Tudo em família
Um belíssimo filme de animação artesanal sobre a família, literalmente para toda a família.
É importante avisar que existem filmes como este: fitas que resistem a encaixar nas gavetas convenientes do marketing ou da divulgação, obras que só a ausência de uma “marca” reconhecível pelas pessoas leva a passar ao lado. Kubo e as Duas Cordas não é produzido pela Pixar nem pela Disney nem pela Blue Sky, dá dez a zero a À Procura de Dory ou à Idade do Gelo; vem da Universal, mas não traz o burlesco visual dos Mínimos nem a sitcom antropomórfica de A Vida Secreta dos Nossos Bichos. É aquela coisa que parece fazer muita confusão a muito executivo chamada “filme para a família”, que pode ser visto pelos miúdos e pelos graúdos sem que um deles se aborreça (coisa de que a Disney e a Pixar tiveram o segredo mas do qual se têm esquecido vezes demais).
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É importante avisar que existem filmes como este: fitas que resistem a encaixar nas gavetas convenientes do marketing ou da divulgação, obras que só a ausência de uma “marca” reconhecível pelas pessoas leva a passar ao lado. Kubo e as Duas Cordas não é produzido pela Pixar nem pela Disney nem pela Blue Sky, dá dez a zero a À Procura de Dory ou à Idade do Gelo; vem da Universal, mas não traz o burlesco visual dos Mínimos nem a sitcom antropomórfica de A Vida Secreta dos Nossos Bichos. É aquela coisa que parece fazer muita confusão a muito executivo chamada “filme para a família”, que pode ser visto pelos miúdos e pelos graúdos sem que um deles se aborreça (coisa de que a Disney e a Pixar tiveram o segredo mas do qual se têm esquecido vezes demais).
Essa dimensão de “filme fora de gaveta” prolonga-se na perfeita união de técnica e narrativa, quase como as “duas cordas” que dão ao filme o seu título e um dos seus motivos recorrentes. São duas das três cordas do shamisen japonês com o qual o pequeno Kubo, órfão de pai que vive numa ilha remota com a mãe, ilustra as histórias que conta à aldeia próxima – dando-lhes literalmente vida através de delicadas peças de origami, papel colorido dobrado. Tal como Kubo manipula as cordas e o papel para contar a sua história, também Travis Knight e os animadores do estúdio Laika (Coraline e a Porta Secreta, ParaNorman) utilizam o stop-motion, a animação de miniaturas fotograma a fotograma (reforçada por elementos de animação por computador), para contar a sua história. É no contador, e no modo como ele conta, que reside a magia.
O virtuosismo formal da técnica não é um fim em si mesmo, mas sim um mero meio para atingir a justeza narrativa desta fábula, que recorre à própria estrutura da tradição oral para falar da família, da linhagem, da herança. As lendas que Kubo conta para deleite da aldeia não são tão inventadas como isso, como acabará por descobrir ao violar a primeira regra da reclusão imposta pela mãe. Ao ficar na rua para lá do pôr do sol, Kubo traz à luz os segredos escondidos da sua família e vê-se obrigado a encetar uma jornada de aprendizagem, à procura do lugar que é seu por direito numa família complicada e, por extensão, num mundo ao qual falta muitas vezes magia.
Kubo e as Duas Cordas é um bicho de requinte formal e visual quase insolente, no modo como se inscreve na grande tradição clássica do cinema (não só de animação). Tem uma dimensão de “artesanato”, de obra de arte completa onde uma peça a menos consegue destruir por completo o seu delicado equilíbrio – razão pela qual é essencial vê-lo na versão original falada em inglês (vozes de Charlize Theron, Matthew McConaughey ou Ralph Fiennes) e pela qual tentar sequer dobrá-lo para outra língua (por melhor que o trabalho de dobragem seja) está condenado à partida a minimizar o seu impacto. É um belíssimo filme, literalmente, para todos. Não podemos dizer o mesmo da maioria das coisas que andam a estrear.