A arte de pensar como vamos viver em conjunto
Uma programação como a do ciclo Utopias nasce de uma visão do mundo que é política. Os programadores Mark Deputter e Liliana Coutinho explicam a importância de um teatro se oferecer como espaço de debate sobre a forma como vivemos.
Colocar a utopia no centro da programação durante um ano é um acto político? E cabe a um teatro municipal fazer política?
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Colocar a utopia no centro da programação durante um ano é um acto político? E cabe a um teatro municipal fazer política?
“A nossa escolha de temas e a maneira de os tratar não tem uma agenda em termos de política partidária, mas nasce de uma visão do mundo”, diz o belga Mark Deputter, director artístico do Teatro Maria Matos, em Lisboa, e comissário, com Liliana Coutinho, do ciclo Utopias, que arranca no dia 8 e se prolonga por um ano. “Nasce de não querermos aceitar a ideia de que estamos a viver no melhor dos mundos e de acreditarmos que o mundo pode ser um lugar melhor”.
E aqui, acrescenta Liliana Coutinho, “a utopia surge-nos como um pretexto e uma oportunidade para pensarmos o sítio onde vivemos e o tempo presente”. Partem de duas balizas históricas – os 500 anos da publicação de Utopia, de Thomas More, e os 100 anos da Revolução Russa – “não para lhes fazer uma homenagem nem para revitalizar um possível pensamento utópico, mas para ver que se calhar existe outra forma de lidar com a utopia que não é a que habitualmente usamos”.
A ideia de utopia como um modelo acabado que se tenta pôr em prática na realidade não faz sentido. “Uma das nossas questões de programação era questionar se esta seria a única forma de lidar com a utopia”, continua Liliana. “ Utopia pode ser pensar a construção de um bom lugar, que é algo que continua a estar na ordem do dia. E nós temos responsabilidade em continuar a pensar. É manter a ideia de que nós, enquanto programadores e cidadãos, temos essa possibilidade de não nos acomodarmos ao estado das coisas.”
A esse interesse do Maria Matos corresponde hoje, nos meios artísticos e intelectuais, uma vontade renovada de voltar a estes temas, explica Mark. “Nos últimos dez, 20 anos começámos a ver que este mundo em que o realismo é a palavra de ordem na arena política e no qual existe um mercado liberal em que uma mão invisível regula tudo, este mundo não está a funcionar assim tão bem. E sentimos a necessidade de voltar a pensar o mundo para além da ideia do realismo.”
Enquanto teatro, e portanto espaço público, o Maria Matos entende que “as artes têm algo a dizer sobre o mundo e podem trazer-nos um conhecimento que é relevante também pela sua capacidade utópica”. Os teatros públicos, diz o director artístico, são geralmente considerados espaços neutros, que organizam o contacto entre o artista e o público, mas que não tomam posição. “Nós queremos ter outra forma de oferecer esse serviço público, criando, em conjunto com os artistas, pensamento sobre o mundo.”
E, reconhece, isto é possível em Lisboa porque é uma cidade grande, onde existem outros teatros municipais com outro tipo de propostas e de programação. Daí sentirem que têm liberdade para assumir “uma programação com uma vocação política, no sentido lato da palavra”. Há, sublinha Liliana, “uma vontade clara de discutir ideias e uma consciência de que nada é simplesmente artístico, de que os projectos artísticos existem no mundo”.
Neste posicionamento há, talvez, um regresso a uma certa ideia do papel do teatro e dos artistas, uma vontade de intervenção que marcou a década de 1970 e que se diluiu mais nas décadas seguintes. “Essa década interessa-me bastante, é um momento onde essa relação entre arte e vida em geral foi muito explorada, lançando questões às estruturas de representação”, afirma Liliana. “O que aconteceu nos anos 1980 e 1990”, prossegue Mark, “foi uma necessidade de voltar a pensar a arte como arte, uma reacção a um teatro que, anteriormente, estava muito ao serviço da política e da propaganda, algo que se esgotou no final dos anos 1970”.
Deu-se, nota, uma mudança clara. “Há cada vez mais artistas com necessidade de colocar o seu trabalho na sociedade civil. E há cada vez mais actividade política no terreno que extravasa a política partidária”. Um dos trabalhos do Maria Matos ao organizar um ciclo como o Utopias é também ajudar a criar pontes entre os artistas e outros actores da sociedade civil, organizações, activistas, pensadores.
“É necessário que esse espaço político seja cada vez mais transversal”, defende Liliana. “Existe uma urgência em fazer estas ligações, em perceber como é que a política se pode fazer fora dos espaços habituais, porque é algo que diz respeito a todos nós. A política é a arte de pensar como vamos viver em conjunto. Não sei se é uma receita para todos os teatros, mas é a nossa posição”.
Esta é, efectivamente, a linha seguida pelo Teatro desde há algum tempo e que passou por ciclos mais pequenos como o que se centrou no movimento Transição, ou o ciclo As 3 Ecologias ou o Gender Trouble. O que Mark e Liliana sentem é que este construir de pontes ajudou a trazer novos públicos ao teatro, pessoas que chegaram não tanto pelo lado artístico mas pelas preocupações políticas ou sociais.
“O que estamos a dizer”, conclui Mark, “é que temos que continuar a pensar sobre as coisas, a pensar novas ideias. Este desafio faz parte da arte, é quase o ADN da criação. Estamos a viver num mundo muito diferente do de há 20 anos e há problemas grandes que precisam de respostas, desde as muito locais às muito globais. E essa é uma mudança de paradigma na qual as artes estão a participar.”