O meu KITT era o Mini cinzento da minha avó
O Justiceiro tinha um carro que falava, e isso era mágico. A série era má, mas as memórias que deixou são boas.
A série era má, mas as minhas memórias são boas. Há partes de que me lembro perfeitamente. Do relógio de plástico preto que a minha avó usava só para brincar comigo. Tinha botões, ela punha-o no pulso, abria a janela e dizia:
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A série era má, mas as minhas memórias são boas. Há partes de que me lembro perfeitamente. Do relógio de plástico preto que a minha avó usava só para brincar comigo. Tinha botões, ela punha-o no pulso, abria a janela e dizia:
– KITT, KITT, vem-me buscar.
Eu ia a correr atrás dela para fazer o mesmo. Punha o relógio e chamava da janela do primeiro andar do prédio cor-de-rosa, na Travessa da Horta, em Lisboa, o carro da minha avó, estacionado à porta. Era um Mini cinzento, pequenino, sempre coberto com uma capa também cinzenta por causa dos pombos.
Volta e meia, cheguei a andar nele com a minha avó. Eu divertia-me, não tinha medo de nada, mas a minha avó benzia-se quando tinha de descer ruas íngremes em Lisboa. Dizíamos:
– Aqui vamos nós.
O meu avô, que tinha o peculiar nome de Egypton e andava sempre de laço ao pescoço, não tinha carta e resmungava quando a minha avó conduzia. É engraçado, porque, na altura destas memórias, o meu pai também não tinha carta. Nas férias grandes, íamos no Peugeot 205 da minha mãe de Guimarães até ao Algarve e, tanto à ida como no regresso, eles só trocavam de lugar no Alentejo. O meu pai não-encartado ia para o volante e a minha mãe ia descansar.
Era uma viagem longa, estávamos na década de 80. Fazíamos sempre escala em Lisboa, antes de chegarmos ao Sotavento algarvio. Nesses dias de paragem, os meus pais deixavam-me em casa dos meus avós, uma casa muito pequenina cheia de coisas pequeninas (e um carro pequenino à porta) e iam à vida deles, ter com amigos. Eu ficava ali, volta e meia o meu pai ia buscar-me para me levar ao cinema e eu chorar baba e ranho a ver o E.T.. De resto, os dias eram assim: o meu avô saía cedo de manhã, sempre de laçarote ao pescoço, e regressava cedo à tarde. Mas nesse intervalo sobravam imensas horas para eu e a minha avó chamarmos o KITT da janela, para passearmos no jardim do Príncipe Real, para vermos televisão.
Andei a pesquisar na Internet as datas em que série passou em Portugal. Estamos a falar d’O Justiceiro, com Michael Knight (David Hasselhoff) e o seu carro que falava. Não faço a mais pequena ideia da razão por que via a série. Nunca liguei a carros, nem a filmes cheios de acção. Preferia histórias com duendes, amizades com extraterrestres – o E.T. deve ter sido o filme que mais vezes vi em miúda e não houve uma em que não tivesse chorado. O Justiceiro e o KITT, porquê? Não sei. Talvez porque o carro falava, algo mágico. Devia ser a isso que achava piada, e não ao facto de o protagonista prender os maus, muito menos por aquilo me parecer tecnologicamente avançado. Para mim, o protagonista era um carro que falava e isso era engraçado. E a verdade é que tenho mais memórias de brincadeiras com a minha avó por causa da série do que da série em si.
Por isso, quando fui pesquisar à Internet as datas fiquei baralhada. Primeiro foi exibida na RTP, na década de 80, com legendas; mais tarde, já nos anos 90, passou na TVI, dobrada em português do Brasil. Devo ter visto episódios nos dois canais, não posso garantir. Pus-me a fazer contas, comecei a aprender a ler em 1986, nessa altura, pelas minhas pesquisas, a série ainda passaria com legendas. As memórias de infância são confusas, desisti da pesquisa. Que importa, no caso? São as minhas memórias e não é a Wikipédia, ou outro site, que vai alterá-las tantos anos depois. Lembro-me da série, de ser Verão, de estar em Lisboa, de dar o Agora Escolha. Mas não sei exactamente que partes batem certo com as datas em que foi exibida e a minha idade.
Só sei – e isso consegui confirmar – que em 1987, tinha eu seis anos, o actor esteve nas Amoreiras, em Lisboa, com o carro preto falante. Não sei como soube do acontecimento, se vi na televisão, se foi o meu pai que teve a ideia mirabolante de me levar lá (era pai para isso). Só me lembro de estar na sala da minha avó, de o meu pai aparecer e de me levar ao centro comercial para ver o Michael e o carro. Na minha memória, furei a multidão às cavalitas do meu pai, o actor deu-me um beijo e uma caixa de fósforos autografada. Telefonei ao meu pai, antes de escrever esta crónica, para confirmar se isto era verdade ou uma memória reconstruída. O meu pai disse-me:
– Com seis anos, é possível que te tivesse levado às cavalitas. Lembro-me que estivemos muito perto dele, mas já não sei se te deu um beijo, nem uma caixa de fósforos autografada.
Sei eu. Pelo menos é o que guardo na memória.
Quanto ao carro da minha avó, já não existe, ela já não conduz, mas ainda hoje me pergunta, muitas vezes, se me lembro de ir com ela à janela de relógio de plástico preto no pulso, carregar nos botões, colá-lo aos lábios e dizer:
– KITT, KITT, vem-me buscar.
Claro que me lembro. Parece que já estou a ouvir o genérico: e eu e a minha avó sentadas no sofá de veludo verde, com as nucas encostadas aos napperons, durante os dias de férias e de escala em Lisboa, antes de chegarmos ao Algarve: Tam tam ram tam, tam tam ram tam, tam tam ram tam tam tam.
Esta série é publicada à segunda e à terça-feira. Próxima: Verão Azul