Uma máquina de fazer utopia que nasceu em Luanda

Exposição Portugal, Portugueses no Museu Afro-Brasil quer homenagear uma das principais raízes da cultura brasileira. Leva obras de mais de 40 artistas a São Paulo.

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Emanoel Araújo trocou-nos as voltas e afinal não vai falar connosco no Museu Afro-Brasil. Estamos no núcleo do museu paulista dedicado aos artistas negros que fizeram o barroco brasileiro (e não foi só o Aleijadinho...) — que visitámos antes da entrevista marcada para daqui a pouco —, quando recebemos o  recado do director desta instituição para nos encontrarmos em sua casa.

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Emanoel Araújo trocou-nos as voltas e afinal não vai falar connosco no Museu Afro-Brasil. Estamos no núcleo do museu paulista dedicado aos artistas negros que fizeram o barroco brasileiro (e não foi só o Aleijadinho...) — que visitámos antes da entrevista marcada para daqui a pouco —, quando recebemos o  recado do director desta instituição para nos encontrarmos em sua casa.

O director do museu dedicado à história da cultura negra do país, situada no Parque Ibirapuera, prepara um almoço para os artistas portugueses que estão em São Paulo e quer juntar-nos todos à mesa.

Não são os cinco que participam na Bienal de São Paulo, mas alguns dos 42 que o museu vai juntar na exposição Portugal, Portugueses, Arte Contemporânea, a inaugurar esta quinta-feira ao final da tarde, e cujo cartaz com uma fotografia de Helena Almeida já se pode ver pendurado cá fora no edifício também desenhado por Oscar Niemeyer, tal como o que alberga a bienal que quarta-feira abriu as portas ao público.

Acendem-se as luzes para vermos em contra-relógio, antes do almoço, a exposição ainda em montagem e o funcionário do museu que nos acompanha não precisa de olhar para as folhas de papel A4 que identificam provisoriamente os artistas para falar da peça de Yonamine. “Cheira a torradas”, apontando para a grande instalação do artista angolano intitulada Pão Nosso de Cada Dia, que junta 3000 fatias de pão torrado com alguns retratos gravados a chapa quente.

São quase 200 obras no total, se contarmos, por exemplo, todos os trabalhos que compõem as séries, como as fotografias de grande formato que fazem parte do trabalho Looking Back de Helena Almeida. A exposição é divulgada como uma das maiores que nos últimos anos é dedicada à arte contemporânea portuguesa em São Paulo.

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Looking back #6 de Helena Almeida Galeria Filomena Soares

Portugal multicultural

A moradia dos anos 20 do século XX não é longe e chegamos ainda antes do próprio director, que tinha um compromisso ligado “à loucura” dos dias da bienal. A casa, aliás, parece uma continuação do próprio museu, a que Emanoel Araújo — que é também um conhecido escultor e dirigiu durante anos a Pinacoteca de São Paulo — doou duas mil peças. Há cadeiras D. José feitas em madeira de jacarandá, quatro evangelistas pintados por José Joaquim da Rocha (um mestre do século XVIII da Baía), uma Alegoria da América do século XVI italiano, um São Benedito negro ao lado de um Cristo Atado à Coluna, muito mobiliário moderno e pintura contemporânea, “muita tralha”, nas palavras de Emanoel Araújo. A diferença é que aqui há muita coisa europeia, sem ligação à cultura negra do Brasil.

Vamos para a cozinha para acabar uma moqueca baiana, pede o dono da casa, enquanto explica a exposição de que é curador. “Faz parte de uma trilogia, que queria fazer há muito tempo, e que junta África, Brasil e Portugal.” A primeira, chamada Africa, Africans, mostrou arte contemporânea do continente africano no ano passado e agora segue-se a dedicada a Portugal, enquanto em 2017 será a vez da arte indígena brasileira. “A de Portugal é muito ambiciosa e estou a trabalhar nela há dois anos. É toda feita com recursos de São Paulo. Estou partindo do pressuposto que este é um Portugal multicultural, que tem fundamentos em África, na América do Sul e no Oriente. A exposição se organiza com os portugueses africanos, com os portugueses brasileiros e com os portugueses portugueses.”

Num comunicado de imprensa da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, a que o museu pertence, escreve-se que esta trilogia quer homenagear “as principais raízes da cultura brasileira — africana, portuguesa e indígena —, à luz de uma leitura contemporânea nas artes visuais”. “Por muitas razões, a arte portuguesa tem um leque enorme de situações que nos comovem, talvez porque nela existem resquícios de África, do Brasil e dela mesma, naturalmente”, diz também no mesmo texto Emanuel Araújo. “Esta exposição celebra uma união inevitável de encontros e desencontros do que foi e do que é a nossa formação como povo, descoberto, colonizado e independente.”

No primeiro grupo dos portugueses africanos, ou vice-versa, está Yonamine e Francisco Vidal, mas também podem figurar José de Guimarães, que tem “profundas ligações a África”, ou mesmo Vasco Araújo, que reflecte sobre o passado colonial. No segundo, o director inclui António Manuel, Fernando Lemos, Artur Barrio, Orlando Azevedo, Ascânio MMM e Joaquim Tenreiro, mas não Vieira da Silva, apesar do longo período que aqui viveu.

No último grupo, encontra-se a grande maioria dos artistas seleccionados, onde Emanoel Araújo destaca uma presença “poderosa” de mulheres, cuja génese recua até ao modernismo: Vieira da Silva, Helena Almeida, Ana Vieira, Paula Rego, Lourdes Castro (a única artista que também está na bienal), Joaquim Rodrigo, Cabrita Reis, Croft, Julião Sarmento, Loureiro, Albuquerque Mendes, Cristina Ataíde, Didier Faustino, Gonçalo Pena, Joana Vasconcelos, João Fonte Santa, João Pedro Vale & Nuno Alexandre, Molder, Manuel Correia, Michael de Brito, Miguel Palma, Nuno Ramalho, Nuno Sousa Vieira, Paulo Lisboa, Pedro Barateiro, Pedro Valdez, Rui Calçada Bastos, Sofia Leitão, Teresa Braula, Tiago Alexandre e Vasco Futscher.

Mais uma etiqueta

Numa das pontas da mesa da sala de jantar, discute-se o conceito de nacionalidade, a sua operacionalidade e mesmo o seu sentido. Nuno Sousa Vieira,  João Pedro Vale, Nuno Alexandre e Francisco Vidal dizem que é apenas mais uma etiqueta, como as questões de género, que às vezes impede de olhar para outras problemáticas. Mas há outras, como explica Sousa Vieira, a quem estão sempre a pôr no grupo dos “formalistas”.

Para Francisco Vidal, que tem as duas nacionalidades, a sua relação com Angola foi fundamental para chegar ao lugar onde se encontra hoje como artista. No Museu Afro-Brasil apresenta a obra Utopia Luanda Machine, uma performance que começou a ser feita há três anos em Luanda, mas já passou pela Expo de Milão, pela Bienal de Veneza, nos pavilhões de Angola, e por Lisboa. Ele que nasceu em Lisboa e passou por Nova Iorque e Berlim, precisou de voltar a Luanda, à terra do pai, onde ensinou desenho numa faculdade de arquitectura, para também poder perceber e trabalhar com os códigos da cultura angolana.

Mas como é que se ensina desenho numa escola em que não há papel cavalinho? Como é que se ensina numa escola sem biblioteca e numa cidade sem museus? “Quando voltei para Lisboa, já não conseguia comprar telas e incorporei estas dificuldades, que eu nunca tinha passado, no meu trabalho.”

A sua obra Luanda Utopia Machine, a primeira que encontramos quando entramos na exposição Portugal, Portugueses, procura ser um espaço utópico, um “do it yourself”, que passa pelo fabrico de papel reciclado durante a exposição, como aprendeu a fazer com os seus alunos para estes terem onde desenhar. Mas além desse fabrico, desse atelier-escola, que ambiciona montar no Museu Afro-Brasil em Janeiro quando estiver mais calor, a performance é também Francisco Vidal “conseguir fazer [no futuro] uma escola, um museu, uma galeria, espaços diferentes de trabalho dos artistas, como a Bauhaus.” Em Luanda? “No mundo. É a utopia de poder ter uma vida criativa e feliz. Em Luanda ou noutro lugar qualquer.” Pode ser em Cabo Verde, o país de origem da sua mãe.

A ideia, essa utopia, é transportada pelo gesto da pintura. Formalmente, são padrões com flores de algodão e essas flores, por sua vez, transportam as memórias dos campos de algodão, da escravatura. Mas também da economia africana, através do traje tradicional, e Franscisco Vidal aponta para si próprio, para o seu blazer feito com um tecido africano estampado.

Quanto às nacionalidades, um dos muitos planos de Francisco Vidal, é obter mais uma, desta vez cabo-verdiana.