Surf funk yéyé, agora mais barroco
Álbum cheio de fundos falsos, de alçapões, de lugares que se vão revelando com vagar.
Quando se ouvia Sur la planche, single do primeiro álbum dos franceses La Femme, feito de um nervo surf-rockabilly fora de época, éramos sugados por uma canção encantadora que parecia banda sonora para um videojogo. Soava a uma trepidante descarga de adrenalina que piscava o olho ao surf mas que galgava ondas sem necessidade de um fato isotérmico, e que tornava Biarritz um lugar não de turismo balnear mas de improvável lugar de intercepção entre as guitarras de Dick Dale, os baixos e os ritmos retirados de catálogos funk e disco anos 1970, as paisagens sonoras de típica assinatura de Morricone e as vozes sacarinas na melhor tradição yéyé de Françoise Hardy ou France Gall, de uma sedução para a qual dificilmente se teria defesas.
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Quando se ouvia Sur la planche, single do primeiro álbum dos franceses La Femme, feito de um nervo surf-rockabilly fora de época, éramos sugados por uma canção encantadora que parecia banda sonora para um videojogo. Soava a uma trepidante descarga de adrenalina que piscava o olho ao surf mas que galgava ondas sem necessidade de um fato isotérmico, e que tornava Biarritz um lugar não de turismo balnear mas de improvável lugar de intercepção entre as guitarras de Dick Dale, os baixos e os ritmos retirados de catálogos funk e disco anos 1970, as paisagens sonoras de típica assinatura de Morricone e as vozes sacarinas na melhor tradição yéyé de Françoise Hardy ou France Gall, de uma sedução para a qual dificilmente se teria defesas.
Ao escutar-se agora Mystère, a tentação é a de identificar o mesmo mundo delirante quase inalterado, talvez apenas mais distendido e menos dado a arrebatamentos. Só que é preciso usar a unha e raspar a superfície para se perceber quase de imediato que todo o maravilhamento a roçar o exótico de antes surge, em 2016, engrandecido por uma certa tendência barroca que não leva as canções a tropeçar em complicações desnecessárias, antes as torna matéria mais fascinante e duradoura. Quer isto dizer que, tal como a referência quase fatal dos Beach Boys enquanto banda de canções sobre surf, também Marlon Magnée e Sacha Got se deixaram fascinar pelo engrandecimento de criações de natureza pop através de um uso amplificado e mais sofisticado dos arranjos.
Sem grande necessidade de remexer na conjugação de sonoridades que marcava Psycho Tropical Berlin, os La Femme eram, no álbum anterior, um colectivo (de muitas vozes femininas convidadas, que aqui se repetem e renovam) feito de uma urgência a que é dado algum descanso em Mystère. São sopros e cordas a surgir de forma inesperada em canções de andamento funk ou guitarras tropicais, mas atiradas para estes ambientes sem estrondo. Se os La Femme sempre se assemelharam a uma colagem de imagens transposta para um suporte musical, agora que os ambientes dissonantes deixaram de ser surpresa a atenção deslocou-se para os pormenores que abundam em SSD, Al warda, Psyzook, Le chemin ou Vagues.
Com a vantagem de Mystère ser longo o suficiente para que as mais directas Sphynx, adoptada pela família new wave, ou o western-baguette Où va le monde, também terem o seu espaço. Mas até a aparentemente simples delicadeza acústica de Le vide est ton nouveau prénom caminha para uma quase religiosa ambiência cinematográfica. Não espanta por isso que lhe chamem Mystère. É um álbum cheio de fundos falsos, de alçapões, de lugares que se vão revelando com vagar, segundo uma caleidoscópica ideia de pop, inquieta com tantas ideias e com a vontade de ser tanta coisa em simultâneo. Pois que o sejam – pas de problème.