Rio 2016: Exigir sem bases
O desporto em Portugal assenta num sistema caduco, desorganizado, sem objectivos e sem estratégia.
Existe uma enorme tendência de uma boa parte dos portugueses para colocarem infundadas expectativas sempre que há representações desportivas nacionais em confronto internacional. Seja pela iliteracia desportiva que nos caracteriza, pelo mero desconhecimento da relatividade das coisas ou por um qualquer aproveitamento interesseiro, as representações desportivas nacionais são analisadas pelas aparências, sem qualquer objectividade e ignorando o seu meio de inserção. Como se tivéssemos um sistema desportivo exemplar.
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Existe uma enorme tendência de uma boa parte dos portugueses para colocarem infundadas expectativas sempre que há representações desportivas nacionais em confronto internacional. Seja pela iliteracia desportiva que nos caracteriza, pelo mero desconhecimento da relatividade das coisas ou por um qualquer aproveitamento interesseiro, as representações desportivas nacionais são analisadas pelas aparências, sem qualquer objectividade e ignorando o seu meio de inserção. Como se tivéssemos um sistema desportivo exemplar.
Se as esperanças em notáveis resultados podem resultar da vontade de nos fazermos valer, a sua transformação nas elevadas expectativas de quase certezas só serve para abrir o campo à desilusão. E, portanto, não havendo vitórias de arraso e independentemente da qualidade dos diversos resultados, tudo é mau ou desastroso, seja qual for o ponto de vista da análise, diz-se e escreve-se. Ou seja: bestiais na formatação das expectativas a bestas perante a aparência dos resultados. Tudo num salto palavroso de nota 10.
E mais uma vez assim foi no regresso da Missão portuguesa dos Jogos Olímpicos Rio 2016. Elevadas expectativas fundadas em irrealismos – como se não se tratasse de uma competição desportiva de altíssimo nível em confronto com os melhores e adequadamente preparados para tentar a vitória e onde só 8% dos 11 544 atletas presentes podem regressar com medalhas conquistadas – marcam o adjectivo da análise. Uma só medalha? E apenas bronze?! Um desastre!
Terá sido?!
Ao longo de 24 presenças olímpicas, o desporto português conseguiu 24 medalhas – quatro de ouro (Carlos Lopes, Rosa Mota, Fernanda Ribeiro e Nelson Évora), oito de prata e 12 de bronze – numa média de uma medalha por cada participação. O que significa que Portugal está longe de campeões como os Estados Unidos com as suas 2546 medalhas. E tão pouco se aproxima dos países latinos europeus como a França (1169 medalhas), Itália (605), Espanha (148), Roménia (306) ou ainda da Holanda (195) ou Bélgica (164) – estes dois últimos com populações próximas da portuguesa.
Com a medalha conseguida pela notável e persistente Telma Monteiro, Portugal ficou dentro da sua média e colocou-se, com as 16 modalidades, entre as 28 possíveis, em que participou, em 78º lugar no Medalheiro – o que significa que conseguiu melhor do que os 119 países participantes que não obtiveram qualquer medalha – apenas 42% dos 205 países presentes obtiveram uma ou mais medalhas.
Lembre-se que todos os atletas portugueses presentes se qualificaram – obtendo as marcas estabelecidas – para poderem competir nos Jogos. Ninguém foi, portanto, sem mérito ou apenas para participar – atribuição de espectadores – mas sim para competir, embora e naturalmente, balizados pelas marcas conseguidas. Balizas que devem, desde logo, limitar as expectativas. Dando-lhes realidade – pensar, por exemplo, que as notáveis prestações de Nelson Évora com a melhor marca pessoal do ano e Patrícia Mamona com novo recorde nacional, poderiam garantir a certeza de medalhas é ignorar a existência de outros atletas com as competências e capacidades adequadas à vitória. Ignorar portanto que estamos integrados numa competição do mais elevado nível e de particulares características.
Os resultados globais da Missão foram maus? Não, não foram. E foram melhores do que o contexto onde se prepararam. Na sua enorme maioria – excepção feita a um ou outro erro, a um ou outro falhanço, a uma ou outra menor atitude – os atletas portugueses bateram-se com grande dignidade e tudo tentaram para honrar a responsabilidade da representação em que estavam investidos.
Os Jogos Olímpicos constituem a melhor e maior montra mundial de demonstração de capacidade desportiva de cada país e permitem uma análise comparativa global. A juntar a esta medalha de bronze, os atletas portugueses conseguiram dez Diplomas olímpicos, isto é, obtiveram dez classificações entre os 4.º e 8.º lugares classificando assim 12% do total dos seus atletas em finais. Entre os 9.º e 16.º lugares – habitualmente designados por semifinalistas – a Missão portuguesa contou com 16 posições. E colocou ainda seis atletas no 17.º lugar. Ou seja: Portugal conseguiu 33 classificações – 36% do total dos seus atletas – abaixo do 20.º lugar nas 57 provas em que teve a participação de seus representantes. Refira-se ainda que dos 92 atletas portugueses presentes – 32 mulheres e 60 homens – 54 deles não tinham qualquer experiência olímpica. Tratando-se da competição desportiva entre as competições desportivas, os resultados conseguidos apresentam-se com mérito que baste e não são compatíveis com o que se escreveu, disse ou colocou nas redes sociais.
Poderiam os resultados serem melhores? Claro! Podem sempre. Desde que haja a adequada aproximação de condições aos melhores competidores.
A realidade do sistema desportivo português é fraca e encontra-se muitos furos abaixo dos padrões europeus. Nas modalidades olímpicas temos cerca de 400 mil inscritos nas respectivas federações desportivas nacionais (últimos dados oficiais referentes a 2014), o que representa um número ridículo, impeditivo de competições internas de elevado nível, quando comparado com outros países europeus e que está longe das potencialidades de um país com 10 milhões de habitantes.
O desporto em Portugal assenta num sistema caduco, desorganizado, sem objectivos e sem estratégia, com uma mistela de conceitos confusos e pouco clarificadores onde abundam as frases feitas do desporto para Todos – e o desporto não é para todos: é para quem pode e, dentro destes, para quem quer – e de que o desporto dá saúde – o desporto é para quem tem saúde – confundido uma actividade de exigência, superação e responsabilidade de resultados com actividade física, essa sim, para todos, adaptável ás necessidades e que se pretende praticável para uma vida inteira. Curiosamente a actual Lei de Bases (Lei 5/2007) é designada por Lei de Bases da actividade física e do Desporto, designação que não parece preocupar ou induzir seja quem for.
Com um Desporto Escolar que não produz efeitos visíveis – andebol, basquetebol e voleibol estão inseridos no sistema escolar desde os anos 30 do século passado e nunca se qualificaram para os Jogos – quer na detecção de talentos, quer no aumento de inscrições federadas e que desde há muito deveria ter passado para o estádio de desporto em idade escolar articulado com clubes locais e federações de utilidade pública desportiva. Com um objectivo claro: introdução dos modelos desportivos das várias modalidades e detecção de talentos com o devido encaminhamento.
Não há dinheiro disponível para financiar as necessidades desportivas diz o Governo através do seu Secretário de Estado (RTP Notícias, 18 de Agosto de 2016). Mas muitas das mudanças necessárias que permitirão adaptar o desporto português às necessidades competitivas actuais, não custam dinheiro. Exigem apenas transformações. De conceitos, de mentalidades, de estruturas.
Desde logo estabelecendo como Missão das federações de utilidade pública desportiva a criação de condições para que os nossos atletas possam competir internacionalmente em termos de igualdade, nomeando a sua dimensão rendimento como prioritária para assim lhes exigir programas qualificados – e não numéricos – de formação e desenvolvimento, com índices de competitividade elevados e afastando-as das tentações das imensas exigências que se lhes pretende sempre colocar para iluminar fogachos políticos. Também sem custos será a revisão das actuais leis federativas, retirando a mesma medida de fato a corpos com dimensões diferentes e adequando-as e articulando-as, de acordo com as nossas especificidades, com as necessidades do confronto internacional – a definição oficial e legal das modalidades colectivas e individuais (a canoagem é, legalmente, uma modalidade individual!) é, no mínimo, inaceitável e umas e outras não podem reger-se pelas mesmas regras. O mesmo se dirá com o sistema escolar dos atletas que, apesar de um quadro legal facilitador, só enfrentam dificuldades e abusos quer da dupla actividade, quer na forma como são escolarmente tratados. A revisão do actual sistema de formação de treinadores exige também uma radical e urgente transformação sob pena de diminuição do seu número e da sua qualidade. O próprio estatuto do Alto Rendimento necessita de transformação e adequação, ampliando-se, às exigências actuais.
Para que as exigências por melhores resultados possam ter razão de ser – os obtidos no Rio 2016 se são bastante bons dentro do sistema que condiciona o desporto português, não podem ser meta – é absolutamente necessário proceder às transformações que o enquadramento internacional nos exige. Começando por estabelecer os objectivos pretendidos e construindo uma estratégia adequada. No quadro do desporto de rendimento.
Arquitecto e antigo seleccionador nacional de râguebi