António Guterres, a ONU e as qualidades morais
As qualidades mencionadas pertencem sempre à categoria que Susan Sontag chamava “virtudes moralmente neutras”.
1. Há dias, António Guterres ficou mais uma vez à frente na quarta votação informal para secretário-geral da ONU que teve lugar entre os 15 membros do Conselho de Segurança da organização. Estas votações têm significado político e clarificam o mapa de possibilidades dos doze candidatos, mas não são vinculativas e fazem parte do jogo de negociações, pressões e alianças em que os países poderosos do mundo se envolvem para escolher o secretário-geral. Haverá ainda este mês uma quinta votação não vinculativa e depois, em Outubro, haverá uma votação vinculativa, onde os 15 do Conselho de Segurança – e, principalmente, os cinco países com poder de veto – declaram os seus votos definitivos.
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1. Há dias, António Guterres ficou mais uma vez à frente na quarta votação informal para secretário-geral da ONU que teve lugar entre os 15 membros do Conselho de Segurança da organização. Estas votações têm significado político e clarificam o mapa de possibilidades dos doze candidatos, mas não são vinculativas e fazem parte do jogo de negociações, pressões e alianças em que os países poderosos do mundo se envolvem para escolher o secretário-geral. Haverá ainda este mês uma quinta votação não vinculativa e depois, em Outubro, haverá uma votação vinculativa, onde os 15 do Conselho de Segurança – e, principalmente, os cinco países com poder de veto – declaram os seus votos definitivos.
A escolha de Guterres pelo Conselho de Segurança deveria já estar garantida nesta fase, tendo em conta o seu currículo, a sua prestação durante as audições a que os candidatos são submetidos e as reacções que a sua candidatura suscitou, mas Guterres conta com dois obstáculos que já estavam no meio da pista antes mesma da corrida começar: o facto de “estar decidido em princípio” que, desta vez, o lugar de secretário-geral deveria caber a alguém oriundo da Europa de Leste e a uma mulher. Quanto à origem regional, sempre houve na ONU uma preocupação de equilíbrio por razões geoestratégicas, com rotações para os vários cargos distribuídas entre as várias regiões do globo. Seria impensável, por exemplo, ter como secretário-geral, depois do sul-coreano Ban Ki-moon, outro asiático. Mas ter um europeu do sul depois de Ban Ki-Moon, do ganês Kofi Annan, do egípcio Boutros Boutros-Ghali e do peruano Javier Pérez de Cuéllar, não é chocante. A preocupação de equilíbrio de género é mais recente e tem, igualmente, toda a justificação. Mas é lamentável que o género possa ser um factor determinante na escolha para um cargo cujo único critério de escolha deveria ser a capacidade para fazer um bom trabalho. Seria justificado, por exemplo, organizar primárias que escolhessem o mesmo número de mulheres e homens que se apresentariam à votação final para que fosse escolhido o/a melhor candidato/a. Mas querer condicionar a escolha final com base num critério como o género, sobrevalorizando-o em relação a outras qualidades, não é sensato.
2. As qualidades de Guterres têm sido louvadas unanimemente no país e no estrangeiro e (apesar das insuficiências por si manifestadas quando foi primeiro-ministro de Portugal) poucos duvidam de que seria um excelente secretário-geral da ONU.
O que é curioso é o leque de qualidades com que é em geral brindado pelos seus apoiantes. Pedro Silva Pereira, um correligionário que foi secretário de Estado do XIV Governo de Guterres, num artigo de opinião, considera que “Guterres tem tudo para ser um grande secretário-geral da ONU: tem inteligência, talento e mérito, tem experiência política, tem experiência internacional, tem conhecimento da Organização e tem o domínio dos mais sérios problemas que hoje se deparam à comunidade internacional”.
É curioso porque as qualidades mencionadas – no caso de Guterres como no de outros líderes políticos – pertencem sempre à categoria que Susan Sontag chamava “virtudes moralmente neutras”. Como se tivéssemos vergonha de nomear verdadeiras qualidades morais e preferíssemos remeter-nos às meramente tecnocráticas. Só quando alguém morre nos atrevemos a dizer algo como “era um homem bom” mas apenas porque consideramos que a emoção do momento nos desculpa o juízo sentimental.
É evidente que Guterres é um político inteligente, conhecedor e experiente, mas isso acontece com muitos outros. Aliás, a maior parte dos homens e mulheres que estão na política possui qualidades notáveis. Muitos são inteligentes, trabalhadores, estudiosos, perseverantes, experientes, eloquentes e convincentes. Por muito que nos custe reconhecer, não se chega a determinadas funções sem um conjunto considerável de qualidades. Mesmo alguém como Pedro Passos Coelho ou como Cavaco Silva possuirão qualidades. O que acontece é que essas qualidades não chegam para merecerem o nosso respeito ou admiração. E isto porque se pode ter uma mente excepcional e uma capacidade cavalar de trabalho e não distinguir entre a verdade e a mentira ou não perceber a utilidade de um acto de governação que não seja feito em benefício dos seus amigos ou de si próprio. Pode-se ser um sujeito brilhante e deixar-se corromper pela vaidade e pela cupidez. Pode-se ter uma excelente memória, conhecer os clássicos e ser um traste.
O que faz de Guterres um excelente candidato não são as suas qualidades intelectuais ou de trabalho mas as suas qualidades morais. É evidente que as primeiras são importantes mas apenas porque estão ao serviço das segundas. O que faz de Guterres um excelente candidato é o facto de ser um homem capaz e honesto, que tentará pôr as suas qualidades ao serviço da paz, do combate às injustiças sociais, ao sofrimento, à desigualdade e à discriminação. O que faria de Guterres um excelente secretário-geral não é apenas o facto de ter uma cabeça que funciona, mas principalmente o facto de ter um coração que está do lado certo.