As várias línguas dos Octa Push
No seu novo álbum os portugueses Octa Push mesclam linguagens afro-portuguesas com sons globalizados na companhia de Maria João, Tó Trips, Batida ou Cachupa Psicadélica. O resultado é Língua.
São irmãos mas começaram por criar musica individualmente há cerca de dez anos, antes de resolverem formar os Octa Push em 2008. Em 2013 estrearam-se com o álbum Oito, editado pela inglesa Senseless Records, e agora regressam com Língua em editora própria. Trata-se de um registo ambicioso inspirado em décadas de experiências musicais entre músicos portugueses e dos países africanos de língua oficial portuguesa, tudo passado pela lente da cultura urbana global com alusões a várias linguagens.
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São irmãos mas começaram por criar musica individualmente há cerca de dez anos, antes de resolverem formar os Octa Push em 2008. Em 2013 estrearam-se com o álbum Oito, editado pela inglesa Senseless Records, e agora regressam com Língua em editora própria. Trata-se de um registo ambicioso inspirado em décadas de experiências musicais entre músicos portugueses e dos países africanos de língua oficial portuguesa, tudo passado pela lente da cultura urbana global com alusões a várias linguagens.
“Tínhamos uma certeza quando nos sentámos para discutir o que fazer com este disco: não queríamos fazer um álbum idêntico ao anterior”, diz Leonardo Guichon, recordando o encontro com o irmão Bruno. “Por norma, analisa-se o que correu bem e mal no primeiro disco e opta-se por potenciar o que aconteceu de bom depois. Mas não nos apetecia ir por aí. Havia essa ideia de fazer algo que tivesse a ver com a realidade portuguesa até porque andámos pela estrada depois do primeiro disco e sentimos que era importante falar de linguagens, de misturas, de mesclas ou fusões.”
No seu íntimo sentiam que havia um país a duas velocidades. Por um lado, celebrava-se uma Lisboa cada vez mais aberta à diversidade, pós-colonial, capaz de se rever nos Buraka Som Sistema, nos Batida, na actividade da editora Príncipe ou nos próprios Octa Push. Por outro, deparavam-se com um país onde as formas de segregação ainda são suscitadas pela cor da pele, pelos timbres ou pelos consumos culturais. “Sentimos que Portugal não estava assim tão aberto quanto deveria estar e que existiam ainda formas de racismo camuflado”, diz Leonardo. “Nas nossas actuações ainda ouvíamos que aquilo era ‘música de pretos’ e esse tipo de coisas. Isso mexeu connosco. E foi também por isso que avançamos para este disco.”
Como já tinha acontecido no primeiro álbum voltaram a contar com uma série de convidados. Mas, não só desta vez foram bem mais os participantes, como a integração aconteceu de forma diferente. “No primeiro álbum estávamos entre amigos. Íamos para estúdio e as coisas aconteciam”, lembra Bruno, “enquanto neste caso os convidados foram escolhidos com mais precisão até porque é um álbum com um olhar retrospectivo sobre os últimos 40 anos. Acabámos por focar-nos em músicos que tinham uma relação com formas musicais afro-portuguesas.”
Efeito Buraka
Entre os convidados encontramos vozes como a de Maria João, Cátia Sá (ex-Guta Naki) ou AF Diaphra e músicos como Tó Trips (Dead Combo), Batida, Cachupa Psicadélica, Ary (Blasted Mechanism) ou João Gomes (Orelha Negra). “Foi um privilégio podermos ter tanta gente neste disco com um legado tão rico”, evoca Leonardo, realçando que a “Maria João tem todo um passado de ligação com sons africanizados, o mesmo acontecendo com o Tó Trips através dos Dead Combo ou o João Gomes, mesmo numa fase pré-Buraka, com os Cool Hipnoise ou Spaceboys.”
Quem acaba por indirectamente também estar presente é Zeca Afonso, através de uma versão de um tema seu, até porque segundo Bruno “ele espelha o conceito que queríamos transportar para este álbum que era essa fusão que ele desencadeou há muitos anos.” O tipo de mescla entre linguagens urbanas globais de cariz electrónico com sonoridades mais localizadas (semba, funaná, afro-house ou bossa nova) já estava presente no primeiro álbum da dupla, mas agora acaba por ser mais evidente.
“Há pontos de ligação entre os dois discos porque no limite, no primeiro, já havíamos tentado fazer um pouco isto, mas o resultado acabou por ser mais pop”, reflecte Leonardo. “Esse ângulo afro-português estava lá mas acabou por diluir-se até pelo facto de haver vozes em inglês. Agora a coisa tornou-se clara. Também por causa dos convidados. O tema com a Maria João começou por ser instrumental, mas às tantas pensámos que ficava ali bem uma voz como a dela, a improvisar, dando-lhe espaço para ela fazer o que lhe apetecesse, e convidámo-la. A guitarra do Tó Trips surge depois de o termos visto ao vivo na ZDB. E mais uma vez foi porque sentimos que tínhamos um tema que se adequava na perfeição a ele.”
Do ponto de vista sonoro, o primeiro álbum era mais polido, de cariz electrónico e centrado em alguns temas na ideia clássica de canção. Em Língua, a estratégia foi um pouco diferente. “Este é um álbum mais sujo e possui uma estética menos electrónica, embora tivesse sido também criado maioritariamente com recurso ao computador. Mas aqui não tivemos como estratégia pensar em dois ou três temas para serem ouvidos na rádio. O que nos interessou mesmo foi a ideia de fusão.”
Ao longo dos anos o duo foi lançando discos em diversas editoras (Soul Jazz Records, Soundway, Iberian Records, Optimus Discos ou Enchufada) e recebendo ecos positivos de nomes tão diversos como SBTRKT, Thom Yorke (Radiohead) ou Gilles Peterson (BBC). Aliás, foi em parte o interesse suscitado no exterior que contribuiu para que tivessem alguma notoriedade em Portugal. “É verdade”, reconhece Bruno, “o facto de termos tido alguma atenção de Inglaterra ou de alguns festivais, bem como a minha participação na Redbull Music Academy, acabou por ser importante para algum reconhecimento entre portas.”
Há também um outro factor que os ajudou em termos de contexto na fase inicial. “Os Buraka Som Sistema estavam em alta na Europa”, recorda Leonardo, “e isso contribuiu para que existisse algum interesse sobre o que se passava em Portugal.” E agora que os Buraka chegaram ao fim isso poderá ser benéfico ou negativo para uma formação como os Octa Push? “Vai ser igual”, ri-se Leonardo. “Talvez venha a ser melhor para um grupo como os Throes & The Shine, que ao vivo têm uma presença forte que resulta bem em festivais, mas em comparação com os Buraka nós não somos tão festivos e tão adrenalina. Agora é evidente que eles abriram caminho e o seu fim pode não ser benéfico para a cena portuguesa. Chegámos a ir a um festival em Inglaterra em que eles estavam a tocar em três pistas ao mesmo tempo, portanto, sim beneficiámos desse efeito Buraka na fase inicial do nosso percurso.”
Apesar de todas as mesclas efectuadas no novo álbum a raiz fundadora do projecto mantêm-se, assente nas linhas de baixo vigorosas e na gravidade do ritmo, ideias ainda herdadas de idiomas britânicos como o UK garage ou o dubstep. E isso sente-se mesmo quando é o nervoso rítmico do funaná que se experimenta no tema inicial Fogo, com voz de Cátia Sá, ou quando o ritmo diminui, tornando-se mais preciso em Cueca, com Maria João a impor a sua expressividade vocal, ou mesmo quando é a envolvência dançante afro-house que se verifica em Língua, com o som hipnótico da kora de Braima Galissá a marcar o tema.
O mesmo acontece, aliás, em trips makakas, com a guitarra portuguesa de Tó Trips a entender-se com o dinamismo rítmico proposto, ou quando é o aroma brasileiro que se faz sentir em Gaia cósmica. Em Barbara a energia rítmica balança com momentos de acalmia, para tudo terminar em festa africanizada com as vozes e percussões de Zeca. “Mesmo nos temas mais pop existe gravidade e peso e sempre gostámos disso”, reflecte Bruno, quando imagina um fio condutor para a música do duo deste o início, enquanto Leonardo recorda que chegou a integrar bandas de metal antes de enveredar pelo drum ‘n’ bass e mais tarde o dubstep. “Sempre gostámos do balanço dos graves, dessa pulsação muito particular e nesse sentido existe continuidade na música”, conclui.
Para já vem aí o concerto de lançamento do álbum, a 23 de Setembro no MusicBox em Lisboa, com alguns dos convidados. Depois seguir-se-ão mais concertos que terão de ser conciliados com outra das actividades de ambos, o design, algo que também transferem para a identidade visual do projecto. “Não somos muito fotogénicos e uma forma de contornar isso é usarmos gráficos e ilustrações para nos representarmos a nós próprio”, afirma Leonardo. E riem-se os dois.