Um rock cuspido por orgulhosos marginais
Em estreia nos palcos portugueses, os Fat White Family actuam no segundo dia do festival Reverence Valada, a 9 de Setembro. Antes que a tensão possa dinamitar a banda inglesa, ocasião para testemunhar a que soa um rock cuspido por orgulhosos marginais.
Liam Saoudi não é um grande admirador de canções de amor. Pelo menos daquelas a que estamos acostumados. A haver pores-do-sol dignos de animar qualquer postal, declarações definitivas de não saber viver sem o outro, choradeiras de baba e ranho a lamentar desfechos trágicos, então que os protagonistas possam ser ligeiramente diferentes. Imaginemos, portanto, Joseph Goebbels e Adolf Hitler, dançando uma valsa de despedida, a boca de um sussurrando ao ouvido do outro “antes que os nossos nomes / sejam enterrados em vergonha / mastiguemos o velho mundo / e cuspamos o novo”. E brindam ao IV Reich, embalados pela música que chove sobre eles a partir de Munique.
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Liam Saoudi não é um grande admirador de canções de amor. Pelo menos daquelas a que estamos acostumados. A haver pores-do-sol dignos de animar qualquer postal, declarações definitivas de não saber viver sem o outro, choradeiras de baba e ranho a lamentar desfechos trágicos, então que os protagonistas possam ser ligeiramente diferentes. Imaginemos, portanto, Joseph Goebbels e Adolf Hitler, dançando uma valsa de despedida, a boca de um sussurrando ao ouvido do outro “antes que os nossos nomes / sejam enterrados em vergonha / mastiguemos o velho mundo / e cuspamos o novo”. E brindam ao IV Reich, embalados pela música que chove sobre eles a partir de Munique.
Desde que a atenção começou a debruçar-se sobre o sexteto inglês Fat White Family, a provocação (muitas vezes aparentemente gratuita) tem sido apontada como a mais proeminente característica do grupo. Parece coisa de gente que se passeia por um bar à procura de encontrar quem se ofenda e queira resolver a questão com um par de socos. Mas é sobretudo, como o próprio vocalista do grupo confessa ao PÚBLICO, reacção ao facto de se sentirem excluídos de “uma arquitectura social organizada” e pouco receptiva àqueles que aparentam ser um bando de desordeiros e que gostam de levantar a voz para dizer aquilo que lhes passar pela cabeça.
De resto, uma das acções mais emblemáticas que os Fat White Family levaram a cabo, talvez aquela que mais foi disseminada pela imprensa, totalmente exterior à música, aconteceu quando estenderam uma faixa na janela do bar que era praticamente a sua casa (Queen’s Head) clamando “the witch is dead”. A destinatária da mensagem não deixava margem para dúvidas: tinha acabado de ser anunciado o óbito da ex-primeira-ministra britânica, Margaret Thatcher. “Conseguimos abandonar a moralidade em que fomos criados, na dicotomia constante entre aquilo que é certo e o que é errado, e adoptar uma outra moralidade”, justifica Saoudi em relação a esse episódio. “Acho que foi uma das coisas mais relevantes que fizemos até agora. Embora não tenha sido intencional fazer um gesto tão marcante, estou feliz por ter acontecido.”
Esse momento faz parte de uma postura natural de falar primeiro e argumentar depois, de não medir consequências em momento algum, de cada acção se bastar a si mesma. Mas os Fat White Family davam-se a esse luxo de não medir gestos ou palavras por não saberem o que era ter atenção e estar debaixo dos holofotes. Como assumidamente excluídos, em colisão frontal com toda a forma organizada de vida colectiva, num gozo juvenil de estar nas margens e escapar a qualquer normalização, as canções podiam versar temas tão pouco “aceitáveis” quanto um bombardeamento da Disneyland ou qualquer outra situação de potencial escabroso. Muitas vezes, ouvir os Fat White Family pode ser equivalente a assistir a um filme de terror ou passar por um acidente na autoestrada: tapa-se os olhos com a mão, mas deixa-se uma frincha entre os dedos para não recusar totalmente a visão do horror. E é por essa frincha que os encontramos a chafurdar alegremente na porcaria humana.
Honestidade
“Quando começámos escrevíamos apenas para a nossa própria fruição”, justifica Lias, a propósito de Bomb Disneyland. “Não me passava pela cabeça que alguém quisesse ouvir esta merda. Nunca pensámos vir a ter um contrato discográfico ou fazer uma digressão. Não era sequer realista imaginar algo do género. Por isso, pouco importava o que cantávamos, dizíamos aquilo que nos apetecia dizer e a que achávamos graça. Foi assim que muitas dessas coisas surgiram. Essa atitude é difícil de manter quando sabemos que há gente a ver e é quase impossível não mudar – temos de encontrar uma nova forma de sermos verdadeiros connosco.” É essa honestidade que é tão cativante quanto quase insuportável no grupo.
Uma nova honestidade teve então de ser reencontrada por estes tipos irados com tudo à sua volta, rapazes de uma atitude desafiante de quem se está a marimbar para a vida padronizada ocidental, sempre em cima do muro que faz fronteira entre a atracção e a repulsa pela pertença. “Sentimo-nos trancados do lado de fora deste mundo imaculadamente organizado”, sustenta Lias, mas a recusa de pertencer a esse modelo, de se etiquetarem como inaptos no acesso a um modo de vida feito de comprar casa, comprar uma televisão ou fazer férias no estrangeiro acionando sempre a linha de crédito, é também um consolo. “É quase confortável” ter este estatuto de rejeitados, admite.
A música que fazem é a extensão disso. Mesmo que lhes seja concedida a entrada no mundo que dizem desprezá-los, a reacção seria certamente a de cuspir na cara de quem fosse o portador de tal afronta ou criar uma imediata situação de conflito que permitisse maldizer o outro e alimentar o ódio. “Sabes que mais, podes ficar com essa merda que eu encontrarei beleza noutras coisas”, resume Lias, como resposta. “E essa beleza tanto pode aparecer numa bomba deflagrada num parque temático como no abuso sexual. ‘Encontrarei beleza nessas coisas, nas margens, porque não me é permitido entrar no vosso sistema’. Temos de nos agarrar a isto, mas não sei se faz algum sentido.”
Algo de sinistro em marcha
Não é fácil Lias Saoudi sentir-se parte do sistema quando Londres, a cidade onde os Fat White Family tomaram forma em 2011, se tornou ostensivamente cara e só ao alcance de carteiras abonadas até à obscenidade. No seu caso, diz viver de forma intermitente na cidade, apenas nalguns períodos de descanso e quando fica em casa de amigos. Nos anos mais favoráveis em termos de trabalho, desde que em 2014 a banda deu nas vistas e se tornou um fenómeno de palco em Inglaterra com a sua assumida pilhagem de grupos como The Cramps, Birthday Party e The Fall patente em Champagne Holocaust, chega a acumular 180 concertos, alguns dos quais em festivais como o Reverence Valada (onde actuam a 9 de Setembro) ou noutros eventos de alguma grandiosidade e cachet a o condizer, mas nem isso é suficiente. “Ganho qualquer coisa como 200 libras por semana e alugar um quarto em Londres, numa casa partilhada, custa algo como 180 por semana. É impossível e está cada vez pior – mesmo para uma banda que, como nós, até se vai safando. Odeio a cidade. Acho que devíamos queimar tudo e começar de novo.” E aponta ainda o dedo a “esses sacanas, hipsters idiotas”, que após a votação favorável do Brexit chegaram a propor a independência de Londres. “Essas pessoas que querem formar uma nova cidade-estado são as mesmas que votaram no Boris Johnson [um dos fortes promotores do Brexit] para mayor!”
Lias Saoudi, que acredita ou não numa qualquer forma de revolução dependendo de uma criteriosa série de factores – “o dia da semana, quanto dinheiro tenho no bolso, quanto é que já bebi e com quem estou no momento”, enumera –, fala de uma Inglaterra em declínio com a votação do Brexit, com os níveis de tolerância a cair a pique. “A minha mãe votou pela saída e tem três filhos de um argelino, isto é completamente doido”, comenta desolado pela forma como o resultado do referendo se voltou contra os imigrantes. Esses baixos níveis de tolerância estão ligados, na sua opinião, à ascensão da extrema-direita um pouco por toda a Europa, a que junta “exemplos óbvios como o Trump na América”. “Há algo de sinistro em marcha”, diz, vaticinando que após a França tombar “tudo o resto vai cair como um castelo de cartas”.
Quando canta sobre Hitler e Goebbels a salivar pelo IV Reich, não há propriamente uma glorificação das figuras ou sequer uma manifestação ideológica além do seu temor de que esse possa ser o caminho próximo. “Estamos mesmo em cima de um tal momento. O IV Reich talvez até já tenha chegado, talvez até já esteja a acontecer.”
A canção de amor entre as duas figuras históricas do nazismo tem sido, por outro lado, frequentemente entendida como uma imagem para Lias falar da sua relação de amor-ódio com Saul Adamczewski, a outra força motriz dos Fat White Family, dois “irmãos” com uma relação explosiva e cuja tensão alimenta em permanência a criatividade desenfreada do sexteto. Até porque no entendimento do vocalista não há qualquer filiação ou natureza abertamente política na música do grupo. O que acontece é que nada parece reflectido nas acções dos seis e o desplante de serem honestos acaba, afinal, por constituir uma tomada de posição política. “Os músicos tendem a afastar-se de tomar posições porque a música se tornou um jogo em que as pessoas se comportam como se estivessem num concurso de popularidade, e em que trazer à baila quaisquer convicções é sempre visto como possibilidade de alienar alguém. Como essa não é uma grande estratégia para vender discos, limitam a sua liberdade, porque não se ganha dinheiro a tomar posições políticas. Nesse sentido, há um clima de medo na música.”
O contacto com essa verdade da banda, garante Lias, é aquilo que os impedirá de se transformarem naquilo que pretendem evitar a todo o custo: uma banda pop. Não no sentido estritamente musical, mas na medida em que, tragados pelas regras do jogo, estariam então no olho de um furacão que juram detestar.