada Museu do Barroco.” Construída em 1714, tem três zonas que se percorrem rapidamente: sala do vestíbulo, capela e sala do despacho. Mas abriga várias peças barrocas que estavam em locais diferentes da cidade, aqui reunidas para fazer jus à exuberância da casa, como o esplendoroso cofre do Sepulcro, do século XVIII.
Em 1979, durante a construção do edifício onde está agora o centro de turismo Ask Me Arrábida, descobriram-se as ruínas de um conjunto de salgadeiras romanas. As maiores para conservas comuns – de atum, sardinha, cavala – as mais pequenas para preparados de peixe, ou garum, uma pasta de peixe para tempero, só acessível aos mais abastados, e que seguia daqui para todo o império, explica Leonor Soares. Setúbal chamava-se então Cetóbriga.
Passamos agora na Rua Dr. Paula Borba. Há que olhar para o Paço da Procissão do Corpo de Deus, que se assemelha à fachada de uma pequena capela, com as cinco chagas de Cristo, mas que afinal é a ourivesaria Paço da Pérola.
E não tarda estamos já a encontrar Maria João Cândido, “a nossa arqueóloga de estimação”, diz Maria Miguel. É ela que nos acompanha na visita ao Convento de Jesus – em frente à igreja, num largo amplo, bate um sol impiedoso, mas vários miúdos não deixam de tentar movimentos ousados por cima dos seus skates.
A arqueóloga participou nas duas fases de escavação envolvidas na recuperação do convento, que estava enterrado a mais de um metro de profundidade. O projecto de recuperação, dirigido pelo arquitecto Carrilho da Graça, quis devolver o edifício à sua cota original, explica.
Foi a ama de D. Manuel I, Justa Rodrigues Pereira, quem encomendou a obra, projectada por Diogo Boitaca (antes de este desenhar o Mosteiro dos Jerónimos), e a construção arrancou em 1490. Era um convento de clarissas até à extinção das ordens religiosas (em 1834). E por ser uma ordem de reclusão, a entrada dos fiéis na igreja é feita pela fachada lateral e não de frente para o altar, zona reservada às freiras, que assistiam à missa através de uma grade e por trás de uma cortina.
Duas crónicas encontradas, escritas por duas freiras em duas épocas diferentes (uma do século XVI outra do século XVIII), dão algumas pistas sobre a vida no convento. “Sabemos por elas que havia a casa dos padres, a casa da roda [para receberem produtos vindos do exterior, não crianças como noutros locais]. Havia uma janela com grades e espigões” para manter a distância e um pano preto para não se ver o vulto, mas que servia para as freiras poderem comunicar com os familiares que as visitavam. “Uma andava com uma pedra na boca para não falar. Outra era para não comer”, conta a arqueóloga.
A obra de recuperação não está ainda concluída, mas na zona que está visitável no segundo piso do convento, e que corresponde ao antigo dormitório das clarissas (“uma camarata só com cortinas a separar as camas”), Maria João Cândido aponta para uma mesa onde estão expostos vários resquícios de loiças, todos eles descobertos durante os seus trabalhos. “No lado nascente encontrámos uma zona de lixeira: peças em cima de peças deitadas fora por qualquer razão. Algumas estavam inteiras.” Há a teoria de que seria uma forma de se livrarem de utensílios usados por freiras que estavam doentes, para evitar o contágio. “Todas as freiras eram de famílias nobres, que traziam um belo lote de loiças importadas.”
Quando em 1889 morreu a última freira que habitava o convento, o edifício foi cedido à Misericórdia para se criar um hospital, que ali ficou até 1959. Dois anos depois, instala-se o Museu de Setúbal.
E é aqui que regressamos a Américo Ribeiro. O quadro de Fernando Santos sobre Bocage e as suas musas inspiradoras, de 1929, e que está exposto numa das paredes do museu, foi captado na altura pelo fotógrafo e essa imagem está ao lado da obra a óleo. Mas o que vemos são duas coisas distintas. Na fotografia, há situações um pouco mais ousadas, que na obra real não aparecem. Foram portanto censuradas. “O quadro do Américo repõe a ‘verdade’ do quadro”, diz Maria Miguel.
A tarde ainda se estende. Já que falamos de memória, há tempo para uma passagem pela Mercearia Confiança de Troino. Os pais de Eduardo Silva, de 77 anos, trabalharam aqui toda a vida. E quando morreram, o antigo professor de Físico-Química quis preservá-la como se fosse um museu. “É um património do bairro”, diz. E por isso a exploração é feita pela câmara, para que seja possível manter as portas abertas.
Já não vende as castanhas piladas, bacalhau, azeite, vinagre ou café, como no tempo em que o merceeiro passava atestados de idoneidade para quem queria comprar casa, contratar serviços de água ou luz, contrair um empréstimo. Agora há algumas conservas, produtos regionais, vinho. O gato lá está, à porta como sempre esteve, e olha-nos fixamente. A única diferença é que agora é de loiça.