Vemos tudo nu e vermelho nos dez anos de Inhotim
Homens e mulheres nus espalham gelatina vermelha para comemorar o aniversário do Instituto Inhotim. Uma homenagem a Tunga, artista brasileiro recentemente falecido, neste enorme museu de Minas Gerais.
O lago está um espelho de água. Vemos pequenos círculos a formarem-se à esquerda. A noite caiu e os sons da natureza ouvem-se mais facilmente. A expectativa também é muita à espera da performance True Rouge, uma nova apresentação do trabalho que a coreógrafa Lia Rodrigues fez em 2004 com o artista plástico Tunga, ambos brasileiros e o último desaparecido este ano. É um dos espectáculos mais esperados nestes dias em que se comemora o décimo aniversário do Instituto Inhotim, situado em Minas Gerais e definido como o maior centro de arte contemporânea ao ar livre da América Latina.
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O lago está um espelho de água. Vemos pequenos círculos a formarem-se à esquerda. A noite caiu e os sons da natureza ouvem-se mais facilmente. A expectativa também é muita à espera da performance True Rouge, uma nova apresentação do trabalho que a coreógrafa Lia Rodrigues fez em 2004 com o artista plástico Tunga, ambos brasileiros e o último desaparecido este ano. É um dos espectáculos mais esperados nestes dias em que se comemora o décimo aniversário do Instituto Inhotim, situado em Minas Gerais e definido como o maior centro de arte contemporânea ao ar livre da América Latina.
Os círculos tornam-se cada vez mais largos, porque entraram vários corpos nus na água. Homens e mulheres caminham muito erectos, até no lago só restar uma fila de dez cabeças. Vêm na nossa direcção — estamos numa das galerias dedicadas a Tunga em Inhotim, o parque pensado por Bernardo Paz, milionário da indústria mineira que juntou aqui alguns dos nomes mais relevantes da arte contemporânea actual e vários nomes históricos das artes visuais brasileiras, como Hélio Oiticica, Cildo Meireles, Doris Salcedo, Lygia Pape, Olafur Eliasson ou Matthew Barney, entre muitos outros.
Já na margem, são içados para o exterior da Galeria True Rouge — um hino ao vermelho concebido por Tunga, em 2006, e na prática uma instalação que ocupa 150 metros quadrados. Foi o primeiro espaço a ser concebido de raiz em Inhotim, depois de o artista ter convencido Berardo Paz a abrir este museu ao ar livre.
Quando os corpos nus começam a circular, abre-se uma clareira entre a multidão vestida. Uma voz pede distância dos bailarinos da companhia de Lia Rodrigues, um dos nomes fundamentais da dança brasileira, para que a performance possa ser vista como deve ser.
Marta Mestre, a nova curadora da equipa de Inhotim, anda para trás e para a frente neste momento crítico em que o movimento dos corpos deve afunilar numa porta giratória para a performance passar para o interior da galeria. Todos os bailarinos recebem uma toalha e os corpos acumulam-se e empurram-se dentro do cilindro giratório que faz a transição entre o dentro e o fora. A portuguesa, que está aqui desde o final Abril, depois de ter passado cinco anos como curadora-assistente no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, tem agora o seu primeiro trabalho curatorial em parceria com o curador principal, o norte-americano Allan Schwartzman, uma vez que o terceiro elemento da equipa, o alemão Jochen Volz, é o responsável pela programação da Bienal de São Paulo, que acabou de ser inaugurada.
Com o interior da galeria de vidro fortemente iluminado, e os espectadores do lado de fora, True Rouge/Vermelho Verdadeiro aparece em todo o seu esplendor neste espaço branco. É tudo vermelho por aqui, nesta obra datada de 1997: são dezenas de redes vermelhas suspensas por fios e paus vermelhos, que por vez contêm recipientes de vidro que guardam líquidos ou contas vermelhas, mas também esponjas-do-mar e esfregonas limpa-garrafas igualmente vermelhas. É uma instalação de uma enorme exuberância, barroca, minimizada por uma cor uniforme.
Os performers, que andam devagar e fazem gestos lentos, abrem meia dúzia de caixotes brancos, espalhados em redor da instalação, de onde começam a retirar uma gelatina espessa, também vermelha, transparente, com uma elasticidade infinita. O material viscoso cola-se aos corpos, entranha-se na obra de arte, derrama-se para o chão. Os fios vermelhos que suspendem a peça parecem continuar agora até ao chão e já não se consegue ver onde acaba a instalação e começa a performance.
Pela galeria parece que passou uma action painting de Jackson Pollock e lembramo-nos do Desvio para o Vermelho, de Cildo Meireles, outro pavilhão de Inhotim em que todos os objectos e obras de arte de um espaço são também vermelhos, uma instalação que começou a ser criada em 1967 e cujo desenvolvimento chega aos anos 80. Foi também um dos artistas que ajudaram Bernardo Paz a lançar Inhotim.
Comer a obra
Ainda não existia Inhotim, conta Lia Rodrigues ao PÚBLICO depois do espectáculo, só a colecção privada de Bernardo Paz, quando Tunga convidou a coreógrafa para fazer um filme. Acabaram por realizar esta performance, mostrada em 2004, antes da abertura da instituição ao público. “A enorme diferença para esta segunda apresentação é que ele já não está aqui. É um enorme vazio.” Desses anos de um Inhotim mais privado, Lia Rodrigues lembra-se de ver Cordélia, a mulher do artista nessa altura, a mergulhar no lago numa imagem semelhante à que acabámos de ver. Foi a essa memória que recorreu quando a chamaram para esta nova apresentação de True Rouge. “Eu inventei agora essa coisa da água, que não existia na primeira vez.” Nova é também a forma como os performers se juntam e se esfregam uns nos outros na porta giratória: Lia Rodrigues teve de encontrar uma solução para o frio depois do banho nocturno.
Quanto a relações com a action painting, elas não podem ser encontradas. “Nada, nada. É Tunga, Tunga.” E o que é ser Tunga? “Ele inaugura jeitos de sensibilidade. Ele é profundamente brasileiro. Não tem uma explicação com palavras.”
Barrão, um dos artistas que fazem parte do grupo multimédia Chelpa Ferro, tem numa das novas exposições temporárias a sua primeira peça em Inhotim, e está maravilhado com o que acaba de ver. Ele não consegue imaginar outro sítio onde isto possa acontecer: “Pode imaginar alguém a entrar num museu e a botar geleca [gelatina] em cima de uma obra de arte? Qual é o museu que deixa isso?” Quanto ao Tunga, não é só a generosidade que explica a sua abertura ao trabalho dos outros evocada ainda agora por Lia Rodrigues: “Era um dos caras mais interessados em arte que já conheci. Perguntava: ‘O que é que você está fazendo? Quero ver.’”
Pouco antes da performance, tínhamos comido uma sopa vermelha de beterraba ao lado da obra Deleite, situada perto de um dos restaurantes do parque, uma paisagem de mil hectares com uma área de 140 visitável. No meio de uma leitura encenada, de um dos vários textos escritos por Tunga, a sua ex-mulher, Cordélia Fourneau, cuja imagem a entrar no lago despida inspirou Lia Rodrigues, explicou ao PÚBLICO que “a procura do vermelho verdadeiro se fez aos poucos com o amigo poeta Simon Rouge”, que tem uma poesia com o mesmo nome que fala da ocupação do espaço pelo vermelho. “O Tunga não fecha o significado. Ele regurgita a obra. A sopa do Tunga é uma proposição a participarmos e interpretarmos. O próprio espectador vai digerir a obra e fazer chichi vermelho...”
Sobre a dificuldade em classificar o trabalho de Tunga, Marta Mestre diz que o artista é mesmo difícil de catalogar (os obituários brasileiros de Junho falavam de um trabalho inventivo, ousado, carnal, como resumiu Kathleen Gomes num texto no PÚBLICO). “O trabalho de Tunga é inédito numa coisa. Nos anos 70, há uma verve muito política na arte brasileira e o modernismo esteve muito presente com a sua herança concretista [abstraccionismo geométrico]. Tunga mostra outras influências, como um traço surrealizante, que não é muito comum no Brasil.” Quanto à difícil categorização, a curadora portuguesa diz que o significado e o significante são fluidos e nunca estão estabilizados: “Há sempre uma ambiguidade nos sentidos. Se fôssemos com uma proposição, ele dizia que não.”
Se na obra de Tunga há alguma herança da antropofagia cultural (propôs a deglutição dos modelos internacionais para a produção de algo novo no Brasil), que encontramos em algumas peças de Lia Rodrigues, é porque, lembra Marta Mestre, a antropofagia “é um caldo cultural” do país.
No dia seguinte, antes da apresentação de Xipófagas Capilares entre Nós (1984), na Galeria Psicoativa, que reúne a maioria dos trabalhos do artista em Inhotim, Allan Schwartzman e Bernardo Paz conversam com os jornalistas estrangeiros convidados para visitar Inhotim no aniversário. “A arte contemporânea tem de ser política, a beleza está no jardim”, começa por dizer o milionário brasileiro, depois de explicar que precisa de parcerias para poder continuar a construir Inhotim como até aqui por causa da grande crise que o Brasil está a passar.
Todo este vermelho em Inhotim em redor de Tunga, reconhece o curador principal, que passa aqui umas cinco semanas por ano, pode ser “completamente” interpretado como uma crítica e uma ironia em relação ao actual momento político. Afinal, momentos antes, Bernardo Paz tinha-se proclamado “socialista”, apresentado Inhotim como um lugar de utopia, e dissera que detestava o actual Presidente do Brasil.
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O visitante de Inhotim, explicam os dois, vem principalmente ver o parque e pelo caminho vê arte contemporânea. O parque/museu já tem 350 mil visitantes por ano, enquanto Ouro Preto, a cidade histórica património da humanidade, chega aos 400 mil.
Allan Schwartzman gosta de algumas obras de Tunga, outras nem tanto, começa por dizer quando lhe pedimos para o integrar num contexto internacional: “Só quando construímos este pavilhão que vamos ver hoje é que realmente percebi o trabalho dele. São 27 trabalhos, alguns de grande escala, muitos relacionando-se uns com os outros.”
Na Galeria Psicoactiva, uma caixa de vidro com uma grande varanda de madeira, a Mata Atlântica, parece que vai tomar conta do edifício. Foram colocadas 21 enormes redes vermelhas na varanda, onde podemos espreitar a performance que decorre lá dentro: em Make-up Coincidence, um casal nu usa maquilhagem para besuntar uma dezena de esculturas da série A Prole do Bebé (2002), que parecem pequenos seres extraterrestres com algumas das suas protuberâncias a ganharem formas sexuais. No processo, os corpos dos performers ficam também cobertos com esta pasta cor-de-rosa. Poucos antes, na performance Xifópagas Capilares, duas meninas gémeas, unidas pelo cabelo, caminham impávidas, interpelando-nos apenas com o olhar, e parecem também um pouco uma criação de David Lynch.
“O trabalho de Tunga não é linear no seu desenvolvimento e no seu conteúdo. É um trabalho muito essencial, que vem de experiências primordiais e de uma investigação complexa da psique humana, das emoções humanas.” Na galeria, há uma marioneta feita de cristais de rocha quase à nossa escala, e outra instalação, intitulada Debaixo do Meu Chapéu, que mostra vários crânios dentro de chapéus de palha. Uma trança de ferro fundido, que toma a forma de uma cobra no chão da varanda, está relacionada com a famosa obra Vanguarda Viperina, uma performance em que duas cobras anestesiadas e entrançadas vão aos poucos acordando.
Neste fim-de-semana cheio de performances, a festa começou com Marra, à porta de uma das galerias em que foram feitas as inaugurações anuais das exposições temporárias Por Aqui Tudo É Novo e Light. Dois homens, novamente nus, lutam com a cabeça encapuzada por um único saco que os une. Empurram-se até à exaustão.
Marta Mestre explica que esta performance pertence à série Homem=Carne/Mulher=Carne, de Laura Lima, datada 1996, e que foi a primeira performance que um museu brasileiro comprou (o MAM-SP). “Nós também coleccionamos várias performances e queremos dar a ver uma colecção que não se restringe ao objecto físico. Esta luta, marra, é até boa para pensar o momento actual do Brasil.”
A festa fechou com um concerto de Marisa Monte, em que a cantora brasileira apresentou o reportório mais representativo da sua carreira. Como alguém brincou entre a assistência, as suas canções chamaram a chuva e o “melhor amigo” do fã de Marisa, como diz a canção, foi mesmo a Magic Square (1977), de Hélio Oiticica, uma reflexão sobre a ocupação do espaço pela cor, que oferecia a única cobertura para fugir à chuva tropical da Primavera.
O PÚBLICO viajou a convite do Instituto Inhotim