Feminino e liberdade
Sim, a misoginia islâmica deve ser combatida. Mas não pode nem deve ser proibida.
Choca-me a acusação de islamofobia àqueles que criticam e combatem as ideias e práticas islâmicas sobre as mulheres e os costumes. O Alcorão não é aqui relevante para o caso. É certo que no seu versículo 34 do Capítulo IV (entre outros) as mulheres são claramente diminuídas relativamente aos homens (embora mesmo aí os intérpretes divirjam). Mas seria fastidioso enumerar as passagens bíblicas em que isso também ocorre e penso ser escusado lembrar que, em Portugal, as mulheres só passaram a ter direito a voto em 1968. Também não valerá a pena citar o Malleus Maleficarum, ou “O Martelo das Bruxas”, de 1484, inspirado na preocupação paranoica do Papa Inocêncio VIII com a bruxaria, e em que se descrevem pormenorizadamente os métodos de tortura e assassínio que deveriam recair especificamente sobre as mulheres, milhares e milhares de mulheres, durante séculos. O problema das religiões com as mulheres não é, portanto, um exclusivo dos islamismos, nem sequer dos monoteísmos.
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Choca-me a acusação de islamofobia àqueles que criticam e combatem as ideias e práticas islâmicas sobre as mulheres e os costumes. O Alcorão não é aqui relevante para o caso. É certo que no seu versículo 34 do Capítulo IV (entre outros) as mulheres são claramente diminuídas relativamente aos homens (embora mesmo aí os intérpretes divirjam). Mas seria fastidioso enumerar as passagens bíblicas em que isso também ocorre e penso ser escusado lembrar que, em Portugal, as mulheres só passaram a ter direito a voto em 1968. Também não valerá a pena citar o Malleus Maleficarum, ou “O Martelo das Bruxas”, de 1484, inspirado na preocupação paranoica do Papa Inocêncio VIII com a bruxaria, e em que se descrevem pormenorizadamente os métodos de tortura e assassínio que deveriam recair especificamente sobre as mulheres, milhares e milhares de mulheres, durante séculos. O problema das religiões com as mulheres não é, portanto, um exclusivo dos islamismos, nem sequer dos monoteísmos.
Mas sim, quer o sunismo, quer o xiismo dominantes atuais, tal como o catolicismo pré-Vaticano II, são claramente misóginos e homofóbicos. Entretanto, o cristianismo misógino, tendo sido vencido pelo iluminismo oitocentista e pelo liberalismo e constitucionalismo democrático e laico daí decorrentes, está hoje, graças ao combate dos liberais e à derrota Católica, claramente atenuada e em dissolução. Esse ainda não é o caso de uma parte muito importante do islamismo. Mas espera-se que isso venha a ocorrer no futuro. Sim, a misoginia e a homofobia islâmicas, com origem no ethos social e cultural islâmico, é um mal que deve ser derrotado.
O problema da relação dos homens com as mulheres no islamismo e nas religiões em geral não tem fundamento religioso, quer dizer, não vem no “Livro”. Deus, seja Ele quem seja, e seja Ele o que seja, certamente não tem género e as leituras literalistas, antropomórficas e masculinocentricas do divino e dos três livros das três religiões monoteístas têm tudo a ver com quem manda na terra e nada a ver com quem manda no céu. O problema da misoginia é, portanto, político e cultural e não religioso, e é nesse campo que ele deve ser jogado.
A ideia segundo a qual a eliminação do feminino e das mulheres (porque é isso o que representa a eliminação do rosto e do corpo femininos na esfera pública) decorre da inspiração ou devoção religiosa, islâmica ou outra, não resiste à crítica racional. E aqueles que fazem a apologia do respeito ou indiferença pela desrazão e pela indignidade talvez devessem, também, voltar às catacumbas da Inquisição. Na verdade, ninguém sabe onde isto pode ir dar. Por isso mesmo é que o combate a favor da liberdade e da igualdade continuam a ser fundamentais.
Bem entendido, a democracia constitucional é aquele regime onde a liberdade é quase irrestrita, sobretudo no que diz respeito ao domínio de si: da sua mente e do seu corpo. Inclusive a liberdade de se autoanular, de ser um maníaco (ou uma maníaca) do ascetismo de si, até ao seu total desaparecimento ou alienação em terceiros. Mas o domínio integral de si, incluindo o direito à autoalienação, não legítima de modo moralmente equivalente todas as ideias, todas as práticas e todas as asceses. A defesa e prática do racismo, da segregação religiosa, da misoginia, da homofobia e do antissemitismo não são equivalentes aos seus contrários. A igualdade entre raças, homens e mulheres, hetero e homossexuais, judeus, cristãos ou muçulmanos é melhor que a sua hierarquização, ou guetização, social e comunitária. Quem ache que umas e outras coisas são moralmente equivalentes que o diga. Aliás, a Constituição da República Portuguesa não só não equivale todas as ideias como proíbe expressamente todo o domínio e toda a expressão de si mesmo, de modo orgânico ou associativo, suscetível de ser pensada como “fascista” ou “racista”, com o fundamento implícito de que o fascismo e o racismo são contrários à dignidade humana. Bem entendido, é duvidoso que faça sentido a proibição de organizações com base na expressão ideológica e identitária dos seus membros. O racismo e o fascismo são desprezíveis e perigosos mas a liberdade de expressão do si mesmo nunca será verdadeira liberdade se só permitir a expressão de ideias dignas (descontando o debate sobre o que isso seja). O mesmo vale, bem entendido, para as ideias misóginas e homofóbicas, que não podendo, nem devendo, ser proibidas, devem ser combatidas cultural e politicamente.
Sim, a misoginia islâmica expressa pelos diferentes véus islâmicos deve ser combatida porque corresponde à expressão pública, e ao proselitismo cultural, de práticas e ideias indignas e contrárias aos direitos humanos fundamentais. Mas não pode nem deve ser proibida, descontando, bem entendido, necessidades securitárias e a salvaguarda pedagógica das crianças e jovens perante ideias e práticas contrárias à dignidade humana.
Professor do Ensino Secundário