O arquitecto que se apaixonou por uma fábrica abandonada

A arquitectura é feita de encontros e o arquitecto precisa de tempo para ver, ouvir e sentir os locais e procurar a fina teia de relações que neles existe. É assim que Juan Domingo Santos, que veio a Lisboa para a conferência Docomomo, vê o seu trabalho.

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O espanhol Juan Domingo Santos – que fez com Álvaro Siza um projecto para o átrio do Alhambra – tem desde 1986 o seu atelier de arquitectura na torre da antiga fábrica de açúcar de San Isidro, uma enorme estrutura industrial abandonada à entrada de Granada. Era um lugar que via quando passava de comboio e pelo qual se apaixonou de tal maneira que um dia saltou o muro e decidiu ocupar a torre. Nunca mais a deixou.

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O espanhol Juan Domingo Santos – que fez com Álvaro Siza um projecto para o átrio do Alhambra – tem desde 1986 o seu atelier de arquitectura na torre da antiga fábrica de açúcar de San Isidro, uma enorme estrutura industrial abandonada à entrada de Granada. Era um lugar que via quando passava de comboio e pelo qual se apaixonou de tal maneira que um dia saltou o muro e decidiu ocupar a torre. Nunca mais a deixou.

Em Lisboa a convite do Docomomo Internacional (Documentação e Conservação do Movimento Moderno) – cuja 14ª conferência decorre na Fundação Calouste Gulbenkian até ao dia 9 –, Juan Domingo Santos contou ao PÚBLICO a história desse encontro, que já existe em filme, na película Un Encuentro (2009), de Juan Sebastián Bollaín.

Porque é que a fábrica o conquistou?
Eu estudava em Sevilha, vivia em Granada e fazia a viagem de comboio frequentemente. A fábrica atraía-me porque era sempre o primeiro lugar que via quando saía e o último quando entrava. Via-o abandonado, com a torre junto ao caminho-de-ferro, era um sítio misterioso. Um dia, quando acabei os estudos, decidi entrar na fábrica. Era como uma pessoa que vês com frequência durante seis anos e um dia decides parar e falar com ela, conhecê-la.

Quando decidiu ocupar a torre, foi um statement, uma forma de dizer ‘é possível fazer isto’?
Não foi uma reivindicação, foi mais um desejo, que acaba por mostrar que nesses espaços se pode viver sem necessidade de os transformar. Foi o desejo de habitar aquele lugar, um espaço fantástico, com janelas de cinco metros de altura.

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A fábrica transformada em atelier dr

Quando cheguei, pensei, como acontece com os arquitectos, na necessidade de transformar, de intervir, mas com a passagem do tempo fui-me apercebendo de que a transformação devia ser mínima. Percebi que podia sentar-me e escutar o que o lugar me queria contar, as paredes, a passagem do tempo, a passagem do comboio. Eu era alguém que chegava e que passava a fazer parte daquilo.

É uma aprendizagem muito boa para um arquitecto: pode-se intervir sem intervir, pode-se actuar sem projectar no sentido habitual. A ocupação é também uma forma de conhecimento e de transformação. Isso serviu-me para a minha carreira. Moldou a minha forma de fazer projectos. Acredito que há uma fina rede de fios que tecem as relações mais insuspeitas. E penso que a fábrica estava à espera que eu passasse por ali.

É uma lição de humildade perante um edifício.
Diz-se que a arquitectura tem que intervir, mas em muitos casos não é assim. Aqui é o contrário. É saber equilibrar um estado de continuidade com as coisas. E quando a arquitectura se converte numa experiência, tudo é mais natural. Quando a intervenção acontece com o arquitecto fechado no seu estúdio, não é o mesmo.

É uma abordagem muito poética, mas não podemos usá-la em todas as situações. Que outras medidas são necessárias paras salvar edifícios abandonados?
Não nos ensinaram a apreciar o património, e ele transformou-se num problema. Temos que aprender a relacionarmo-nos com ele de uma maneira menos dramática e ter uma relação mais pessoal, subjectiva. Foi o que eu tentei com a fábrica. O património industrial permite isto, oferece uma liberdade que uma catedral do Renascimento ou um edifício da Roma Antiga não permitiria.

A arquitectura deve emocionar, experimentar e resolver problemas. E normalmente os arquitectos limitam-se a resolver o problema dos usos e esquecem a emoção e a experimentação. O que aprendi na fábrica foi uma maneira de me relacionar com as coisas. É uma experiência vital sobre o património que me deixa seguir uma linha mais descontraída, uma espécie de ignorância propositada.

No projecto que fiz para o Museu da Água de Lanjarón, num antigo moinho abandonado, foi a água do rio e as fotografias que me davam os vizinhos que acabaram por me dar as soluções. A forma como a água circula pelo museu resulta do facto de um agricultor desviar a linha de água para regar o campo – quando ele corta a água para fazer a sua rega, o museu assume um estado, quando o agricultor deixa de regar, a água inunda o museu. São coisas muito quotidianas que geram as soluções finais da arquitectura.

Com o Alhambra [complexo de arquitectura árabe dos séculos XIII-XIV, em Granada, Património da Humanidade], estamos noutro nível de património. Como faz para o abordar?
Quando era pequeno, o meu pai trabalhava como engenheiro num estúdio no Alhambra. Eu ia com ele e aprendi esta ideia de que aquela é uma arquitectura que se relaciona com os sentidos. Normalmente, só usamos a visão. No Alhambra, há o som, o tacto, os cheiros, a temperatura. É um nível de relação amplo.

O projecto do átrio do Alhambra, que fiz com Álvaro Siza – e aqui há um património que é o Alhambra e outro que é Álvaro Siza –, realiza-se a partir das coisas encontradas no lugar. Trabalhámos a partir de elementos de arqueologia, um passeio de ciprestes, um antigo muro muito bonito que passava despercebido. Trata-se de desmontar a realidade em partes para voltar a organizá-la com outro tipo de relação.

O seu olhar e o de Álvaro Siza são semelhantes?
É um mestre, aprendo muito com ele. Ele vê linhas ocultas que nós não vemos, vê relações. As coisas estão ali à espera que nós as resgatemos e esse olhar de Álvaro Siza é como uma corrente de energia que relaciona coisas. É uma forma de trabalhar muito mágica.

Há um problema de tempo mas também de espaço. Os terrenos onde estão fábricas desactivadas podem valer muito dinheiro. Como argumenta para defender que vale a pena manter aquele património em vez de construir um condomínio de luxo?
É difícil. Depende da sensibilidade dos políticos e dos cidadãos. Mas acho que cada vez mais gente entende isso. No dia 13 de Outubro, vamos fazer na fábrica (que pertence a um banco e foi considerada de interesse cultural) um dia de portas abertas. Foram convidados os cidadãos, os vizinhos, o presidente da câmara, as organizações. Estou a convocar toda a gente para que passeiem pela fábrica e dêem ideias sobre o que poderia ser aquele lugar para a cidade.