O destino adestrado de Ana Mota Veiga
São os cavalos que servem de alicerce à vida e à carreira da única representante portuguesa na paradressage do Rio de Janeiro. Uma bênção construída em cima de uma adversidade.
“Eu, sem cavalo, acho que já não conseguia viver”. Dita assim, desprovida de contexto, a frase soa um pouco a cliché, mas basta conhecer o índice da vida de Ana Mota Veiga para perceber que o desabafo tem substância. Ontem como hoje, no picadeiro e fora dele, a outra metade da cavaleira que vai fazer no Brasil a estreia nos Jogos Paralímpicos tem estado sempre lá, para o que der e vier. Foi assim ainda antes de cumprir seis anos e continua a ser assim aos 42. No Centro Olímpico de Hipismo do Rio de Janeiro, a única representante portuguesa de paradressage tentará, no fundo, replicar a arte de serem um só, ela e o Convicto.
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“Eu, sem cavalo, acho que já não conseguia viver”. Dita assim, desprovida de contexto, a frase soa um pouco a cliché, mas basta conhecer o índice da vida de Ana Mota Veiga para perceber que o desabafo tem substância. Ontem como hoje, no picadeiro e fora dele, a outra metade da cavaleira que vai fazer no Brasil a estreia nos Jogos Paralímpicos tem estado sempre lá, para o que der e vier. Foi assim ainda antes de cumprir seis anos e continua a ser assim aos 42. No Centro Olímpico de Hipismo do Rio de Janeiro, a única representante portuguesa de paradressage tentará, no fundo, replicar a arte de serem um só, ela e o Convicto.
Há 1001 razões para um atleta se sentir realizado quando chega à última portagem da mais longa das auto-estradas. São anos de expectativa, de empenho, de sacrifício que acabam por ser compensados por uma simples credencial, um documento que atesta que estão, não há engano, entre a elite do desporto. Como tantos outros, o percurso de Ana também foi construído à base da ilusão e da esperança, mas, ao contrário de muitos outros, conheceu um volte-face que quase lhe arruinou os planos.
Foi em 2014, já a meio do ciclo de preparação para os Jogos. O Vento, o cavalo que então montava, companheiro de longos anos e de múltiplas batalhas, adoeceu, com uma cólica. “Foi para a clínica, foi operado, mas não sobreviveu”, desfia, recuperando um período difícil de digerir: “Foi mau, foi muito mau. É o momento em que tudo cai. Na altura pensei: ‘Pronto, acabou-se o Rio. Vou arranjar outro cavalo, mas escuso de pensar mais no Rio’”. O ranking que tanto trabalho lhe dera a consolidar entrava em queda livre.
Olhar para trás, naquele instante, significava constatar que as centenas de horas passadas no Centro Hípico da Costa do Estoril não iam ter o seguimento previsto. Olhar em frente trazia-lhe uma visão desfocada do futuro imediato. Abdicar da equitação estava fora de hipótese, mas a consciência de um brusco recomeço deixava pouca margem para optimismo. A prioridade das prioridades era encontrar um novo “parceiro”, sem exigências, sem pressões. A sucessão aconteceria de forma natural.
“A notícia da morte do Vento circulou entre a comunidade equestre e houve um criador que entrou em contacto comigo, dizendo que tinha um cavalo que achava adequado”. Era um puro-sangue Lusitano da Coudelaria Lobo de Vasconcellos, de Évora. Um cavalo com o perfil indicado para a paradressage. Ana Mota Veiga sintetiza: “Têm de ser muito calmos. Como não tenho tanta agilidade a segurar o cavalo, se eles arrancam lá vou eu rumo ao chão. Não podem ser cavalos que aquecem por tudo e por nada”.
Comprovou-se: o Convicto preenchia todos os requisitos. Estava na hora de deitar mãos às rédeas. A adaptação revelou-se mais rápida do que projectara e o calendário de provas internacionais que tinha estipulado manteve-se relativamente inalterado. “Continuei a competir lá fora e qual não foi o meu espanto quando consegui o apuramento”, desabafa, sorridente, a cavaleira que teve o primeiro contacto com o meio antes de entrar sequer para a escola primária.
Para compreendermos o peso da equitação na vida de Ana é preciso viajar no tempo e no espaço, concretamente até 1974 e até Manteigas. Foi lá que nasceu, fruto de um parto prematuro e com paralisia cerebral, mas foi na Suíça (a cavaleira tem dupla nacionalidade) que ouviu o médico recomendar-lhe algo que em Portugal não passava de um corpo estranho: hipoterapia. A mãe, que sempre gostou de animais e já sabia montar, não pensou duas vezes: comprou um cavalo e em breve estava a iniciar uma espécie de “hipoterapia caseira” na Serra da Estrela, como se estivesse a adestrar o destino.
O que começou por ser um recurso sugerido para fins terapêuticos rapidamente se tornou numa paixão. A vida continuou o seu caminho inexorável, a escolaridade obrigatória foi cumprida em Manteigas e o 12.º ano concluído na Guarda. Seguiu-se uma viagem até Coimbra, onde se licenciou em Audiologia, e mais tarde uma deslocação para Lisboa, para trabalhar na TAP. É, de resto, entre os gabinetes da operadora aérea (entra às 8h e sai às 16h30) e o picadeiro em Cascais que hoje divide o seu tempo, sempre à procura de uma aberta para treinar e a aproveitar as férias para competir além-fronteiras.
A semana que antecedeu a viagem para o Brasil não fugiu à regra e foi numa dessas manhãs que o PÚBLICO a encontrou, afável e disponível, a preparar-se para mais uma sessão de treino no Centro Hípico da Costa do Estoril. Mesmo que não a conhecêssemos, haveria sempre um autocolante nas malas de transporte para nos mostrar o caminho: “Eu vou ao Rio”. No caso em apreço, faria mais sentido usar a primeira pessoa do plural, mas o slogan padronizado não permite ajustes de circunstância. Ainda dentro da box, o Convicto (inquilino que tem o Raio Z e o Waiting Guest como vizinhos) aguarda, paciente.
É Hugo Serrenho, treinador que tem acompanhado a evolução da cavaleira portuguesa, quem conduz o cavalo até ao picadeiro para um conjunto de exercícios de aquecimento (e desgaste) antes de Ana poder montá-lo. Ao olhar para a dupla, mostra-se relativamente optimista com o progresso que tem sido feito depois da mudança de agulha forçada: “Ela tinha uma grande relação com o Vento e a adaptação, ao início, é um pouco mais difícil porque se está sempre a pensar no cavalo que se tinha. Mas nos últimos meses tem havido sintonia e a relação que está a ser criada está a ser intensa”.
De resto, os indicadores disponíveis são promissores. Em Março, Ana Mota Veiga viajou para o Qatar para competir num campeonato internacional e foi recompensada com um terceiro lugar, depois de, no ano anterior, ter conseguido uma medalha de prata em Itália. A falta de concorrência dentro de muros (é tetracampeã nacional no grau 1A) e a necessidade de pontuar fora deles para poder subir na hierarquia mundial a isso obrigam. A isso e a um esforço financeiro que ronda os 5000 euros por prova, contabilizando essencialmente o alojamento e o transporte.
Essa é uma fatia decisiva da equação. As viagens, especialmente as mais longas, podem prolongar o período de readaptação do cavalo, mas, até ver, o Convicto tem estado à altura das exigências: “Ele viaja bem. Em Janeiro, nessa prova em que fomos convidados para ir ao Qatar, ele foi de avião e viajou bem. Depois de aterrar, ficou um bocadinho em baixo e eu até fiquei preocupada, mas no dia seguinte já se podia montar”, relata. Desta vez, a logística foi um pouco diferente: os cavalos dos concorrentes europeus convergiram previamente para a Bélgica e foi a partir de lá que partiram, em conjunto, rumo ao outro lado do Atlântico.
E o que espera Ana Mota Veiga encontrar no Rio de Janeiro? “Já fui a vários Campeonatos da Europa, fui a um Campeonato do Mundo [em França, concretamente na Normandia] e ainda tentei ir aos Jogos de Londres, mas não consegui. Estou a contar com uma concorrência forte, dos ingleses, sobretudo, e também sei que Singapura tem uma muito boa cavaleira”. Já a partir do dia 12 poderá comprovar o diagnóstico in loco.
Já montada no Convicto, com o treino a decorrer, a atleta portuguesa vai cumprindo o guião debaixo de um sol atrevido. “Agora faz essa diagonal em passo livre”, indica Hugo Serrenho, enquanto avalia “a régua e esquadro” a qualidade da trajectória. “Muito bem, Ana”. Depois da sessão, o treinador há-de lançar um olhar sobre o concurso que se segue, quem sabe se o mais importante da carreira. “Do que tenho visto, dos vídeos que tenho observado dos outros concorrentes, posso dizer que, se o Convicto estiver num bom dia, podem estar muito perto dos cinco, seis primeiros”.
Um dia como aquele que viveu o antecessor em Girona, há quatro anos. É para essa prova que Ana Mota Veiga nos remete quando lhe pedimos para repescar a melhor prestação até à data: “Foi a última prova que fiz para me qualificar para Londres, com o Vento, e no último dia estava mau tempo, uma daquelas tempestades de neve, mesmo. Eu acabei a prova completamente gelada, larguei logo as rédeas e disse: ‘Vai cavalo, vai’. Mas ganhei”.
Na sela do anterior cavalo, saltou até ao 50.º lugar do ranking. Agora, surgirá no Brasil na 85.ª posição da classificação paralímpica de paradressage. Para lá chegar, porém, teve de ir suportando toda a uma estrutura de custos que se torna pesada e é por isso que agradece o apoio, ainda que insuficiente, que é dispensado aos atletas: “Tenho uma bolsa paralímpica, que é uma ajuda e não desvalorizo, mas não cobre os gastos, nem pouco mais ou menos. Só a pensão do cavalo são 600 euros por mês, sem contar com ferrações ou despesas de veterinário, vacinas, desparasitações”, exemplifica.
Longe vão os tempos em que competia com um cavalo emprestado, que montou para participar no primeiro campeonato nacional, em 2009. Hoje, depois de subidos uns quantos degraus na escadaria equestre, conta com uma retaguarda mais de acordo com as suas ambições e, acima de tudo, com a boa vontade de muita gente. Hoje, mais do que nunca, dá importância a aspectos que outrora julgava laterais: “É muito importante o treino mental, não só porque é uma ajuda relevante para o treino físico mas porque é uma ferramenta para a gestão do stress”.
Por esta altura, dia da cerimónia de abertura dos Jogos, Ana já está devidamente acomodada na aldeia olímpica. Já se reencontrou com o Convicto, já lhe sentiu o estado de alma. Já trocou umas impressões com Margarida, a tratadora destinada a acompanhar o dia-a-dia do puro-sangue Lusitano. Quando entrar em cena, a cavaleira levará todo um fardo de esperança assente no dorso do parceiro de actuação. E, preso no plastron, o pin dourado que o pai lhe ofereceu para a ocasião.