António Ole, um artista em trânsito no mundo

Em Luanda, Los Angeles, Lisboa, uma das maiores retrospectivas consagradas a Antonio Ole, revela-se uma obra construída na errância e no contacto com outros, que se confronta com a história da arte e a história de Angola. No Centro de Arte Moderna, até 9 de Janeiro.

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Filmes, pinturas, instalações, fotografias, banda desenhada. Madeira queimada, folhas de papel, chapas de ferro, pigmentos. Na nave principal do Centro de Arte Moderna, construiu-se um lugar do qual fazem parte estas linguagens e estes materiais. Chama-se Luanda, Los Angeles, Lisboa e é uma exposição, a segunda grande retrospectiva em Lisboa do artista angolano António Ole (Luanda, 1951).

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Filmes, pinturas, instalações, fotografias, banda desenhada. Madeira queimada, folhas de papel, chapas de ferro, pigmentos. Na nave principal do Centro de Arte Moderna, construiu-se um lugar do qual fazem parte estas linguagens e estes materiais. Chama-se Luanda, Los Angeles, Lisboa e é uma exposição, a segunda grande retrospectiva em Lisboa do artista angolano António Ole (Luanda, 1951).

O significado do título deve ser destacado: as obras vão erguendo um percurso iniciado nos anos 1960 e que se pautou até hoje pela errância, pela experimentação, pela descoberta, pelo contínuo contacto com os outros. A menção às três cidades permite desde logo imaginar itinerários, narrativas, imagens. O espectador está em Lisboa, mas podia estar na cidade californiana ou na capital angolana. Sempre em trânsito, movido pela arte.

Sigam-se os passos de António Ole, a partir do princípio: Luanda, finais dos anos 1960, início dos anos 1970. “Comecei a pintar nesse período, queria ser um artista e acabei por ser actor de um movimento de mudança”, recorda. “Em Angola, havia os pintores oficiais, como o Albano Neves e Sousa e o [Rui] Preto Pacheco que pintavam os cardeais, os governadores. E depois havia os artistas que representavam a modernidade, cheios de ideias novas, e desse confronto resultou uma ruptura enorme. Comigo estiveram nomes como o Carlos Fernandes ou o Mário Araújo, realizámos contacto com artistas portugueses, como o António Palolo. Essa modernidade era extensiva a artistas de Moçambique e Portugal”.

Neste período, António Ole trabalhava com uma grande economia de meios, assente nas práticas do desenho, da ilustração e da banda desenhada. O cubismo, a arte pop, os comics já eram referências, como se pode constatar no núcleo das Pinturas Domésticas, que partilha uma das paredes da exposição com o então polémico Sobre o consumo da pílula: “Foi premiado no IV Salão de Arte Moderna [em 1970], mas acabou proibido. Desenhei o Papa Paulo VI a tomar a pílula e houve pessoas do regime que não gostaram. Só seria exposto anos depois.”

Sem repetir a tradição

Pese embora a atracção que certos gestos provocavam, António Ole optaria por se afastar da agitação do contexto social e político, a fim de criar o seu percurso, fazer o seu crescimento. “Evitei embarcar em rótulos bombásticos. E continuei a trabalhar, a viajar. Estabeleci contactos com artistas portugueses, continuei a visitar Lisboa, onde viviam os meus avós. Sentia que precisava de conhecer mais coisas”.

Quando se dá o 25 de Abril, o seu trabalho deve mais à arte ocidental, à modernidade europeia ou norte-americana do que propriamente à arte africana. É então que o acaso o arrasta, com a cumplicidade da paixão pelo cinema, a outro métier. “A televisão em Angola procurava jovens para a realização e inscrevi-me. Acabei admitido e isso permitiu-me conhecer o meu país com outra profundidade. Numa noite, escrevíamos o guião e numa semana já tínhamos os meios, o equipamento, a viatura. Foi um momento extraordinariamente rico, que me permitiu obter outro conhecimento, etnográfico, da cultura tradicional angolana e africana”.

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Township Wall foi apresentada entre 2004 e 2007 na exposição internacional Africa Remix, entre outras cidades, mas nunca antes por Lisboa FOTO: JG Photography
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Margem da Zona Limite FOTO: Franko Khoury. National Museum of African Art, Smithsonian Institution

Datam deste período os filmes Ritmo do Ngola Ritmo (1978), sobre o grupo musical com o mesmo nome, e um documentário dedicado à poesia de Agostinho Neto, ou suas primeiras deambulações pelos musseques, as construções precárias de Luanda, que viriam a culminar, já nos anos 2000, em trabalhos como a Township Wall, apresentada entre 2004 e 2007 na exposição internacional Africa Remix. Os filmes e esta instalação (que passou por Düsseldorf, Londres, Paris e Tóquio, entre outras cidades, mas nunca antes por Lisboa) constituem, aliás, dois dos grandes destaques da retrospectiva.

A propósito da relação do seu trabalho com a cultura tradicional africana, António Ole faz uma ressalva: “Foi muito importante para mim, estimulou a criação de obras, mas não estou interessado em repeti-la. Não me identifico com aqueles que em África só se interessam em repetir a tradição. E isso hoje ainda acontece, inclusivamente em países europeus. Trata-se de uma repetição, de uma fotocópia do que é a tradição, quando a tradição nos devia oferecer ideias, informação para partirmos para outras coisas, outros momentos. Sou um artista do meu tempo”.

Pergunte-se então, de onde vem António Ole? De África, da Europa, dos Estados Unidos? “Sou um artista do mundo, o que nem sempre tem sido fácil de explicar. O mundo da arte contemporânea, da arte ocidental gosta de nos classificar. E eu considero o rótulo de artista africano demasiado pesado. Não preciso de afirmar a minha africanidade no meu trabalho. Está aqui estampada. Sou um artista que viajo em trânsito. Os sítios onde estive marcaram-me, absorvi deles sempre alguma coisa.” Assim foi na Califórnia onde aportou nos início dos anos 1980 para estudar cinema: “Angola estava a atravessar uma fase muito complexa, com muita violência. Tinha havido um golpe de estado, muita gente morrera. E eu queria aprofundar os meus conhecimentos sobre essa arte, chegara à conclusão que não sabia nada”.

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Pai FOTO: Rodrigo Peixoto

Depois de entrar na Universidade da Califórnia, em Los Angeles (UCLA) como professor visitante, ingressaria no American Film Institute. “Foi um privilégio. Visitei museus, assisti a ciclos de cinema maravilhosos e, sobretudo, pude conhecer e investigar as manifestações da cultura afro-americana, em Nova Orleãs. E avancei com um projecto sobre o Carnaval da cidade com o auxílio do [operador de câmara e director de fotografia de Hollywood] Elliot Davis. Ainda não está concluído (risos), mas espero vir a terminá-lo em breve”.

António Ole regressaria a Luanda cheio de energia, entusiasmado, antes de se confrontar com a realidade de desilusão. “Infelizmente, depois dos finais da década de 80, tudo o que se tinha construído aos poucos, a ideia de um cinema artesanal, cheio de frescura, havia caído em declínio. Ainda estive um ano a passar lustro às cadeiras do Instituto de Cinema, mas a certa altura fartei-me”. A frustração não deu, no entanto lugar, à resignação. As experiências, os encontros proporcionados pelas viagens ainda o animavam: “Ter andado por várias cidades foi importante para esse renascimento. Descobri que os artistas contemporâneos tinham uma grande liberdade para escolher os seus meios. Porque não podia confluir tudo para a mesma coisa? Podia ter sido um especialista, mas isso não me chegava. Queria a liberdade de fazer o que me apetecesse. E redescobri a fotografia, comecei a trabalhar com a instalação, voltei à pintura”

Mastigar o passado doloroso

A realidade africana não desapareceu da sua obra durante a passagem pela Califórnia mas, aos poucos, foi-se revelando mais intensa, mais forte, tanto nos processos e materiais, como nos assuntos que iam emergindo das superfícies das imagens ou nos objectos transformados. Antonio Ole recuperava materiais, coisas abandonadas (desse exercício, é exemplar, por exemplo, O Mural do Maculusso, em que são claros os laços com a arte europeia e americana dos anos 1960 e 70), recolhia pigmentos do chão, da terra, registava imagens de construções precárias ou devolutas.

A essa relação poética, com aquilo que materialmente o rodeava, foi-se juntando outra: aquela que o passado de Angola ia reclamando. Da primeira, salientam-se obras como Reboco, tela feita de papel, cimento, madeira, pano, pigmentos (materiais de uma casa) ou a série de fotografias Urban Choices, a deslocarem o espectador para outras vivências, outras realidades tangíveis (as da cidade e da ilha de Luanda, lugares de trabalho de António Ole).

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O mural de Maculusso, em que são claros os laços com a arte europeia e americana dos anos 1960 e 70 FOTO: JG.photography
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Mens Momentanea (I) FOTO: Rodrigo Peixoto

Da segunda, não faltam núcleos que “atrapalham” o percurso. É o caso particular de Hidden Pages, Stolen Bodies, instalação em que a escravatura e o trabalho forçado se representam (e se reproduzem) em imagens, textos (de livros de assentos de escravos) e objectos (madeira de barcos, pratos). “Tratou-se de um projecto longo. Consultei arquivos históricos em Luanda e em Lisboa. E fotografei muitos livros de assentos que continham informação sobre a idade dos escravos, as características físicas, a qualidade dos dentes, o ferro com que se marcavam as costas dos homens. É para mim impensável pensar em qualquer ideia de futuro sem mastigar bem o que foi doloroso no passado. Julgo que, assim, as pessoas terão mais possibilidades de se libertarem da amargura na consciência. Não sou historiador, mas um artista que se interesse pela história.”

A escravatura regressa noutra instalação, Mens Momentanea, com um altar rodeado por uma parede forrada de páginas (fotocopiadas dos assentos de escravos), e a relação com a história adensa-se em Margem da Zona Limite, barco partido em dois, anunciando ao mesmo tempo a viagem, o corte, os efeitos do tempo e da acção dos homens.

E a guerra, em que obras se anunciam as suas marcas? António Ole aponta para uma tela na qual os pigmentos dão a ver uma superfície amarelecida, seca, queimada, com figuras e formas geométricas empalidecidas, quase transparentes. “Considero um tríptico sobre a nossa exaustação da guerra, uma espécie de exorcismo que marca uma época muito importante do meu trabalho”.

Somo tentados a dizer que a mesma exaustação perpassa por outro tríptico, Desintegrações (2000-2003), ou nas fotografias sem título de casas em ruínas, mas o trabalho de António Ole desvia-se com facilidade de interpretações autoritárias. Na exposição, há pinturas que dialogam com a abstracção ou fotografias que parecem continuações de pinturas. “São coisas que resultam de impulsos, mas que me agradam muito. Gosto de fazer as coisas umas contra as outras, como dizia o Francis Picabia. Não me interessa a coerência, a racionalidade. Chego ao ateliê, há uma pulsão e eu sigo esse instinto”.

Será porventura esse instinto que o guia agora no desenvolvimento de Insula, trabalho ainda numa fase iniciática que o tem levado a explorar as ilhas africanas do Atlântico e do Índico: “A minha ideia é visitar esses lugares. E ver o que, entre si, os aproxima e distancia, que influências tiveram do exterior, as idiossincrasias dessas populações, os cruzamentos”. António Ole continua em trânsito.