Activismo na pista de dança
Há muitos grupos e DJs a trazer ao debate a falta de igualdade de género na música electrónica. A criar festas, a criar agências e outras plataformas para abrir portas a mulheres. As pistas de dança também podem ser espaços de actuação política
Às vezes os números importam. E neste caso incomodam. Em 2013, a female:pressure, uma rede internacional de mulheres ligadas à música electrónica e às artes digitais, publicou um estudo – uma análise geral, não uma pesquisa científica – sobre a presença de artistas mulheres em festivais, clubes e editoras de electrónica, que incidia sobretudo na Europa e nos EUA. As percentagens mal chegavam aos 10%. Não é uma radiografia perfeita, mas revela uma tendência. Uma tendência que melhorou apenas ligeiramente na última análise, publicada em 2015, para um pouco acima dos 10%. E que se reflecte noutras estatísticas – como nos topes da revista Forbes dos DJs mais bem pagos do mundo, sem uma única mulher.
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Às vezes os números importam. E neste caso incomodam. Em 2013, a female:pressure, uma rede internacional de mulheres ligadas à música electrónica e às artes digitais, publicou um estudo – uma análise geral, não uma pesquisa científica – sobre a presença de artistas mulheres em festivais, clubes e editoras de electrónica, que incidia sobretudo na Europa e nos EUA. As percentagens mal chegavam aos 10%. Não é uma radiografia perfeita, mas revela uma tendência. Uma tendência que melhorou apenas ligeiramente na última análise, publicada em 2015, para um pouco acima dos 10%. E que se reflecte noutras estatísticas – como nos topes da revista Forbes dos DJs mais bem pagos do mundo, sem uma única mulher.
É contra esta sub-representação das mulheres na música electrónica, sintomática de uma sociedade bem longe da igualdade de género, que se têm insurgido, principalmente no último ano e meio e sobretudo nos circuitos mais ligados ao house e ao techno, uma série de DJs, produtoras e novos colectivos de mulheres com uma postura declarada e activamente feminista.
As frentes de batalha são comuns, e aplicáveis tanto ao tecido mais underground como ao mainstream. Alertam para as programações e para os alinhamentos compostos maioritariamente ou apenas por homens (aqui e noutros tipos de música; ver o tumblr Very Male Line-Ups). Na senda do feminismo interseccional, lançam plataformas – festas, agências, editoras, workshops, fanzines – que abram portas a pessoas não-binárias e a mulheres, sejam elas cisgénero (quando a identidade de género coincide com o sexo e o género atribuídos à nascença) ou trans, independentemente de raças e orientação sexual. Trazem para cima da mesa assuntos como o assédio sexual e o racismo nas discotecas, as barreiras e os estereótipos que uma DJ tem de enfrentar dia sim dia sim e a disparidade dos salários entre os géneros. Tentam inverter a secundarização das mulheres na história da música electrónica e lutar por mais lugares em posições de poder.
A boa notícia é que a discussão está na ordem do dia. Multiplicam-se semanalmente os artigos na imprensa internacional que dão conta destas movimentações, tornam-se públicos episódios de discriminação no meio – o que aconteceu na noite passada pode muito bem tornar-se num post viral de Facebook. Mas continua a ser preciso investir na consciencialização, entre toda a gente: homens, mulheres, pessoas não-binárias; maiorias e minorias. Afinal, o feminismo ainda é visto, muitas vezes, através uma lente redutora e bafienta. Vale a pena insistir, e repetir em coro: não, o feminismo não é o reverso do machismo. Como propõe a autora feminista bell hooks, é um movimento para acabar com o sexismo. “Todo o pensamento e toda a acção sexista é o problema, sejam eles perpetuados por homens ou mulheres, por crianças ou adultos.” Qualquer cultura de dominação é para deitar ao lixo.
Bater o pé
Na linha da frente deste movimento estão The Black Madonna (Marea Stamper) e Discwoman. A primeira é booker no Smart Bar, mítico clube de Chicago, e DJ/produtora que faz da música militância, aproveitando a crescente reputação para levar estes temas a públicos mais alargados. Já Discwoman é um colectivo e agência de mulheres com base em Nova Iorque, fundada em 2014 por Frankie Hutchinson, Emma Burgess-Olson (Umfang) e Christine Tran. Representam e divulgam DJs e produtoras, tanto cis como trans, e alguns artistas não-binários, de várias origens e backgrounds . “Procuramos sempre que os nossos line-ups tenham diversidade”, diz ao Ípsilon Frankie Hutchinson. Tanto nos EUA como em eventos noutros países, tanto em clubes como em instituições como o MoMA PS1, em Nova Iorque. É uma questão de representação. “Notamos que essa diversidade se reflecte no público”, refere Frankie.
Não estão sozinhas. Siren London, Apeiron Crew, Resis’Dance, Goldsnap, Women’s Beat League, Mint Berlin, Unspeakable Records, Women in Electronic Music, Noise Manifesto (editora de Paula Temple) ou Yorkshire Sound Women Network são algumas das plataformas que estão também a semear espaços para as mulheres, a reivindicar o direito ao reconhecimento.
Em Portugal, Sónia Câmara, mais conhecida por Sonja, designer, DJ e responsável da editora LABAREDA, estimulou a discussão com o lançamento da compilação LABAREDA, em Março, onde estão reunidos, em dois volumes, temas de 18 mulheres portuguesas ligadas à música electrónica nas suas várias inclinações (e sim, há mais além destas).
Da electrónica exploratória e violácea, erguida sobre detritos sonoros, de Jejuno ou de Raw Forest (este sábado apresentam-se em conjunto na ZDB, no festival feminista Rama em Flor), ao acid-house epidérmico de EMAUZ, da mui recomendável Extended Records, passando pelo techno-house metálico e pleno de audácia rítmica de EDND, dos obrigatórios Roundhouse Kick (entre muitas outras, como Violet, Caroline Lethô, TrigHer, Inês Duarte, Poly Garbo ou Sheri Vari). A edição foi celebrada numa noite no Lux, em finais de Março, com um line-up só com raparigas. “Há mais mulheres a fazer música electrónica em Portugal do que muitos pensam, e cada vez mais. A compilação e a noite no Lux acabaram por ganhar um cunho político”, nota Sónia.
A colega de luta Inês Coutinho – metade das A.M.O.R. e Violet em nome próprio, produtora de house e techno suculentos e velocistas, costurados a sinalizações oníricas – tem mostrado, entre Portugal e Londres, onde reside, que o activismo pode tomar várias formas. Dá aulas de DJing e produção a raparigas, ao vivo e através do Skype; para assinalar o Dia Internacional da Mulher, fez uma cover de Transition, tema seminal dos Underground Resistance, transformando-o num manifesto feminista; faz parte do trio feminino Suspiciously Delicious; criou, com Marco Rodrigues (Photonz), a Rádio Quântica, uma rádio online que tem congregado uma série de artistas do underground nacional e que, entre outros objectivos, quer também “servir como uma força emancipatória para as mulheres e divulgar o seu trabalho”, assinala Inês.
“Acho que este levantamento de colectivos e DJs activistas está acontecer porque ficámos fartas. Ninguém vai fazer nada por nós, portanto temos de nos organizar e bater o pé”, declara Frankie Hutchinson, da Discwoman. São várias as críticas que se erguem contra este tipo de estruturas. Acusam-nas de ser separatistas, de criarem guetos com as suas noites onde os alinhamentos são, na sua maioria, só com mulheres. Para Frankie, essas posições são, também elas, “uma forma de misoginia”. “Quando se oprime um grupo é natural que esse grupo se junte e faça coisas. É uma forma de quebrar a invisibilidade e de abrir portas que de outro modo não seriam abertas”, explica. “E as festas não são fechadas a homens, são para toda a gente.”
“O meu ideal, muito utópico, é que um dia nem seja preciso falar de género, mas sei que é preciso insistir e fazer alinhamentos só com raparigas”, considera Sónia – e também por isso aceitou o convite de Mariana Duarte Silva, co-fundadora do espaço Village Underground Lisboa, para fazer a programação musical só com mulheres portuguesas do OFF September: talks&dancing, evento no Village que conta com a colaboração de Inês Coutinho e que está a decorrer até dia 30.
Estas iniciativas funcionam ainda como uma resposta aos promotores que dizem haver poucas mulheres DJs e produtoras. “É uma forma de mostrar que isso não é verdade e uma desculpa esfarrapada. Se não encontram é porque nunca tentaram ou deram oportunidade”, atira Frankie. Também nesse sentido, Jackie – um dos nomes mais interessantes da actual cena portuense, a par de outros e outras DJs como MVRIA –, programou a festa Grrrl Riot! no Plano B, Porto, entre 2011 e 2014, com mulheres em maioria na cabine. “Mesmo quando as produtoras eram pouco conhecidas, as pessoas adoravam”, conta a também co-criadora da noite Thug Unicorn. “E algumas delas são hoje produtoras de sucesso. O melhor exemplo é a Helena Hauff.”
Argumentar que há poucas DJs com talento é outro clássico. “Além de isso não ser verdade, como provam estes colectivos e festas, porque é que uma DJ sem talento não pode ter as mesmas oportunidades que têm, de facto, tantos homens DJs sem talento?”, questiona Frankie, numa referência pertinente à cultura do hiper-perfeccionismo e escrutínio que cerca as mulheres desde cedo. “Se uma rapariga dá um prego é logo a pior de sempre. Se for um rapaz, dá-se o desconto”, resume Sónia.
Muitos defendem uma política de quotas para ajudar a corrigir a falta de equidade nos line-ups. Os festivais CTM Berlim e Norbergfestival (Suécia) são bons exemplos de como fazer este trabalho sem tornar o assunto num objecto de decoração e marketing, ou num factor exótico. Para Inês Coutinho, é um terreno escorregadio, mas necessário. “Qualquer pessoa, seja homem ou mulher, quer ser chamada pelo seu trabalho e não pelo seu género, mas a verdade é que isto tem de ser feito conscientemente e com algumas regras, sem cair na objectificação. É muito perigoso achar que não é preciso fazer nada e que as coisas vão naturalmente ao sítio.”
A invisibilidade perpetua a invisibilidade, e também por isso é necessário resgatar as mulheres que foram secundarizadas na história e no jornalismo da música electrónica, inclusive as que tiveram um papel pioneiro – Clara Rockmore, Daphne Oram, Pauline Oliveros (a mais reconhecida), Éliane Radigue, Wendy Carlos (transgénero, autora de um dos discos essenciais de sintetizadores, Switched-On Bach), Laurie Spiegel, Suzanne Ciani, e a lista continua. É necessário tratar as mulheres como parte integral da história, não como um caso excepcional; lembrar também que este movimento de que damos conta nestas páginas teve o seu prólogo com a female:pressure, Tara Rodgers e o site/ livro Pink Noises, Jennifer Cardini no clube Le Pulp e na sua editora Correspondant, First Ladies DJ Collective, Pamela Z, DJ Sprinkles, Honey Dijon ou Jenifa Mayanja com a Sound Warrior.
“Tocas muito bem para uma mulher”
É interessante perceber que estas movimentações acontecem numa altura em que o feminismo está na lista de prioridades de grupos de resistência como o Black Lives Matter, cada vez mais necessários no meio de tantas viragens totalitárias e da ascensão de figuras como Donald Trump, que cristaliza o ideal de uma América branca e patriarcal. E numa altura em que o feminismo ganha terreno em esferas mais populares e visíveis: nos programas de políticos como o democrata americano Bernie Sanders e trabalhista britânico Jeremy Corbyn, em séries de televisão como Orange Is The New Black e Jessica Jones, em comunidades online sobre temas feministas como a Bitch Media ou a Feministing.
Há quem encaixe estes fluxos (que também têm trazido à tona apropriações menos benignas, como as histórias individuais de sucesso de mulheres no sistema capitalista, sem quaisquer noções de classe, privilégio e raça) na quarta vaga do feminismo. Juliana Huxtable – DJ, ícone trans de Nova Iorque e uma das figuras de destaque do actual circuito de performance e arte contemporânea americano (já se apresentou em locais como o MoMA, Guggenheim e New Museum) – considera “muito confuso falar em vagas neste momento”. “O feminismo tem muitas camadas e variações. Acho que as mulheres jovens em particular estão a definir algo que está no lado mais progressivo da questão, e eu tenho muita esperança na minha geração. A noção feminista de micro-política (o pessoal como o político) tem-se expandido para abordar as micro-agressões que acontecem na música como em qualquer outro lado”, reflecte Juliana.
A música electrónica não existe num vácuo. Também ela reflecte o machismo sistémico e institucionalizado das sociedades patriarcais, incluindo a desigualdade salarial. “Já me foi confirmado por vários agentes e já tive episódios em que fui convidada para festivais e a minha agente [da Futura Artists] disse que me estavam a oferecer um cachet menor só porque era mulher, e portanto não íamos aceitar”, conta Inês Coutinho. “A diferença pode ser de pelo menos 30%, mesmo quando estamos a falar de homens e mulheres com o mesmo nível de exposição e lançamentos.”
Para haver uma mudança estrutural é preciso romper com uma série de construções sociais (hétero)normativas e de expectativas de género, que desvalorizam e rebaixam a mulher. Automaticamente, assume-se que elas são menos competentes do que eles. Que chegaram onde chegaram por causa do aspecto físico ou do namorado – basta googlar por Nina Kraviz ou Nightwave + Boiler Room para perceber como este tipo de ofensivas podem bater no fundo. “Claro que já tive rapazes a dizerem-me ‘tocas muito bem para uma DJ mulher”’, conta Inês. “Já reparei que quando toco com um rapaz sou invisível. É como se eu estivesse ali só a passar-lhe os discos”, acrescenta Sónia.
Não ajuda o facto de os trabalhos e os hobbies relacionados com tecnologia serem culturalmente codificados como masculinos. Consequentemente, o estímulo é menor. “Desde cedo que os rapazes são incentivados a lidar com máquinas e tecnologia de uma maneira que as raparigas não são”, nota Sónia. “Em geral, áreas que implicam tecnologia são hostis para as mulheres, e isso também se aplica a mesas de mistura ou equipamentos de produção na música”, refere Juliana Huxtable.
“Há barreiras sociais que intimidam as mulheres a tornarem-se DJs. Eu própria senti isso”, confessa Juliana. “Apesar de agora ser reconhecida pelo que faço, há sets em que os homens, verbalmente e não-verbalmente, me intimidam, assediam e tentam humilhar-me.” É o machismo sistémico mais uma vez em acção, e a ideia internalizada de que os homens têm o direito de invadir o espaço da mulher, seja num clube ou na rua. “Muitos homens não pensam no que é o privilégio masculino. Ser mulher é seres intimidada a toda a hora, muitas vezes apenas por andares na rua de calções”, lembra Frankie.
Empoderar as mulheres através de workshops de DJing e produção é um dos objectivos de alguns destes colectivos. Como o Resis’Dance, de Londres. “Organizamos workshops gratuitos para que grupos marginalizados – mulheres, negros, minorias étnicas, pessoas trans, intersexo e não-binárias – possam aprender e tenham mais oportunidades e confiança para entrar na cena de música de dança branca, patriarcal e normativa.”
Aliança de rejeição
“A barreira está institucionalizada”, diz Carin Abdulá, 29 anos, portuguesa emigrada em Brighton e a única agente mulher da Paramount Artists, casa de nomes como Nina Kraviz, Carl Craig, King Britt, Jenifa Mayanja e, mais recentemente, do português Photonz. “Na Paramount todas as assistentes são mulheres e todos os agentes são homens, excepto eu, que comecei como assistente. Não é de propósito, mas é uma coisa tão entranhada e institucionalizada que, por exemplo, quando pomos anúncios de vagas, para o lugar de agente não recebemos quase nada de mulheres e para o de assistente recebemos imensos currículos de mulheres e muito poucos de homens”, refere a também tour manager em part-time de Nina Kraviz.
Carin é ainda co-responsável da promotora indie Be Nothing, com a qual não conseguiu “derrubar essa barreira”. “Mesmo depois de dois anos a fazer concertos tinha pessoas a perguntarem-me se podiam falar com o meu colega, como se eu não fosse da promotora.” A Paramount serviu também como um ajuste de contas. “Vi isto como uma oportunidade para provar que conseguia e de não aceitar a ideia de que esta profissão não era para mim”, afirma Carin. Já dizia a ensaísta e crítica de rock Ellen Willis que “o feminismo é sobre revolta, não sobre adaptação”.
As construções de expectativas de género também se infiltram nos bastidores da música de dança. “Quando as pessoas do meio falam comigo, ao telefone ou ao vivo, vê-se que ficam surpreendidas por perceber que sou rapariga. Acontece-me muito, principalmente quando faço tours com a Nina [Kraviz]”, conta. “É estranho porque sou mulher? Porque sou mulher negra? Sou mulher, negra, imigrante… Qual destas coisas é que te deixa desconfortável?” Contudo, Carin diz que esse desconforto resulta sobretudo de as pessoas “terem assumido” que se tratava de um homem. “Ainda há muito por fazer, mas sinto que essa é a grande evolução: a maioria das pessoas fica desconfortável por ter tido esse preconceito já institucionalizado, não por ser uma mulher numa posição de poder.” Para Black Madonna, “muitos homens sentem-se confortáveis com mulheres a liderar, desde que o objectivo primário delas seja o sucesso de outro homem.” Isso acontece “tanto nos clubes como lá fora”, argumenta. “Não gosto de traçar uma distinção entre a música de dança e tudo o resto.”
Para alterar estes padrões de representação é importante ter mais mulheres e pessoas não-binárias, de várias etnias, em cargos de chefia: na programação, nas editoras, no booking, nas agências. “Quem está dentro destas organizações tem de reconhecer que são parte do problema e empregar, programar e representar pessoas mais diversas”, aponta o colectivo Siren, de Londres, que explora este tipo de assuntos numa fanzine online (Siren Zine).
No que toca aos alinhamentos dominados por homens, Carin Abdulá defende uma “aliança de rejeição do status quo que tem de partir de todos”. Não há uma receita directa. “O facto de uma mulher estar numa posição de poder não quer dizer que seja mais fácil agenciar ou programar uma mulher.” Tem de ser um compromisso entre homens e mulheres, entre agentes, bookers, promotores e editoras. “Promotores que não programam mulheres e pessoas não-binárias levam outros promotores a acreditarem que ‘não há suficientes mulheres e pessoas não-binárias’ na cena e assim a invisibilidade é perpetuada. A mudança também vem das mulheres e pessoas não-binárias criarem espaços e plataformas para elas”, acrescentam as Siren. Já Black Madonna considera que a “verdadeira mudança tem de partir dos homens”, que “têm de alterar sistematicamente a cultura da qual beneficiam.”
“Lido com bastantes bookers e agentes mulheres, mas agora que penso nisso há muito poucas promotoras e programadoras. Quanto aos alinhamentos masculinos, para mim nunca foram uma questão. Não quer dizer que os programadores sejam machistas, mas é o hábito, é inconsciente, e é importante assumir isso”, reconhece Gustavo Pereira, director do Neo Pop, um dos principais festivais de música electrónica em Portugal, país onde esse “hábito” também persiste.
Para Carin, Jackie e Sónia, um dos problemas (aqui e lá fora) é a falta de curiosidade de muitos promotores, o que gera uma bola de neve: se o cânone instituído é masculino, o mais fácil, o mais óbvio e o mais seguro em termos comerciais é programar homens, tirando alguns casos. E se não se abre a porta a nomes menos conhecidos, muitas mulheres dificilmente se tornarão headliners. E o cânone não mudará.
“Para abrir caminho é preciso haver um balanço entre nomes que vendem muitos bilhetes e outros menos conhecidos, tanto nos line-ups dos clubes como nos dos festivais”, afirma Rui Vargas, DJ, radialista e programador do Lux. Reconhece que os programadores têm de ter um papel pedagógico e “formar públicos, seja na Gulbenkian ou no Lux”, mas que “a curiosidade também tem de partir do público”. E a crítica. Como disse Pauline Oliveros, “se o público vai a um concerto e não há música tocada por mulheres, tem de confrontar a administração com isso”.
Nos últimos meses, o Lux tem tido mais mulheres na programação. “Começou por ser uma conjugação feliz de agendas, mas também fomos sendo influenciados pela Sonja, a Violet e por colectivos como a Discwoman”, admite Rui Vargas. Foi a altura certa para “fazer um reforço”. “O activismo é uma forma de acelerar a evolução e de nos confrontar com as coisas.”
Não têm planos para integrar mulheres na equipa de programação, composta apenas por homens, “mas estão abertos a isso”. No departamento dos DJs residentes (onde têm Yen Sung e Sonja), “há um segundo anel, com cúmplices regulares, com nomes como Caroline Lethô, EMAUZ ou a MVRIA, que vai ser grande.” Ter exemplos e mostrar esses exemplos “pode trazer mais raparigas para a música electrónica”, acredita Vargas.
Caroline Lethô (Carolina Silva, 24 anos) é uma das jovens produtoras que participou na compilação da LABAREDA (vale a pena ir mais atrás e ouvir Éter, o EP que lançou no ano passado pela AVNL). Foram os amigos, homens, que a “incentivaram” e “apoiaram” até “sair do quarto”, mas sublinha o papel estimulante da LABAREDA e da Rádio Quântica, onde tem um programa. “Foi algo que me deixou muito motivada a continuar a fazer o que faço. O facto de ver tudo a acontecer e a crescer, e saber que faço parte disso, é algo inexplicável.”
Fora do centro
As redes de apoio são ainda menores em cidades periféricas e fora da Europa e dos EUA, onde muitas vezes não há um tecido de música electrónica firme e bem nutrido. “Os artistas da região ainda precisam de se mudar para países desenvolvidos se quiserem desenvolver o seu trabalho e as considerações são enormes”, alerta a produtora tunisina Deena Abdelwahed, agora a viver em França, que estará este sábado na ZDB, na festa de encerramento do festival Rama em Flor, curada por Syma Tariq (entre 2013 e 2015 programou, em conjunto com Margarida Mendes, a noite Waterfalls, na ZDB, sempre com a preocupação de apresentar uma boa dose de projectos de mulheres).
Deena começou por ser cantora de jazz e funk, até entrar na música electrónica. A solo e no colectivo Arabstazy desfigura ritmos árabes, numa fusão a quente com vozes animistas e batidas britadas e pulsantes. Para ela, também os festivais de música de dança no mundo árabe “conseguem ser muito eurocêntricos e sexistas”. “Neste tipo de música, o único que está a fazer a diferença neste momento é o Ephemere Festival na Tunísia”, destaca a produtora. “Está a introduzir a nova música electrónica feita no underground tunisino a um público mais alargado.”
Deena estava em Tunes quando aconteceu a Primavera Árabe, e as mulheres tunisinas estavam na primeira linha dos protestos. “Apesar de estarmos uma situação melhor do que, por exemplo, a da Arábia Saudita, ainda se vê muita discriminação sexual na sociedade tunisina”, aponta. “Há violência pública e doméstica contra as mulheres, e os homens não têm de prestar contas. Mesmo que as leis defendessem a igualdade de género, as famílias não o fazem, a polícia não o faz e os tribunais também não.”
Empurrados pela Primavera Árabe – e apesar de a polícia ver “os activistas como uma ameaça aos valores culturais” do país –, o feminismo e a luta pelos direitos LGBT vão furando na região, com movimentos como o Shams, que defende a despenalização da homossexualidade na Tunísia, ou o Chouftohounna, que desde o ano passado organiza um festival feminista internacional.
Também no México, com as devidas diferenças e nuances, ser feminista é uma actividade arriscada e triplamente difícil (entre outras coisas, o país tem taxas alarmantes de violações e feminicídios). “Para conseguirmos fazer o nosso trabalho e as nossas vidas, as mulheres latino-americanas têm de enfrentar e tentar mudar, todos os dias, concepções conservadoras sobre o seu papel na sociedade”, afirma Demian Licht, produtora da Cidade do México, onde as Discwoman já fizeram uma festa com DJs locais (incluindo Demian) e Black Madonna.
Licht estudou engenharia de som, tornou-se na primeira mulher instrutora certificada de Ableton da América Latina, fundou a editora Motus Records e duas plataformas ligadas às tecnologias e ao design de som, Fluxus Sound Lab e Motus Org. Mas não foi pacífico. “Vivi todo o tipo de discriminação e objectificação ao tentar abrir caminho no circuito local e internacional de música electrónica”, diz ao Ípsilon. Foram também essas “más experiências” que deram forma ao disco Female Criminals Vol.1, lançado este ano através da sua editora e que já lhe valeu vários convites para tocar lá fora. Entre um manifesto e um drenar de impurezas, Female Criminals é techno de guerrilha, subterrâneo e glaciar, inspirado “pelo krautrock alemão, figuras femininas da música rock e a estética de David Lynch”.
Além do sexismo, diz Demian, o dinheiro (ou a falta dele) é outro dos principais problemas. “A América Latina não tem as infra-estruturas que existem na Europa ou nos EUA ao nível da indústria musical, portanto é mesmo complicado fazer uma vida só disto.” Para tentar gerar mais oportunidades e espaços de formação no que diz respeito à música e às tecnologias, Demian criou a Motus Org., onde “o sexismo, a conformidade e a ignorância” são alvos a abater.
Black Lives Matter
Apesar de boa parte da música de dança ter nascido em comunidades queer, negras e latinas, o circuito tornou-se “muito branco, normativo e injusto”, aponta Sónia Câmara. Demian Licht partilha da mesma opinião, mas acredita que muitos destes novos colectivos estão a tentar puxar por um cenário mais inclusivo.
Para Black Madonna isso é fulcral. “Temos de fazer tudo o que for possível para garantir que isto não é uma assembleia só para feministas brancas cisgénero; para abrir estes espaços a pessoas trans, não-binárias, de cor, com deficiências, com pouco dinheiro. No ano passado dei uma bolsa a uma mulher do Sri Lanka na única escola de DJs do país e quero fazer mais trabalho deste género”, revela. “Damos prioridade às pessoas de cor, trans e não-binárias que não têm voz noutros sítios e que normalmente se sentem desconfortáveis em tantos espaços de clubbing”, diz por sua vez o colectivo londrino Resis’Dance, grupo de identidades múltiplas.
Objectivos semelhantes levaram Juliana Huxtable a lançar a Shock Value, uma das festas mais celebradas em Nova Iorque pelas comunidades trans e queer. Para Juliana, o DJing e o clubbing tornaram-se vias para explorar e desagrilhoar a sua sexualidade. “[Na vida nocturna] a sexualidade pode florescer de uma forma quase abstracta. Como escolho estar no mundo não é propriamente uma questão de rótulos, é mais iluminada e imaginativa. Nesse sentido, deu-me oportunidade de experimentar, de reconhecer exageradamente certas partes da minha sexualidade e apressar a autodescoberta.”
Juliana iniciou a sua transição um pouco antes da “explosão e do escrutínio” da cobertura mediática das questões trans. Uma maior visibilidade que, por um lado, tem gerado mais apoio, por outro, mais crimes de ódio. “Acho que é óbvio que a visibilidade tem uma relação causal com a violência. A eleição do Obama e o aumento dos sentimentos racistas é outro exemplo”, reflecte a DJ e performer. “A minha principal preocupação durante anos foi ser um alvo devido à minha visível não-conformidade”, diz. Agora “passa despercebida” a maioria das vezes, mas a violência continua ao virar da esquina. “Quando ando sozinha na rua, os homens, mesmo presumindo que sou cisgénero, podem seguir-me. A ameaça da violação é duplicada pelo risco de poder ser revelada como trans e depois morta.”
Abordar a transfobia, o sexismo, a homofobia, o racismo e o classismo enquanto sistemas de opressão inter-relacionados é uma prioridade para vários destes colectivos e DJs. Uma forma de estar que concordam ter sido influenciada pelo movimento Black Lives Matter (BLM), ele próprio criado por três mulheres. “O BLM ajudou a alertar para a necessidade da interseccionalidade nos movimentos anti-racistas e feministas”, diz o Resis’Dance, cuja actuação política passa também por fazer festas em espaços em risco de gentrificação e angariar fundos para outros movimentos de resistência, como o Sisters Uncut e o Black Dissidents.
“Viver numa cidade [Chicago] que tem um crescente movimento anti-racista, incluindo o BLM, e ler as ideias das feministas negras que lideram dentro desses grupos, transformou-me incomensuravelmente”, admite Black Madonna. No Smart Bar, onde é booker e DJ residente, o impacto também se sente. E materializa-se. “Vejo membros da equipa e clientes regulares nas marchas contra a violência policial”, refere. “Contribuímos também com abastecimentos para a Freedom Square [acampamento dos activistas do BLM e de grupos aliados em Chicago, na praça Homan]. Mas ainda temos muito trabalho para fazer.”
Num mundo em que tantos negros ainda são desumanizados, emoldurados em perfis criminais nos media e feitos carne para canhão pela polícia simplesmente por andarem na rua, são precisas mais iniciativas como o Boiler Room da Discwoman, só com mulheres negras (Juliana Huxtable, Uniiqu3, Bearcat, Shyboi). Mais representação, mais motivação para quem se quiser juntar. “É uma maneira de abordar as questões da valorização dos negros através da música”, assinala Juliana Huxtable.
E são precisos mais exemplos como o da portuguesa Nídia Minaj, produtora-prodígio da Príncipe Discos, descendente de imigrantes africanos, que anda a levar a batida dos bairros da periferia de Lisboa a uma série de clubes e festivais por esse mundo fora. “Acredito que possa servir como motivação para outras raparigas”, diz Nídia, a viver em Bordéus nas horas vagas. Nunca foi vítima de racismo nos locais onde tocou, mas acredita que é por estar em trabalho. “Se não fosse artista ponho as mãos no fogo de que já tinha sido alvo de racismo. Nos aeroportos, por exemplo, sou constantemente parada só por ser negra.” Frankie Hutchinson, Discwoman: “Acontecem-me aquelas micro-agressões, como começarem a mexer-me no cabelo. Mas sei que acontecem coisas piores a outras mulheres negras no contexto de clubbing”, reconhece. “Mesmo o underground nunca é totalmente um safe space, e mesmo nas nossas festas já vimos casos de assédio. Não podemos controlar tudo, mas podemos educar.” (a propósito, ver online as fanzines Club Etiquette, Siren Zine e Rave Ethics).
A música de dança pode ser um laboratório de ensaio e combate político que se relaciona com as problemáticas sociais do dia-a-dia, procurando reformulá-las – nem que a mudança seja projectada a partir de círculos mais underground. “Há sempre uma tensão entre criar uma pequena utopia que tenta reestruturar dinâmicas sociais de modo a que as pessoas marginalizadas sejam emancipadas, e alimentar esse fortalecimento no ‘mundo exterior’”, considera o colectivo Siren. “Por um lado, a desvantagem estrutural leva (e subsiste graças) ao enfraquecimento da confiança das pessoas, e se tu crias espaços onde elas se sentem livres e felizes já estás a combater isto. Por outro lado, também estamos a tentar politizar mais os eventos para que eles um dia se possam tornar locais de activistas.”
Por tudo isto, a música de dança não se resume ao escapismo. Há mais, ou pode haver mais, além de dançar de olhos bem fechados. “Quem acha que a música de dança é despolitizada está enganado. Pelas origens, pelo presente, pelo futuro, pela sua capacidade emancipadora e transformadora”, diz Inês Coutinho. “A música electrónica ainda é um clube de rapazes, mas menos do que há dez anos. Ainda há muito por fazer, mas acho que estamos bem encaminhados”, acrescenta. Roubando uma frase do ensaísta italiano Andrea Cavalletti, que parece encaixar-se aqui na perfeição, “é preciso reencontrar o prazer na solidariedade, o hedonismo na luta”.