Histórias de humor e medo entre escombros

Anthony Marra tem 31 anos, apontaram-no como um dos nomes a seguir nas letras americanas. A sua estreia em Portugal faz-se com O Czar do Amor e do Tecno, volume de contos que se lêem como um romance. Passa-se na Tchétchénia. Conversa sobre o lado negro, desconcertante e irónico do Cáucaso.

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Marra foi comparado com alguns pós-modernistas como Thomas Pynchon, Chimamanda Ngozi Adiche ou Jonathan Safran Foer

Roman Osipovitch Markin corrige imagens (fotografias, pinturas) na União Soviética de Estaline. Apaga rostos, gestos. Denunciou o irmão ao regime, porque sabe que, mais do que outra coisa, ali a lealdade se prova pela traição e só os leais sobrevivem. "Denuncie alguém próximo de si. É isso que eu sei que resulta", diz um dia à cunhada, viúva, mãe do sobrinho de quatro anos, que lhe pergunta o que fazer para não sofrer mais retaliações por parte do partido. 

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Roman Osipovitch Markin corrige imagens (fotografias, pinturas) na União Soviética de Estaline. Apaga rostos, gestos. Denunciou o irmão ao regime, porque sabe que, mais do que outra coisa, ali a lealdade se prova pela traição e só os leais sobrevivem. "Denuncie alguém próximo de si. É isso que eu sei que resulta", diz um dia à cunhada, viúva, mãe do sobrinho de quatro anos, que lhe pergunta o que fazer para não sofrer mais retaliações por parte do partido. 

"A história é o erro que estamos permanentemente a corrigir", lê-se. E para essa tentativa de correcção – a tentação universal de reescrita do passado – há menos talento para acrescentar um rosto a um quadro do que para apagar a memória de outro que existiu. Roman Osipovitch Markin acredita nisso. Operário da censura, oficial da propaganda, ele sente-se um repositório ou um cemitério de todas as imagens que foi apagando para corrigir a memória do regime de Estaline, moldá-la à vontade do ditador. Ele é também uma das provas da máquina do absurdo totalitário, aquele que transforma carrasco em vítima, o que pede que se prove a fidelidade, quebrando-a, tornando-se dessa forma um traidor condenado a pena capital em julgamento sumário. 

Estamos em 1937, na acção de O Leopardo, a primeira história de O Czar do Amor e do Tecno, livro de estreia do americano Anthony Marra em Portugal. "A tentação de corrigir o passado para direccionar uma leitura é muito comum, mas é particularmente evidente em regimes totalitários”, diz Anthony Marra ao Ípsilon numa conversa telefónica a partir da Califórnia, onde dá aulas de escrita de ficção na Universidade de Stanford. “Esses governos contam a História à sua medida, convictos de que, ao controlar o passado, podem controlar a própria História. Usam-na como forma de justificar a sua política, o policiamento do presente. Aconteceu um pouco por todo o mundo, mas na Rússia de Estaline foi tremendo. Ele montou uma verdadeira indústria de apagar e refazer a História para justificar as suas decisões. Mas a tentação de corrigir a História é universal e manifesta-se das mais variadas maneiras. A História não é algo estático, está sempre a ser reinterpretada à luz do presente".

Anthony Marra vive há cinco anos em Oakland, na baía de São Francisco, com vista para as montanhas de Berkeley, depois de ter passado uma temporada a estudar literatura e cultura russas na Universidade de São Petersburgo. "Apaixonei-me pela região, pela cultura, pela História incrível, pela herança literária. Penso que sob muitos aspectos a literatura russa é mais profunda, muito mais complexa do que o que vou encontrando em muita literatura americana", refere, um pouco para justificar porque é que um americano de 31 anos escreve sobre uma realidade tão distante da sua. "Sim, é de algum modo inesperado que um romancista na América não escreva sobre a América. Mas não estou interessado num espelho. Os livros que tento encontrar enquanto leitor são livros que não são espelhos a reflectir a minha experiência. São antes janelas que se abrem para alguma coisa que nunca vi. Os livros que tento criar como escritor são os livros que procuro enquanto leitor." E sobre a escrita confessional, autobiográfica, praticada por muitos autores da sua geração, afirma: "Deliberadamente escolho, até onde isso me é possível, não escrever sobre mim ou sobre a minha família."

Catástrofe humana

Não esconde, no entanto, a génese das suas motivações literárias nas entrevistas que vai dando para falar dos dois livros que publicou até agora. Primeiro,  em 2013, A Constellation of a Vital Phenomena, um romance cuja acção se passa na Tchetchénia devastada pelas duas guerras recentes com a Rússia, influenciado pelos trabalhos não ficcionais de Anna Politkovskaya (jornalista assassinada em 2006 quando investigava abusos humanitários na Tchetchénia e corrupção na Rússia) e de Andrew Meier, jornalista americano que em 2009 publicou The Lost Spy, a história de um americano que foi espião de Estaline. Quando o romance saiu, Marra causou sensação. Apresentavam-no como um dos jovens autores mais talentosos e promissores da América. Viam-se semelhanças com alguns pós-modernistas como Thomas Pynchon, mas também com autores como Chimamanda Ngozi Adiche ou Jonathan Safran Foer pelo modo como as suas personagens funcionam como transmissores de histórias para falarem de uma História maior. O Washington Post considerou o livro um testemunho da "vibrante" ficção americana; o Boston Globe sublinhava a invulgar capacidade de alguém tão novo para escrever sobre o medo mais profundo, e o New York Times enaltecia o talento de Marra para falar da catástrofe humana detectando aí influências de autores como Tolstoi, por exemplo. 

Quando, dois anos depois, apareceu este O Czar do Amor e do Tecno (2015), a expectativa era alta. Voltava com um olhar sobre o mesmo tema, a reflectir acerca do papel da memória, da capacidade de resignação, da culpa, da ironia impiedosa, sobre as várias camadas de sofrimento e expectativa na mesma paisagem. "Em São Petersburgo eu vivia muito perto de uma academia militar e todos os dias via os cadetes marcharem pelo bairro. Nessa marcha, passavam pela estação de metro e à volta dessa estação viam-se veteranos a deambular. Muitos eram sem-abrigo, mutilados, com as calças presas com molas a roçarem o chão porque perderam as pernas na guerra. Lembro-me de ver aqueles miúdos de 15, 16 anos a marcharem em frente àqueles veteranos pobres e a imagem era muito forte. Fiquei muito consciente do passado recente do país, da guerra, e dividi-os em dois grupos de pessoas, separados por muito poucos anos. Separava-os o combate, ou não, nas guerras da Tchetchénia." Foi essa imagem que comandou o resto, ou seja, o início da escrita de Anthony Marra.

Escrever o que quer ler 

Filho de um ex-combatente no Vietname, Marra nasceu em Washington DC em 1984, formou-se em Escrita na Universidade do Iowa e conta que foi o pai a primeira pessoa a falar-lhe da guerra quando, muito pequeno, lhe perguntou se alguma vez tinha disparado uma arma. O pai sentou-o ao colo e contou-lhe como um dia "fugiu ao inimigo". Na cabeça de Anthony apareceu um cenário de filme de espiões em que o pai era o herói. Mas tudo era mais absurdo do que isso. "Farto da comida militar, arriscou entrar num restaurante francês em Nairobi e acabou perseguido." O que lhe ficou foi essa ideia de absurdo à volta da guerra. "E o absurdo é esmagador", diz, referindo-se agora às histórias que ouviu muitos anos depois, quando visitou a Tchetchénia. Tentou contextualizar essa experiência. Investigou, procurou livros. "Encontrei um vazio em língua inglesa sobre o drama naquele território e quis escrever para entender", a clássica máxima a que tantos autores recorrem para explicar porque escrevem. "Era mais uma vez o leitor que sou a comandar o que escrevo."

Nas pausas do romance, ia escrevendo contos. Reuniu-os num volume, entregou-os ao editor e quando pensava que o trabalho estava feito não deixava de pensar nele. "Reparei que havia muitas ligações entre as histórias. Ideias, imagens, uma certa cegueira, amputações, censura. Voltei a cada história e quis ver se conseguia escrever um livro que começasse por ser uma colecção de contos e terminasse como um romance", conta para justificar a estrutura invulgar do livro, onde cada uma das oito histórias (mais uma que é uma espécie de chapéu) funcionam individualmente mas ganham maior fôlego enquanto um só corpo narrativo. "Não sei se é só na América, mas na América olha-se para um volume de contos como uma coisa menor, uma coisa que um escritor faz entre a escrita de grandes romances. Comecei a pensar que essa possibilidade de escrever um conjunto de contos me permitia, nesse sentido, escrever algo maior, mais extenso, mais ambicioso. E lancei-me no desafio de escrever uma história grande, capaz de atravessar as pontes entre os contos e também de ligar as gerações no tempo; gerações que partilharam um território nas últimas décadas. Comecei por reescrever todas as histórias de modo a juntá-las nessa narrativa maior. Acho que o livro existe nesse espaço entre uma colecção de contos e um romance; é um território que em inglês não tem um termo próprio que o defina."

Passa-se entre os anos 30 do século XX e 2013, intercalando personagens que compõem um puzzle social complexo e guiando o leitor por um quotidiano onde o espaço do indivíduo se situa algures entre o que lhe é destinado pela máquina do Estado e a banalidade da existência doméstica: "Aquilo que os torna vulgares é precisamente o que os mantém vivos", diz uma personagem. Ou seja, tudo acontece num tempo que vai desde o regime comandado por Estaline, ao pós-guerra até à actual reconstrução de um território entre escombros visíveis. Um pintor falhado que apaga memórias dos quadros, uma bailarina e a neta, Miss Sibéria. Uma e outra, em diferentes tempos e em existências que nunca se cruzaram, com paixões cheias de culpa, por um carrasco e um mercenário; o guardião do museu de Grozny, o único que não fechou durante a guerra; dois homens em fuga, fazendo tudo pela sobrevivência, incluindo falar de Tolstoi, Pushkin ou Lermontov... "todos esses sacanas escreveram sobre dois idiotas no fundo de um poço na Tchétchénia", diz um deles, ele próprio um escravo que está no fundo de um poço na Tchétchénia. 

A ficção de Marra socorre-se de factos, de histórias que ele ouviu contar. É uma ficção suportada pela realidade – espinhosa, desconfortável – e dificilmente escapa ao clássico fact-cheking. O que há de verdade histórica na ficção de Marra? Até que ponto ela é fiel ao facto? "Muita gente vê os meus livros como uma espécie de extensão da informação fornecida por reportagens jornalísticas, etc. Acho que pode haver o risco de ver esta ficção como uma espécie de trabalho documental. Isso é um erro. O meu objectivo não é dizer o que aconteceu, mas olhar para o que aconteceu. O meu trabalho é explorar as possibilidades de uma realidade. Através destas personagens quero perceber esperanças, lamentos, ambições. Quero explorar os sentimentos humanos numa situação como aquela e fazer com que o leitor entre num tempo, num espaço e numa circunstância que nunca teria hipótese de conhecer de outra forma; que mergulhe nesse ambiente", diz Marra. Marra aponta os autores russos clássicos como mestres nesse mergulho profundo pelo humano. E refere uma inspiração maior do que todas as outras quando fala de autores do século XX: José Saramago. "É uma das minhas maiores influências literárias. Não são apenas as histórias que conta, mas o imaginário, a linguagem, o modo como trabalha a frase é único. Um livro de Saramago é um livro de Saramago. Ele foi aos grandes autores russos, e isso vê-se no modo como lida com questões éticas e filosóficas complexas ou quais são os limites do perdão, o permanente questionar da religião, particularmente o catolicismo... Cresci numa família católica, acho que consigo perceber..." 

Em tudo isso há uma ironia que Marra também descobriu no Cáucaso e que classifica como "impiedosa" – recorre a ela não apenas para descrever um traço identitário de um povo mas para conferir humanidade às suas personagens. O absurdo, a loucura, a vulgaridade e a ironia desarmantes são tão humanas, diz o escritor, como a tristeza. "Encontrei no Cáucaso um sentido de humor muito apurado. As pessoas usam-no sobretudo quando falam dos seus medos. Talvez tenha a ver a com ideia de que o humor é um mecanismo de defesa; se passamos junto a uma campa rimos porque se não o fizermos não nos resta senão chorar. Isso é verdade. Mas é mais do que isso, é qualquer coisa contra o desespero: rir é um meio de sobreviver. Nos sítios onde estive havia sempre alguém a dizer piadas e andei por sítios muito trágicos."

O título escolhido para o livro, O Czar do Amor e do Tecno, tem a ver com isso. "Tinha de pôr humor a falar de coisas tão negras", refere. É o título da quinta história que começa com personagens já conhecidas de outras histórias deste livro e com o desconcerto como ponto de partida. "A Galina telefonou a dizer que me tinha comprado um bilhete em primeira classe para Moscovo e, depois, disse que o meu irmão tinha morrido. Eu nem queria acreditar na minha sorte. Nunca tinha recebido sequer correspondência em primeira classe, desde que os Correios introduziram o conceito há seis anos, quanto mais viajar num comboio em primeira classe! Quanto ao Kolya, enfim, estava morto há anos."