Maria João Valente Rosa: “Sinto-me triste quando as pessoas acreditam em inverdades”

A demógrafa dirigente da Pordata, base de dados da Fundação Francisco Manuel dos Santos, é conhecida como "a mulher dos números". Colecciona dados de jogos de azar para se lembrar que as certezas não duram para sempre.

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Não tenho uma primeira paixão porque a minha vida não é feita nesses moldes. Vou-me construindo. Estudei Sociologia e Demografia e acabei por me especializar em Estatística porque combinava o meu interesse pelos números e pela segurança que eles me dão com o interesse que tenho pelas pessoas. Fui sempre muito curiosa e tive desde cedo um grande interesse em perceber melhor aquilo que nos afecta a todos, mas nunca numa óptica meramente contemplativa. Sou incapaz de estar quieta e quero agir. Quero perceber para encontrar respostas para os desafios que vão surgindo à nossa volta.  

Há outras formas de intervir, mas sem factos andamos perdidos, andamos a navegar à vista. A melhor forma de alguém ter poder sobre nós é esconder os dados. Mas se conhecermos os factos não somos manipulados pelos outros. Muitas vezes ouvimos dizer que os números mentem, mas não. Podemos mentir com os números, mas os números, só por si, não mentem. Para não sermos enganados pelos dados, temos de entender o que um determinado número representa, como foi obtido, a que momento é que se reporta. Todos os números têm uma história. É preciso conhecer essa história. 

Toda a minha vida me foquei numa missão. Essa missão é tornar o país e a sociedade melhores. Para isso, estudo. Estou viva, existo e nessa medida sempre pensei que deve haver alguma razão por detrás da minha existência. Da minha e da de todos. Nunca devemos cruzar os braços naquela atitude "Já fiz o que tinha a fazer e agora vou descansar". A minha grande luta é pela liberdade. Acho que devemos trabalhar para que todos possam fazer escolhas livres. Devíamos apostar na literacia em estatísticas para formarmos as nossas opiniões em consciência e em liberdade. A liberdade alimenta-se de factos, de dados, de estatísticas, de conhecimento. 

Fico irritada e triste quando olho para pessoas à minha volta que acreditam em inverdades. Temos hipóteses de chegar muito mais longe do que chegaram os nossos pais e os nossos avós quando a informação só era disponibilizada a conta-gotas. Fico triste que as pessoas se satisfaçam com tão pouco… Dentro das minhas possibilidades, tento tornar público que o que está a ser dito é mentira e que em alguns casos é muito grave que se diga. Como aquela afirmação de que somos “um país de doutores e engenheiros” e que “estudar não compensa”. Estas ideias são falsas, não são sustentadas em números e muitas vezes servem interesses obscuros.

Há dados muito desanimadores em Portugal. Não gosto de viver num país com a quarta maior taxa de abandono escolar da União Europeia. Não gosto que Portugal seja um dos países em que se trabalha mais horas por semana, mas cuja produtividade está abaixo da média comunitária. Não gosto da diferença de remuneração entre homens e mulheres com idênticas qualificações. Não gosto do peso das desigualdades à partida. Não gosto que Portugal seja um dos países onde a família mais pesa nos resultados escolares. Mas acho que é possível mudar tudo, não de um dia para o outro, porque estas mudanças não se fazem por decreto. As feridas são muito profundas e não se resolvem imediatamente. 

Aquilo que mais condena Portugal é o passado. Estamos demasiado presos ao que fomos e não ao que poderemos vir a ser. Os tempos mudaram, as exigências mudaram, tudo é diferente. A falta de atenção que damos ao futuro preocupa-me. Era importante partirmos da realidade e sabermos aonde queremos chegar — qual é a meta. Mas nós valorizamos excessivamente as nossas heranças. O destino é uma carga muito forte. 

Sempre gostei muito de Matemática, dá-me muito segurança, não deixa margem para dúvidas, percebe-se logo o que é certo ou errado. Não acredito na sorte. Ou melhor: a minha sorte é construída e suada. Não acredito no pré-destino. Acredito na probabilidade matemática. Trabalho com dados estatísticos e nos meus tempos livres colecciono dados dos jogos de azar. Gosto da certeza e da segurança, mas tudo o que é misterioso, muitas vezes porque é incerto, exerce em mim algum fascínio. Nunca dou por terminada a minha busca por saber mais, por ir mais longe. Porque a certeza não existe para a vida. Aquilo que é certo complexifica-se. 

Um dado que continuo a valorizar em Portugal é o da mortalidade infantil, que é uma das mais baixas em todo o mundo. Por vezes diz-se que esta história já está muito batida, mas não nos devemos cansar dos bons resultados. Até porque não é certo que se mantenha. Mas ainda é um exemplo fabuloso que traduz avanços em todas as áreas — na medicina, na educação, nos hábitos, nas condições de vida. E o bom resultado mantém-se.

Os meus pais e os meus professores incutiram-me um grande sentido de responsabilidade e foi com eles que aprendi a pensar no longo prazo. Mas talvez a experiência mais definidora seja o meu casamento. Partilho com o meu marido uma forma de olhar para a vida e para o modo como nos situamos nela em que procuramos não ver apenas para a arvorezinha do quintal, esquecendo a floresta à volta. Se calhar não foi por acaso que escolhi este marido. O casamento é muito interessante. Nunca imaginei o casamento como um laço para a vida. Costumava dizer que o divórcio era o grande tributo ao amor — se o divórcio não existisse, as pessoas eram obrigadas a viver juntas sem gostar uma da outra. E quem sou eu para dizer que as pessoas não são livres de se separar? Nunca esperei que o meu casamento durasse tanto tempo. Somos casados há 30 anos. 

Oito portugueses conhecidos nas áreas da música, literatura, publicidade, política, empresas, solidariedade e ciência contam, nesta série, a sua história