Ucrânia: um país de soldados feridos

Taras e Tatiana são vítimas da guerra na Ucrânia. Ele combateu na linha da frente, ela fugiu com a família. Contam como vivem há dois anos um conflito ainda longe de uma solução.

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Soldados ucranianos em Fevereiro de 2015, durante assalto separatista à cidade de Debaltseve Manu Brabo / AFP

Na guerra também há bons momentos. Daquilo que Taras sente mais falta dos tempos na frente de combate é da “vida simples”. “É uma vida perigosa, mas simples”, diz-nos o veterano de 26 anos ao final da tarde num pequeno jardim em Kiev. O conflito que grassa no Leste da Ucrânia há mais de dois anos ia-lhe tirando a vida, mas o regresso à vida civil foi igualmente doloroso. Morreram quase dez mil pessoas na mais recente das guerras em solo europeu — e continuam a morrer — mas há também um preço alto a pagar para quem sobrevive. O custo humano do conflito no Donbass mede-se também nos mais de 1,6 milhões de deslocados internos e nos cerca de 1,4 milhões de refugiados na Rússia e noutros países europeus.

Há já dois anos que se tenta encontrar a paz no Leste da Ucrânia. A primeira versão dos Acordos de Minsk foi assinada a 5 de Setembro de 2014, mas o seu falhanço levou a uma nova cimeira e a um novo documento, assinado cinco meses mais tarde. Entretanto, a intensidade do conflito desceu, mas persistem os receios de que a mínima perturbação abra uma nova escalada.

O conflito limita-se hoje a uma troca esporádica de tiros de artilharia, sem qualquer investida real de tomada de território. Desde Fevereiro de 2015, dias depois da assinatura de Minsk 2, quando a cidade de Debaltseve passou para controlo das forças separatistas, que não há qualquer ofensiva de grande escala. Mas as provocações na linha da frente persistem de parte a parte, documentadas dentro do possível pela equipa da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE). Na sexta-feira, foi negociado um cessar-fogo para coincidir com o período de início de aulas, que durante o fim-de-semana parecia estar a ser cumprido.

A situação está num ponto morno, em que não se pode falar de uma guerra aberta, mas também é abusivo dizer que existe um cessar-fogo generalizado. Entre Junho e Julho morreram pelo menos 20 civis e 122 ficaram feridos, de acordo com a ONU. No início de Agosto, a Rússia deteve um grupo de alegados agentes ucranianos que planeavam atacar infraestruturas na Crimeia, território anexado em Março de 2014 pela Rússia.

Em mais de dois anos e meio de guerra morreram mais de 9500 pessoas e há cerca de 22 mil feridos. Um deles é Taras Kovalyk, que ainda hoje se recorda da bala de metralhadora que lhe atingiu a perna e deixou o nervo afectado, dificultando alguns movimentos. Foi em Junho de 2014, um mês depois de se ter juntado ao Batalhão Aidar — um dos grupos de voluntários que apoiavam o Exército ucraniano e que entretanto foram sendo integrados nas forças regulares — em Lugansk.

"Continuar a revolução"

Para Taras, tudo começou muito perto do local onde conversa com o PÚBLICO, na Praça da Independência. Foi ali que durante vários meses no Inverno de 2013 e no início de 2014, milhares de pessoas se concentraram para pedir a demissão do Presidente Viktor Ianukovich e o fim da cultura de corrupção que diziam destruir o país. Taras tinha terminado um curso de cozinha e trabalhava “no restaurante do melhor hotel de Kiev”, como nos diz. Começou a participar nos protestos na Maidan e passou a liderar uma das unidades de “auto-defesa”, os grupos na linha da frente das manifestações mais violentas.

Ao fim de vários meses e de violentos confrontos com a polícia de choque, Ianukovich abandonou o país. Um sentimento de vitória invadiu os manifestantes da Maidan, mas apenas por pouco tempo. Em poucos dias, forças militares russas tomaram de assalto os principais edifícios governamentais da Crimeia e a península no Mar Negro foi formalmente — em Kiev diz-se ilegalmente — anexada pela Rússia. O mesmo se passou quase em simultâneo em várias cidades no Leste da Ucrânia, mas aí as novas autoridades em Kiev ripostaram, lançando uma “operação anti-terrorista” contra os grupos separatistas pró-russos. Em poucos dias estalava a guerra e Taras não hesitou.

“Era a continuação da nossa revolução. Fomos bem-sucedidos de início e tínhamos agora de parar a agressão russa”, conta. Por ter tido problemas de saúde na infância e, diz-nos, por haver um responsável do Exército que não gostava dele, Taras não se pôde alistar nas forças regulares. Sobravam os batalhões de voluntários, cujo papel na fase mais activa do conflito foi preponderante. Em Maio estava na linha da frente, mas poucas semanas depois foi ferido e teve de regressar a Kiev. Olhando para trás, admite que teve sorte tendo em conta as circunstâncias. “Tive de esperar quase dois dias pelo helicóptero para me levar para o hospital de Kharkov, e só então é que renovaram a minha reserva de sangue”, explica.

Passou os cinco meses seguintes em Kiev a recuperar, mas sempre com a vontade de regressar ao Leste. Diz ter sido “bastante rígido” em relação à sua decisão de voltar ao combate, mesmo perante a preocupação da família e da namorada — diziam-lhe que já tinha cumprido a sua parte. “Decidi voltar no momento em que um dos meus amigos foi morto na linha da frente e voltei, mesmo com a minha perna magoada”, conta Taras. Bastava usar calças constantemente para esconder a cicatriz e nunca ninguém desconfiou, assegura. Para além disso, ele era um dos poucos elementos com alguma experiência de combate e, em pouco tempo, passou a liderar uma unidade de artilharia leve. Desta vez, permaneceu nove meses na guerra.

Dentro de si, houve sempre qualquer coisa que lhe dizia que a sua vida iria passar por um campo de batalha. A partir de certa altura na sua juventude, começou a fazer perguntas aos avós, que tinham feito parte de grupos nacionalistas ucranianos durante a II Guerra Mundial e lutaram contra o Exército Vermelho. Também teve um bisavô que combateu pelos soviéticos. “Temos muitas histórias sobre guerra na minha família”, acaba por concluir. Na organização de escuteiros em que participou durante a infância diz ter tido algumas noções básicas de sobrevivência e de treino militar.

Foi durante um desses acampamentos, no Verão de 2008, que Taras percebeu que algo poderia acontecer em breve. O mundo acordava surpreendido pelos tanques russos que entravam na Geórgia para apoiar as forças separatistas da Ossétia do Sul. O conflito terminou com a ocupação militar russa de duas regiões do país vizinho e o jovem percebeu que a “Ucrânia podia ser o seguinte”. “Nesse momento percebi que os exercícios que estava a fazer não eram apenas diversão.”

Taras é hoje um homem tranquilo, que vai deixando vislumbrar alguns sorrisos nervosos durante a conversa. O seu discurso consiste numa mistura incomum entre a linguagem marcial e o vocabulário próprio da psicologia, aprendido durante as sessões de terapia. Fala muitas vezes da realidade a “preto e branco” da guerra e de como é importante aprender a lidar com as “novas capacidades” apreendidas durante os tempos de combate.

Traumas de guerra

A História está cheia de exemplos de veteranos que desenvolvem graves problemas mentais depois de regressarem de um conflito. Taras viveu isso na primeira pessoa, embora não queira entrar em pormenores. Diz ter tido “problemas de comunicação” com as pessoas à sua volta. “A nossa forma de pensar muda, porque há coisas que se fazem lá que te mudam realmente”, explica.

A ajuda foi encontrada na organização não-governamental Wounded Warrior (Soldado Ferido) que lançou um projecto pouco usual na forma de lidar com o trauma de antigos combatentes. Consiste no estabelecimento de uma rede de veteranos que tentam fazer a ponte entre terapeuta e paciente. A premissa deste tratamento é a de que “enquanto muitos veteranos resistem a abrir-se a psicoterapeutas, eles irão naturalmente relacionar-se com outros veteranos que viveram uma guerra”, lê-se no site da organização.

Ao regressar à vida civil, muitos veteranos sentem incompreensão por parte da sociedade que os volta a acolher e o contraste com a tal “vida simples” a “preto e branco” da guerra é difícil de ultrapassar. A corrupção perturba-o: “Vêem-se os carros caros perto dos edifícios do governo e sabemos que é algo preto”. Mas a fórmula do “preto e branco” não pode ser aplicada à vida civil, que tem mais complexidade. “Há mais cores e isso significa que é preciso adaptarmo-nos. Na guerra, estamos num estado próximo dos animais. Vemos o inimigo e matamos o inimigo. E sentimo-nos bem, não com a morte, mas com a simplicidade”, conta Taras Kovalyk.

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Soldado ucraniano na região de Lugansk em Agosto de 2014 Anatolii Stepanov / AFP

Frequentou um dos primeiros cursos de terapia na Wounded Warrior e recorda a primeira sessão em que participou: “Houve muitas emoções, muita tristeza, muita raiva.” Percebeu que a terapia estava a funcionar quando sentiu que estava a comunicar melhor com a família e a namorada, cuja relação evoluiu e hoje sente que se respeitam. “Acho que nos vamos casar”, diz, como quem parece estar a tomar a decisão naquele momento.

É muito crítico quanto à forma como o governo e a sociedade encaram os veteranos. As ajudas do Estado para tratamento psicológico são quase inexistentes — inferior a 50 euros por ano, quando o curso mais básico na Wounded Warrior chega perto dos mil. As pessoas “sentem-se ameaçadas e dizem ‘dêem-lhes trabalho e o problema está resolvido’. Não percebem que os veteranos se calhar não conseguem trabalhar no primeiro ano, que talvez precisem de outro tipo de apoio.”

Taras sente-se hoje muito melhor. Colabora com a organização e sente que o seu esforço de guerra é agora a ajudar outros que estiveram na sua situação e não na frente de batalha. Mas há problemas que se mantêm. Diz ter “medo” de entrar em lutas. “Sei que posso matar alguém”, diz sem pestanejar. Nota-se que esta é uma conclusão a que chegou há já algum tempo e que não o choca — apenas tenta lidar com ela. “Tento ter espaço para sair de uma situação de conflito antes de entrar nesse estado.”

Refugiados esquecidos

Primeiro, Tatiana Kyselova viu um grupo de indivíduos que empunhavam a bandeira russa à volta do edifício dos serviços secretos no centro de Lugansk. Estávamos a 6 de Abril de 2014. Passava por ali várias vezes por semana para ir às aulas de Inglês que frequentava e estranhou quando, no dia seguinte, essa mesma rua estava fechada e o mesmo grupo atirava ovos contra a fachada do edifício onde havia algumas janelas partidas. A bandeira ucraniana já lá não estava. Na semana seguinte, os homens começaram a trazer pneus e a construir barricadas à volta do edifício. No final do mês, encontrou uma amiga enquanto deixava a filha na aula de dança que lhe disse que tinha ouvido que os homens deviam inscrever-se nos grupos armados. Em breve começaram a ver muita gente com armas pela rua.

A descrição desta professora de Russo e Literatura Estrangeira mostra como foi rápida a tomada de algumas das principais cidades do Leste pelos grupos separatistas pró-russos, no rescaldo da queda de Ianukovich. “Até as armas começarem a ser distribuídas, pensámos que tudo isto não passava de actos de vandalismo que iriam terminar rapidamente”, conta Tatiana. Fala-nos enquanto espera pela filha de nove anos que está numa aula de informática dada por voluntários que colaboram com organizações de apoio a deslocados internos, em Kiev. Tatiana, o marido e a filha fazem parte dos 1,6 milhões de refugiados internos espalhados pela Ucrânia que compõem aquilo que alguns observadores já descreveram como “os refugiados esquecidos da Europa”.

Há mais de dois anos que estão em Kiev. O “vandalismo” que Tatiana começou por ver transformou-se gradualmente. Os elementos separatistas começaram a “confiscar” carros, impuseram um recolher obrigatório e algumas estradas começaram a ser encerradas. E, depois, vieram os bombardeamentos. Foi a 2 de Junho, quando a sede da administração regional foi atingida, conta Tatiana. O marido estava a trabalhar no centro da cidade, a apenas uma paragem de autocarro do sítio da explosão.

Tinham as malas prontas há já um mês quando decidiram partir. “No início de Julho, os combates intensificaram e conseguíamos ouvi-los o dia todo”, diz a professora. Deixaram quase tudo em casa e levaram apenas roupa de Verão — “pensávamos que iríamos regressar em breve.” Há já duas semanas que mal dormiam por causa do barulho dos bombardeamentos e arrendaram um quarto em Kharkov, a 300 quilómetros. Depararam-se com as primeiras dificuldades quando tentaram arrendar um apartamento para viverem de forma mais permanente. Mostravam-lhes apenas casas em “péssimas condições” e pediam-lhes adiantamentos de três meses de renda. “A atitude não era muito positiva. Quando ouviam que vínhamos do Donbass diziam que não queriam arrendar o apartamento”, recorda.

Conseguir habitação é um dos maiores desafios para os deslocados internos na Ucrânia. Muitas vezes deparam-se com exigências de rendas superiores às que seriam cobradas a não deslocados. Apesar de sentirem como uma discriminação, a verdadeira razão pode ser outra. Ninguém tem contratos de arrendamento na Ucrânia mas os deslocados têm de ter uma prova de residência. “Isto é um problema para os senhorios que teriam de fazer contratos e, assim, pagar impostos”, explica a coordenadora do programa da Organização Internacional para as Migrações (OIM) na Ucrânia, Ester Ruiz de Azua.

Tatiana e a família partiram então para Kiev, onde estão até hoje. O marido trabalhava numa operadora de telecomunicações e conseguiu ser transferido para os escritórios da capital. A maioria das escolas em Kiev não tem aulas de russo e Tatiana não conseguiu encontrar um novo posto. Durante dois meses deu aulas de ocupação de tempos livres, mas deixou de ter condições. “A certa altura tive de procurar ajuda psicológica, porque sempre que as crianças começavam a gritar tinha uma reacção muito forte”, explica. Passou a dar aulas de russo pela Internet a estrangeiros, mas agora não tem clientes e, por isso, ocupa os dias como ama.

Tatiana foi acompanhada por vários psicólogos desde então. Ela e a família ainda hoje têm uma sensibilidade a barulhos muito altos, por causa da memória dos bombardeamentos. As ajudas estatais nunca chegaram para terem um apoio efectivo. Nos primeiros dois meses, recebeu 440 hrivnia (menos de 15 euros) e depois recebeu 880 por ter uma filha menor. O governo criou um subsídio especial para apoiar os refugiados, mas a família de Tatiana deixou de ter acesso por não terem notificado os serviços de segurança social da mudança de residência — os entraves burocráticos acabam por impedir muitos refugiados internos de acederem a estas ajudas, dizem os activistas deste centro.

Direitos violados

Alexei Kravchenko é ele próprio um deslocado, mas agora trabalha com a ONG Vostok, na recolha e difusão de informação sobre os territórios ocupados. O seu trabalho passa por ajudar as pessoas que queiram atravessar a chamada “linha de contacto” e abandonar o Donbass. “Vemos como os direitos dos deslocados internos são violados”, como por exemplo o direito à liberdade de circulação, explica. “Se um deslocado tem uma nova morada na zona controlada pelo governo, uma comissão especial vem regularmente verificar se vivem nessa morada. Se a pessoa está fora, para férias ou outros motivos, então pode perder o estatuto de deslocado interno e seria difícil voltar a consegui-lo. Se uma pessoa perder esse estatuto, ela terá problemas em receber prestações sociais, abrir um negócio, conseguir um empréstimo ou conseguir assistência médica”, conta Kravchenko.

Segundo informações do Ministério para os Assuntos Sociais, o orçamento dedicado ao apoio aos refugiados internos é de 2,6 mil milhões de euros e, até Abril, mais de 780 mil famílias registaram-se para ter acesso aos subsídios. O governo decidiu suspender o pagamento de pensões às pessoas que vivem nas regiões ocupadas, obrigando milhares de reformados a atravessarem a linha de contacto todos os meses para levantarem o seu dinheiro.

Arranjar emprego é outro dos grandes desafios para os deslocados internos. Apenas 30% têm um trabalho a tempo inteiro, de acordo com um inquérito realizado pela OIM. A economia em recessão explica parte desta dificuldade, mas há igualmente obstáculos burocráticos. Tatiana, por exemplo, apenas pode concorrer a empregos em part-time, uma vez que aos olhos das autoridades ucranianas aparece ainda como empregada na sua anterior escola.

Dois anos depois, a Ucrânia parece tão longe de alcançar a paz como durante os primeiros bombardeamentos. Os progressos políticos previstos pelo Acordo de Minsk — que incluem a concessão de um estatuto de autonomia aos territórios controlados pelos separatistas e eleições nestas regiões — estão bloqueados pela persistência das hostilidades. O governo de Kiev diz que enquanto continuarem a morrer soldados e civis, não é possível uma discussão dos aspectos políticos. As forças rebeldes e Moscovo acusam os dirigentes ucranianos de não quererem cumprir o que foi acordado.

Entretanto, o Ocidente começa a mostrar sinais de impaciência com a falta de progressos nas reformas políticas e económicas em Kiev e nas negociações de paz. Em Junho, o senado francês aprovou uma recomendação para que as sanções contra a Rússia sejam levantadas e votos semelhantes foram repetidos nos parlamentos de três regiões italianas. “Infelizmente há muitas vozes em diferentes forças políticas que estão a pedir o regresso de business as usual com a Rússia”, diz a vice-primeira-ministra responsável pelos Assuntos Europeus, Ivanna Klympush-Tsyntsadze. A próxima revisão das medidas económicas aplicadas pela União Europeia à Rússia é em Dezembro.

O jornalista viajou a convite da Comissão Europeia.