E quando um aluno te cospe na cara?
Quando o aluno nos chama um nome ou ameaça, por alguma razão há-de ser. E não, ninguém pode mudar o mundo sozinho
"Ai filho, e lá em Inglaterra, conta-me lá, não dás aulas numa daquelas escolas de malucos, onde os alunos são todos mal-educados, pois não?“ e eu, sem querer preocupar a minha tia, a dizer que não, não há problema nenhum e, claro, todos nós temos os nossos dias, rapidamente procurando dar um tiro na conversa enquanto, sobre os bicos dos pés, esticava os braços e todo o corpo na direcção de um outro assunto qualquer na prateleira de uma tarde demasiado longa, como são todas as tardes quando se vai visitar um familiar distante sem já se saber muito bem porquê.
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"Ai filho, e lá em Inglaterra, conta-me lá, não dás aulas numa daquelas escolas de malucos, onde os alunos são todos mal-educados, pois não?“ e eu, sem querer preocupar a minha tia, a dizer que não, não há problema nenhum e, claro, todos nós temos os nossos dias, rapidamente procurando dar um tiro na conversa enquanto, sobre os bicos dos pés, esticava os braços e todo o corpo na direcção de um outro assunto qualquer na prateleira de uma tarde demasiado longa, como são todas as tardes quando se vai visitar um familiar distante sem já se saber muito bem porquê.
Mas sim, lá em Inglaterra eu dou aulas “numa daquelas escolas de malucos“. Aliás, se hoje aqui escrevo é, precisamente, por de há nove anos para cá outra coisa não fazer para além de trabalhar em “escolas de malucos“ um pouco por toda a cidade de Londres. E não, tia, não são os alunos quem são malucos, mas os pais, e as crianças outra culpa não têm senão a de serem crianças num mundo cada vez mais desigual, monoparental, desestruturado, onde o apoio social é retirado ano após ano sem que por isso venha a promessa de um emprego, assim deixando famílias e crianças cada vez mais entregues a si mesmas, sendo a minha “escola de malucos“ o último reduto onde os professores ainda têm tempo para as ouvir, vestir e alimentar.
Infelizmente, como conseguirei eu explicar isto à minha tia quando, pela manhã, ao invés de um cordial “Good morning“ sou prontamente saudado por um glorioso “Fuck off“ a cada aluno que passa pelo portão, sinal de que está tudo bem, o aluno veio à escola ao invés de ficar em casa a levar porrada dos pais ou a fumar umas ervas maradas, e se calhar o “maluco“ sou eu enquanto sacudo os insultos dos ombros e, cordialmente, respondo “Good morning“, obrigado por vires (traduzido do inglês), já sabes onde é a tua aula?, e amanhã, achas que consegues vir mais cedo?
A causa da indisciplina é social e ninguém nasce mau, antes pelo contrário, a nossa fragilidade à nascença não é senão um mecanismo inato para suscitar nos outros, os nossos semelhantes, o acto de cuidar e proteger. Portanto, quando o aluno nos chama um nome ou ameaça, por alguma razão há-de ser. E não, ninguém pode mudar o mundo sozinho, e muito menos o mundo destas crianças no qual a falta crónica de auto estima é, tantas vezes, a raiz de todos os seus problemas, cabendo-nos a titânica tarefa de abrir uma janela, por mais pequena que seja, num planeta onde as portas se fecharam há já muito tempo.
Por isso a importância do trabalho interdisciplinar, onde elementos da Segurança Social, Polícia, organizações de apoio social e de combate à toxicodependência, entre tantos outros, unem esforços e coordenam estratégias para, todos juntos, salvarem o mundo, uma criança de cada vez. Um estudo recente, de seu nome “As preocupações e as motivações dos professores”, conduzido pela Fundação Manuel Leão, conclui como a indisciplina na sala de aula é o maior problema para os professores em Portugal.
Se a isto juntarmos menos autonomia e poder de decisão, mais trabalho, menos prestígio e a não valorização do trabalho dos professores da parte do Ministério da Educação, então estamos perante uma classe cuja crónica falta de auto estima é, também, a raiz de todos os seus problemas. Ora, em Portugal eu nunca ouvi um “obrigado“ ou um “por favor“. Em vez disso fui sempre recebido com um “Olha, faz isto“, “Dá-me aquilo“ ou “Vai ali“, sendo o sorriso dos alunos muitas vezes o único farol no meio da tempestade de ideias de quem apenas procura fazer um trabalho bem. Em Inglaterra, ao contrário, por tudo e por nada há sempre um “Please“ prontamente seguido de um “Thank you“. Em Inglaterra, nos cafés e restaurantes, nos transportes ou nas ruas, é corriqueiro ouvirmos grupos de professores a discutirem calorosamente a mesma paixão de uma profissão que ainda prende os professores em Portugal.
Em Inglaterra, da última vez que o Governo tentou mexer nos direitos dos professores fomos 500000 na rua. Para o bem e para o mal, com ou sem indisciplina, insultos, ameaças e agressões, sinto-me apoiado, gosto do que faço e não tenho intenções de mudar. Porque quando um aluno nos cospe na cara ou nos bate no estômago existe toda uma rede de apoio ao redor do professor, mas também da criança.
A indisciplina é, de facto, um problema social desde a nascente do berro de um pai ou do desemprego de uma mãe até à foz de um professor dramaticamente só. E em Portugal os professores não têm um problema, têm muitos, e enquanto não forem devidamente apoiados e valorizados a indisciplina continuará a morar em todas as salas de aula do país. Entretanto já tenho feito o convite a muitos colegas de profissão para virem leccionar em Inglaterra, ainda para mais agora que o Brexit se arrisca a fechar todas as portas. Resposta: “O quê, e trabalhar com o horário completo e sem redução até à reforma? Ó colega, não obrigado!“