Um teatro enigmático, entre Pinter e Hitchcock
Jez Butterworth, colaborador de Sam Mendes no último James Bond, é um fenómeno em Inglaterra. O Rio, na sua primeira tradução autorizada, está em cena no Teatro da Politécnica.
Em 2010, ao ser transferida do Royal Court para o West End londrino, uma peça sobre um dealer cigano ameaçado com o despejo da sua autocaravana na floresta de Wiltshire havia de tornar-se um fenómeno tal que as filas se esticavam para lá do razoável, chegando a formar-se a partir das três da madrugada (segundo relata o The Guardian), tanta era a disputa pela aquisição de um bilhete. E, no entanto, Jerusalém, de Jez Butterworth, não trazia consigo nenhuma razão óbvia para despertar o interesse das massas. É certo que a crítica inglesa distribuíra uma quantidade inabitual de estrelas e de elogios, mas a escrita nebulosa de Butterworth dificilmente faria prever um entusiasmo tão desmedido.
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Em 2010, ao ser transferida do Royal Court para o West End londrino, uma peça sobre um dealer cigano ameaçado com o despejo da sua autocaravana na floresta de Wiltshire havia de tornar-se um fenómeno tal que as filas se esticavam para lá do razoável, chegando a formar-se a partir das três da madrugada (segundo relata o The Guardian), tanta era a disputa pela aquisição de um bilhete. E, no entanto, Jerusalém, de Jez Butterworth, não trazia consigo nenhuma razão óbvia para despertar o interesse das massas. É certo que a crítica inglesa distribuíra uma quantidade inabitual de estrelas e de elogios, mas a escrita nebulosa de Butterworth dificilmente faria prever um entusiasmo tão desmedido.
A popularidade do autor londrino, no entanto, já vinha de trás. Em 1995, ao estrear Mojo no Royal Court, conheceria um primeiro momento de euforia em torno da sua obra. Uma comédia negra localizada no Soho em finais dos anos 50, em torno do Atlantic Club e das suas personagens entaladas entre o gangsterismo e o lado menos luminoso do entretenimento, Mojo havia de proporcionar um encontro fundamental no percurso de Butterworth quando o próprio adaptou e dirigiu a adaptação cinematográfica: o filme contaria, na qualidade de actor, com a participação do dramaturgo Harold Pinter, Prémio Nobel da Literatura em 2005.
No discurso de aceitação do Nobel, Pinter diria que o seu processo de escrever uma peça consistia em começar com uma primeira frase e ver até onde esse primeiro ímpeto o podia levar. Em entrevista, Butterworth confessaria que nesse mesmo momento desligou a televisão e iniciou a sua sexta peça, Parlour Song.
Terá sido o historial dos Artistas Unidos com Harold Pinter a desbloquear a morosa negociação da aquisição de direitos para a encenação de O Rio que estará em cena no Teatro da Politécnica, em Lisboa, até 22 de Outubro. “Foi muito difícil negociar os direitos e eu não percebia bem porquê”, confessa o encenador Jorge Silva Melo ao PÚBLICO. “Não era por serem caros ou baratos, era porque ele tinha muito medo da tradução. Penso que é a primeira vez que o Butterworth é representado fora da sua língua original – foi feito na Austrália, no Canadá, nos Estados Unidos, em Inglaterra, sempre nos universos da Rainha Dona Isabel. E isto é muito escrito, tem uma riqueza de escrita muito grande.”
Um segredo íntimo
Silva Melo fala de O Rio como “uma peça que tem um mistério, um segredo, que é de certeza muito íntimo e tem experiências pessoais muito carregadas”. Uma faceta de mistério e segredo nos antípodas da espectacularidade de James Bond (Spectre) e outros blockbusters de Hollywood para os quais Butterworth tem escrito guiões. No caso de Bond, dever-se-á à sua ligação próxima ao realizador Sam Mendes – que terá querido arrancar a sua filmografia com Mojo e, segundo disse Butterworth ao The Guardian, terá deixado de lhe dirigir a palavra durante alguns anos por ter sido o próprio Jez a dirigir o filme.
O Rio é atravessado por um outro lado misterioso, como se o universo teatral de Pinter se encontrasse com o cinema de Hitchcock – notadamente Vertigo e Rebecca, como frisa o fundador dos Artistas Unidos. No interior de uma cabana, situada na proximidade de um rio, acompanhamos um homem e duas mulheres que nunca coincidem em palco e que nunca dissolvem a dúvida: “se estamos num presente ou num passado, se são duas mulheres ou uma só, se estamos na memória ou na actualidade”. Toda esta indefinição e o seu carácter algo esquivo, compara o encenador, aproximam Butterworth de Jon Fosse e de “algumas coisas do Pinter, como Old Times”.
Dedicado à irmã, falecida com cancro em 2012, O Rio é um espaço por onde deambulam fantasmas pessoais de Butterworth, homem tão ligado à família que, com frequência, partilha argumentos cinematográficos com dois irmãos. As mulheres são aqui uma constante à volta de um homem que, de forma algo paradoxal, parece viver de uma forma isolada, dedicado à pesca da truta e talvez mais verdadeiro do que nunca na cena em que Ruben Gomes, o actor, amanha um peixe em palco. “As entranhas, a morte e o sangue”, diz Silva Melo, estão por todo o lado. É um homem com a morte nas mãos, recordado do episódio em criança em que depois de pescar um peixe o deixou fugir e lhe ofereceu, involuntariamente, uma segunda vida.
O facto de o texto citar o poeta Ted Hughes leva o encenador a entender que a ideia de duplo sugerida pela presença das duas mulheres pode surgir como evocação da “história dramática entre Ted Hughes e Sylvia Plath – a separação e o suicídio da Plath e o segundo casamento do Hughes com uma amiga da Sylvia Plath, que também se suicida”. Ao esventrar o peixe em palco, acredita, aquele homem tenta acercar-se do sentido da vida. E ao rodear-se desta morte, não é tanto o desaparecimento do próprio que parece acontecer em palco, mas o mergulho nos “outros que vão desaparecendo da nossa vida e vão ficando para cima de nós”.
Na versão norte-americana, este homem que vemos com o rosto de Ruben Gomes foi representado por Hugh Jackman. Ao contrário da estreia em Inglaterra, onde O Rio foi um fenómeno à altura do anterior Jerusalém, nos Estados Unidos o notável resultado de bilheteira proporcionado por uma vedeta de Hollywood foi acompanhado de uma encenação muito mal acolhida pela crítica. A estranheza do texto de Butterworth foi interpretada como pretensiosismo – um julgamento que, alvitra Silva Melo, terá decorrido da dificuldade em colocar Jackman entregue a “estas meditações que são filosóficas, quando ninguém acredita que ele saia do Wolverine e vá pensar sobre o sentido da vida”.
Até porque em momento algum O Rio se arruma numa narrativa conclusiva. Se é de forma enigmática que entramos na cabana deste homem, é como se nunca da cabana chegássemos a sair. A cabana não o deixa, é um lugar de prisão, real ou metafórica. E a preservação do enigma fez-se também no trabalho de Jorge Silva Melo com os actores, não tendo esmiuçado as possibilidades interpretativas do texto. Para o encenador, a relação com as palavras de Butterworth depende sobretudo de acreditar nelas. De acreditar que as trutas mariscas estão a subir o rio, que apanhar uma é a suprema glória e que tudo parece estar impregnado deste caminho de regresso à origem.