É tempo de sermos utópicos (outra vez)
A utopia conduz sempre ao totalitarismo? Ou a obra de Thomas More abre-se hoje a leituras diferentes das que foram feitas no século XX? O Teatro Maria Matos dedica um ano de programação a procurar a resposta para estas e muitas outras perguntas no ciclo Utopias que começa esta quinta-feira.
Vale a pena regressar à obra fundadora do pensamento utópico, o livro Utopia, escrito no século XVI pelo britânico Thomas More? O sociólogo e cientista político holandês Merijn Oudenampsen pensa que sim e por isso o Teatro Maria Matos convidou-o para vir a Lisboa e, no início do ciclo Utopias, apresentar a sua leitura do pensamento de More.
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Vale a pena regressar à obra fundadora do pensamento utópico, o livro Utopia, escrito no século XVI pelo britânico Thomas More? O sociólogo e cientista político holandês Merijn Oudenampsen pensa que sim e por isso o Teatro Maria Matos convidou-o para vir a Lisboa e, no início do ciclo Utopias, apresentar a sua leitura do pensamento de More.
Na conferência Em Defesa da Utopia, dia 15 de Setembro, às 18h30, na sala principal do Maria Matos, com entrada livre, Merijn Oudenampsen explicará porque é que considera que a mensagem de More tem sido mal interpretada, e porque é que não se trata da defesa de um modelo totalitário mas sim de uma forma de criticar o aqui e agora.
Numa entrevista ao Ipsílon, por email, Oudenampsen antecipa algumas das ideias que abordará em Lisboa e fala do passado e do presente das ideias utópicas.
Temos hoje as condições necessárias para ler e interpretar Utopia, de Thomas More, de uma forma diferente do que fizemos no século XX?
Acredito que sim. Durante muito tempo a Utopia de More foi lido no contexto da Guerra Fria. Tanto Marx como Engels ou Kautsky consideravam More um herói comunista. Depois da Revolução Russa, Lenin ordenou a alteração de um monumento aos czares, a dinastia dos Romanov. Foi alterado para honrar os pensadores que mais tinham contribuído para a libertação da Humanidade. Podemos dizer que More pertencia à galeria dos famosos do comunismo.
Por isso, Utopia foi interpretado politicamente em duas direcções muito diferentes. Para os socialistas e comunistas que tomaram a obra como fonte de inspiração para o seu movimento, era importante realçar o realismo da alternativa utópica e minimizar o subtexto satírico e irónico do livro. Um outro mundo era realmente possível!
Para os críticos da Guerra Fria era também importante sublinhar uma interpretação literal da Utopia de More, neste caso apontando para os aspectos totalitários da sociedade por ele descrita. O famoso autor Solzhenitsyn argumentou que More já tinha visto que o comunismo implicava trabalho forçado e escravatura.
Agora que a União Soviética desapareceu é possível reconsiderar o trabalho de More num contexto menos carregado. Tem importância simbólica o facto de [o actual Presidente russo, Vladimir] Putin ter ordenado a destruição do monumento aos pensadores revolucionários e tenha mandado instalar no seu lugar uma réplica da homenagem original aos Romanov.
O que é que o livro nos pode ensinar?
Trata-se de um livro muito inteligente, radical e cheio de humor. A mensagem essencial tem a ver com o nosso envolvimento intelectual com a política. O narrador, Rafael Hitlodeu, sente-se frustrado com os problemas sociais que vê na Grã-Bretanha do século XVI. Tem ideias radicais: se queremos prevenir o roubo e o crime, não vale a pena aumentar o nível dos castigos, é preciso fazer alguma coisa relativamente às raízes do crime. Mas ninguém está preparado para ouvir ideias radicais. Então, numa passagem bastante misteriosa, Rafael é aconselhado a mudar de abordagem e a adaptar a sua crítica aos desejos da audiência.
Pouco tempo depois, Rafael começa a falar sobre a ilha de Utopia, que não existe. A lição a retirar daqui é a de que argumentos banais para a melhoria da sociedade muitas vezes não convencem as pessoas, que estão habituadas ao status quo. Em vez disso, o intelectual tem que apelar à imaginação da sua audiência e fazê-la acreditar que existem de facto alternativas. Claro que More usa o humor e a sátira para abalar a credibilidade da sociedade utópica. A ideia é muito mais estimular a imaginação do que defender uma única solução, como os críticos de More durante muito tempo disseram.
Como é que era possível que na ilha de Utopia coexistissem ideias de uma sociedade democrática, preocupada com o igualitarismo, e outras completamente anti-democráticas? É um reflexo da época em que o autor escreve? Teria sido possível More ir mais longe? Ou a intenção dele era deixar-nos um livro aberto a interpretações?
Em alguns aspectos – a escravatura, o sistema patriarcal e a violência colonial – Utopia não é diferente da Europa do século XVI. Noutros aspectos, antecipa algumas das conquistas dos modernos Estados de bem-estar social. E, ainda noutros aspectos, a natureza altamente organizada e omnipresente do Estado em Utopia faz-nos lembrar os regimes totalitários do século XX. E aqui surge a muito debatida questão de saber se o próprio More via Utopia como uma sociedade ideal. Em vários momentos do texto, More diz explicitamente aos leitores para não levarem as histórias de Rafael de forma demasiado literal. Alguns dos aspectos da sociedade utópica são descritos por More como absurdos, ao mesmo tempo que ele propõe que outros possam servir como inspiração para mudar coisas nas nossas sociedades. Ele deixa isso para os leitores.
A utopia pode ser perigosa, levando-nos a acreditar que é possível mudar a sociedade tendo como base um modelo fechado?
Há dois tipos de pensamento utópico. Existe a utopia como modelo fechado de uma nova sociedade, criada por algum tipo de perito. Esse tipo de pensamento aplicado à política geralmente resulta em algo anti-democrático. E há outra versão, à qual se chama por vezes utopismo iconoclástico. Neste, o objectivo mais importante não é estabelecer um modelo perfeito de uma nova sociedade, mas criar um imaginário a partir do qual seja possível criticar e melhorar o presente. Esse tipo de pensamento utópico é, desde há centenas de anos, fundamental para as políticas democráticas. A Utopia de More faz, claro, parte desta segunda via. Não é por acaso que se chama utopia, que significa um não-lugar. Não é um modelo fechado. É mais como as famosas histórias de Jonathan Swift: parte satíricas, parte sérias.
O pensamento utópico e o racionalismo são opostos?
Não necessariamente. Há, de facto, uma relação entre o pensamento utópico e a ideia racionalista de que a sociedade pode ser totalmente controlada pela construção do Homem. Há um aspecto profundamente tecnocrático em alguns tipos de pensamento utópico. Mas o contrário é também verdadeiro, sejam os primitivistas a viver numa comunidade algures no meio da natureza ou seitas espirituais a construir a sua própria micro-sociedade, o utopismo pode ser uma revolta contra a tecnocracia e o racionalismo.
A ideia de que é possível implementar a utopia é uma contradição?
É um paradoxo engraçado porque quando se começa a implementar a utopia, ela deixa de ser utopia. Essa contradição também contagia o trabalho de Marx. Ele recusa-se a escrever receitas para o futuro ao mesmo tempo que propõe uma utopia comunista que deixa quase por definir. Marx acreditava, claro, que a sua alternativa utópica precisava de emergir das condições da sociedade.
O grande drama do comunismo não é tanto a realização da utopia, mas sim o ter sido adiada indefinidamente. O socialismo existente na realidade era suposto ser uma fase de transição para o comunismo. Na União Soviética havia uma piada cruel que dizia que a linha de transição entre um e o outro corria ao longo dos muros do Kremlin.
Dos diferentes modelos utópicos que surgiram depois de More quais lhe interessam mais?
Há muitas correntes utópicas que são muito fascinantes. Acho fascinante descobrir que as comunidades propostas pelo socialista utópico [o filósofo francês, Charles] Fourier, os chamados falanstérios, continham ideias de igualdade entre os sexos e amor livre. Há, logo no século XIX, uma prefiguração do Woodstock, das comunidades hippies dos anos 60 e 70.
Falando de correntes mais contemporâneas, muita da literatura de ficção científica é claramente utópica. Cresci a ler livros para crianças nos quais o planeta tinha sido parcialmente destruído por uma guerra nuclear e as mulheres tinham decidido tomar o poder e criar uma sociedade matriarcal ecológica. As ideias utópicas estão por todo o lado.
O que pensa dos movimentos que existem hoje? Acha que se organizam sobretudo para combater o capitalismo ou que há sistemas alternativos válidos? Aquilo que vemos hoje é mais o tipo de utopia do modelo fechado ou a utopia como crítica da sociedade existente?
Se olharmos para movimentos como o Occupy ou os Indignados vemos que estão mais próximos do espírito de More do que do modelo fechado. Não quero com isto dizer que são movimentos satíricos, mas sim que o método de organização baseado na democracia directa que preconizam não deve ser visto como uma alternativa para o nosso actual sistema democrático, em profunda crise. São, sobretudo, uma forma de imaginar um mundo mais democrático e de os que neles participam tentarem perceber como seria tomar parte num processo realmente democrático. E, a partir daí, proporem melhorias concretas.
Existe uma dimensão utópica no capitalismo e no neoliberalismo?
Tanto um como o outro têm aspectos profundamente utópicos. [Friedrich] Hayek, que é por muitos considerado o pai fundador do neoliberalismo, escreveu [em 1949] um dos seus textos mais influentes sobre o utopismo: Os Intelectuais e o Socialismo. Hayek argumenta que os neoliberais têm a aprender com os socialistas e devem ser claramente utópicos. A ideia de um mercado livre sem problemas e sem a intervenção do Governo é utópica. Porque a burocracia governamental – basta pensarmos nas famosas regulações da União Europeia – é necessária precisamente para manter o mercado a funcionar. O aspecto utópico do neoliberalismo é muito funcional. A culpa por qualquer tipo de falha do mercado pode ser sempre atribuída à intervenção governamental, o que leva a novas tentativas de libertar o mercado. O mesmo pode ser dito sobre o capitalismo e a noção de crescimento económico ilimitado.
O facto de o capitalismo ser um sistema mais diluído comparado com um regime político cria problemas diferentes a quem o tenta combater. Acha que é possível – seguindo a lógica da utopia como crítica da sociedade – aspirar-se à criação de um capitalismo “melhor” em vez de colocar o foco na mudança do sistema?
Muitos estão convencidos de que é inútil no actual clima político fazer uma distinção entre políticas reformistas e revolucionárias. É agora mais fácil, como disse há algum tempo o crítico cultural Fredric Jameson, imaginar o fim do mundo num enorme desastre, do que o fim do capitalismo. A oposição entre reforma e revolução era outra das heranças da Guerra Fria.
Actualmente, penso que tentativas para pensar de forma transversal em termos de reformas radicais, que alterem o equilíbrio de poder em favor das políticas emancipatórias, são mais relevantes. Para a nossa geração, ideais de longo prazo de um sistema melhor deram lugar a preocupações mais imediatas sobre como lidar com as crises no que diz respeito ao clima, ao sistema económico ou à situação no Médio Oriente.