Eu não sou Lucy Barton
Elizabeth Strout quer falar de classes sociais na América. Criou Lucy Barton, escritora com passado de pobreza e exclusão. É a protagonista de O Meu Nome é Lucy Barton e em comum com Strout tem os livros, a solidão e o facto de ser branca.
Qualquer coisa podia ter nascido daquela imagem. Foi no dia anterior a esta conversa. Uma mulher, talvez com 75, 80 anos, o cabelo preso num coque, a andar na rua com bengala e saltos altos, muito finos. “Acho que vinha da igreja e seguia para um restaurante. Era hora de almoço. Fiquei embevecida a olhar para ela. Ia sozinha, caminhava devagar, mas segura”, conta Elizabeth Strout quando se lhe pergunta como nasce um livro. “No princípio são sempre pelas personagens. Não é uma ideia. Pode ser uma imagem, uma voz que começa a soar e que depois persigo. E continua assim, comigo a absorver a rua, a ouvir conversas, gestos, em expressões que vejo. Tudo serve para ir tornando essas personagens verdadeiras’.”
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Qualquer coisa podia ter nascido daquela imagem. Foi no dia anterior a esta conversa. Uma mulher, talvez com 75, 80 anos, o cabelo preso num coque, a andar na rua com bengala e saltos altos, muito finos. “Acho que vinha da igreja e seguia para um restaurante. Era hora de almoço. Fiquei embevecida a olhar para ela. Ia sozinha, caminhava devagar, mas segura”, conta Elizabeth Strout quando se lhe pergunta como nasce um livro. “No princípio são sempre pelas personagens. Não é uma ideia. Pode ser uma imagem, uma voz que começa a soar e que depois persigo. E continua assim, comigo a absorver a rua, a ouvir conversas, gestos, em expressões que vejo. Tudo serve para ir tornando essas personagens verdadeiras’.”
É o início de uma tarde de Primavera e o sol entra quase directo na sala virada a sul do andar alto onde vive Elizabeth Strout em Manhattan. Esteve a escrever até há pouco. O portátil continua aberto na mesa de refeições, e no chão, junto a uma poltrona branca, há um monte de folhas A4 cheias de anotações.
Escreve por ali, rodeada de livros, quadros e de uma paisagem típica do Upper East Side de Manhattan: uma nesga do rio East, mesmo ali ao lado, os tons ocre dos prédios e o verde das árvores, babysitters a passear crianças em carrinhos, alguém a correr na rua. “Acho que me levou anos até saber como escrever frases; demorei anos a aprender este ofício e a ouvir nelas alguma coisa que soasse a verdadeiro”, começa por dizer esta mulher que publicou o primeiro livro em 1998, quase com 43 anos, e escreve todos os dias desde os 13.
Uma admiradora de Alice Munro e William Trevor que em 2009 ganhou o Pulitzer para ficção com Olive Kitteridge (Casa das Letras, 2010), colecção de histórias que funcionam como um todo e com acção em pequenas vilas da costa do Maine. O livro seria adaptado a uma série da HBO com o mesmo título e protagonizada por Frances McDermond.
Continua Strout: “Em ficção é preciso fazer sentido emocionalmente e é difícil consegui-lo. Há muitos escritores a conseguir isso de forma certinha, mas e a emoção? O Hemingway dizia: ‘vá levanta-te e escreve a frase verdadeira que conheces’. Durante anos pensei nisso. O que é a frase verdadeira que eu sei? Não conseguia entender, mas ia tentando, escrevia, escrevia, todos os dias até perceber, distinguir: esta é uma frase verdadeira e esta não. Mas foi só pela imersão no trabalho, todos os dias.”
Para Elizabeth Strout, chegar à frase verdadeira não é muito diferente de conseguir criar uma personagem verdadeira ou à tal verdade emocional. Fala disto quando se lhe pergunta como nasceu Lucy, a protagonista de O Meu Nome é Lucy Barton, o seu mais recente romance que acaba de ser publicado em Portugal e a confirma como uma eficaz contadora de histórias.
Lucy é uma escritora como Elizabeth, com um grande conhecimento da solidão. “No resto somos diferentes. Não vale a pena tentar encontrar mais pontos em comum do que aqueles que qualquer escritor põe de seu no que escreve”, afirma sobre a tentação do leitor em procurar semelhanças sempre que um escritor cria outro escritor na ficção. “Eu não sou Lucy Barton”, diz Strout a sorrir, brincando com o sentido da frase. Ela quer dizer justamente o contrário do que Flaubert disse a propósito de Madame Bovary (Bovary sou eu). “Eu escrevo ficção. Sei que há sempre alguma coisa de mim em cada personagem, homem ou mulher, porque eu sou o ponto de partida do que escrevo, porque só me conheço a mim. Mas eu escrevo ficção e sempre escrevi ficção. Se as pessoas procurarem quem sou eu, a ficção é o que sou.” E a ficção é ela porque nela está sempre a sua perspectiva sobre o mundo. “Só conseguimos ver as coisas a partir do nosso ponto de vista, mesmo quando queremos ver o nosso contrário. É sempre, sempre, a partir de nós. Mas a ficção é um desses raros momentos, se ela for bem feita, em que o escritor pode ser outra pessoa, mas muito brevemente”, diz.
Falar de classe
Elizabeth Strout nasceu em Portland, no Maine, filha de um professor universitário e de uma professora de liceu. Filha única, cresceu numa casa onde “não se acreditava na televisão”, rodeada de livros e sem vizinhos por perto. “Sim, cresci muito sozinha, mas era uma solidão diferente da de Lucy”, a rapariga do Midwest que vivia com a família numa garagem, jantava pão com melaço, cheirava mal e aprendia o básico da vida íntima ou social imitando o comportamento dos que ia encontrando nos livros. “Por exemplo, como é que se aprende que é indelicado perguntar a um casal por que motivo não tem filhos? Como se põe a mesa? Como sabemos que estamos a mastigar de boca aberta se nunca ninguém nos disse? Já agora, como sabemos que aspecto temos, se o único espelho em casa é muito pequenino e fica por cima do lava-louça, ou se nunca ninguém nos disse que somos bonitas, se, em vez disso, quando os nossos seios se desenvolve, a nossa mãe nos diz que começamos a parecer-nos com uma das vacas do celeiro dos Pedersons?” Esta é a voz de Lucy.
“É a primeira vez que escrevo usando a primeira pessoa”, refere Elizabeth Strout. “Quando comecei não sabia que Lucy Barton iria ser escritora. Não escrevo de seguida, do início até ao fim. Tinha cerca de um terço do material quando me apercebi de que ela talvez devesse ser uma escritora e eu não queria isso. Quem é que quer ler acerca de escritores? Não acho que seja muito interessante. Mas ela saia da escola e lia livros porque a faziam sentir-se menos só. Foi uma pista para mim”, revela. E além de Lucy, escritora, criou Sarah Payne, outra escritora, referência para a primeira, no que, confessa, se tornou uma espécie de jogo arriscado com muitos espelhos. É Sarah quem diz a Lucy e a todos os que a ouvem num curso de escrita: “Vocês só vão ter uma história.” Funcionou para Lucy como a frase de Hemingway para Elizabeth. E depois, acrescenta ainda Payne: “Vão escrever uma história de muitas maneiras. Nunca se preocupem com a história. Só têm uma.”
A história de Elizabeth Strout é a de uma americana, branca que está interessada em falar dos problemas de classe no seu país. “Este é o grande tema de que todos parecem fugir. E com ele vêm muitos outros, incluindo o de raça. Não se pode falar de discriminação racial sem falar de classe”, afirma.
Em criança, os livros de Elizabeth estavam em casa e os de Lucy na biblioteca da escola, onde ela ficava depois das aulas para fugir ao frio da garagem. “Sempre detestei ter frio. Há elementos que determinam os trilhos escolhidos, e frequentemente conseguimos encontrá-los ou identificá-los com rigor, mas já tenho pensado em como eu ficava até mais tarde na escola, onde fazia calor, só para estar quente.”
Tensão mãe e filha
Da história de Lucy vamos sabendo a partir do momento em que a encontramos na cama de um hospital de Manhattan, nos anos 1980, a reconstituir o que foi a sua vida até aí. Lucy é uma escritora que naquele momento tenta que a sua própria história lhe faça sentido e que reconstitui a partir das suas memórias e das histórias e que lhe traz a mãe, uma mulher pobre e austera do Illinóis. Não se viram durante anos, sempre tiveram uma relação baseada na contenção afectiva e no silêncio e ela agora senta-se ao seu lado, dormitando à noite na mesma cadeira onde passa os dias e confrontando-a com outras memórias.
Elizabeth Strout explora a primeira pessoa numa narrativa que se constrói a partir do presente a olhar o passado. As hesitações, as falhas de memória, a sequência cortada pela dispensa de seguir uma cronologia são essenciais a um livro que se estrutura justamente nisso, jogando com elipses, e que ganha força sobretudo por isso.
“Quando me apercebi de que podia começar com uma mulher mais velha a olhar para trás isso ajudou-me. Eu queria estar na cabeça da personagem, mas se isso fosse no presente poderia ser muito confuso, estar tão dentro que cansasse. Mas se eu tivesse este ‘isto aconteceu há muitos anos’ criava uma distância confortável e ficava mais fácil ao leitor conseguir acompanhar a voz dela, que era uma voz única a que eu tinha de estar muito atenta”, refere.
E o seu papel, diz, foi seguir essa voz em confronto com o passado que, apesar de muito duro, não lhe conseguiu corromper uma espécie de pureza. “Foi isso que me seduziu nela”, continua Elizabeth Strout, sobre aquela mulher que passa várias semanas no hospital, separada do marido e das duas filhas pequenas, tendo por única companhia um séquito de médicos e enfermeiras, que tentam perceber o que ela tem, e a mãe que nunca lhe disse que a amava. Só lhe disse que nunca podia chorar.
“Nós éramos aves raras, a nossa família, mesmo naquela pequena vila de Amgash, Illinóis, onde havia outras habitações em ruína e a precisar de pintura e persianas ou jardins, sem qualquer beleza que se visse.” É outra vez Lucy Barton que vai ganhando corpo ao ritmo da corrente das suas memórias de exclusão social, abuso familiar, privação — material e afectiva — e a tal solidão que lhe conferiu identidade, enquanto o leitor se interroga sobre a sua doença e a tensão se centra naquela relação com a mãe, especulando sobre a reconciliação. “Dizer mentiras e desperdiçar comida eram coisas que davam sempre castigo. Fora isso, volta e meia e sem aviso prévio, os meus pais — e habitualmente a minha mãe, e na presença do meu pai — batiam-nos de forma impulsiva e com vigor, como me parece que algumas pessoas devem ter suspeitado, pela nossa pele manchada e pelas nossas expressões taciturnas.”
Lucy pensa isto enquanto a mãe está em frente a ela, envelhecida, a contar episódios mais ou menos burlescos sobre os vizinhos, os familiares, os irmãos de Lucy. Nesses momentos em que vai à infância de Lucy, à tensão entre mãe e filha, Strout é mais eficaz do que quando fala de literatura também pelas vozes das suas personagens. Como se Lucy não precisasse de ser escritora para ser eficaz. Mas apesar disso, o facto de Lucy ser escritora continua a ser um bom recurso. Naquela cama de hospital ela está a escrever a sua própria história, a única, e tem de ser o mais verdadeira possível.