Lágrimas de samba
Disco de samba, de punk-rock, de música brasileira, o disco mais recente de Elza Soares leva-nos ao fim do seu mundo que é o nosso.
O título, A Mulher do Fim do Mundo, é assertivo e revelador. A mulher que assina este disco não traz canções reconfortantes, prontas a serem consumidas. O que nos oferece são socos com osso e carne, levantados pela força de uma voz, rouca e dorida. O embate é tão forte que arrasta o ouvinte pelo cabelo, à beira de um abismo do fundo do qual espreitam a violência, a pobreza, a tragédia, o mundo que “vai terminar num poço de merda”.
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O título, A Mulher do Fim do Mundo, é assertivo e revelador. A mulher que assina este disco não traz canções reconfortantes, prontas a serem consumidas. O que nos oferece são socos com osso e carne, levantados pela força de uma voz, rouca e dorida. O embate é tão forte que arrasta o ouvinte pelo cabelo, à beira de um abismo do fundo do qual espreitam a violência, a pobreza, a tragédia, o mundo que “vai terminar num poço de merda”.
Elza Soares, figura proeminente da música brasileira, musa do samba, menina da rua, cantora, compositora, reverenciada por Caetano, Gil, Costa, tem 79 anos, segundo a biografia oficial. Passou fome, perdeu dois filhos, adoeceu. Ei-la viva num disco que derruba, com uma palmada, os clichés da música brasileira. Não se escutam ronronares, batidas suaves, afagos a pedir coros. As vozes aqui arranham, arranham, num desempenho comovente e furioso, numa dança ameaçadora que encontra os pares nos ruídos das guitarras e na agitação da bateria e da percussão.
O primeiro disco de originais de Elza Soares, A Mulher do Fim do Mundo, enovela o samba com o noise-rock, o pós-punk e o rap, contando com a cumplicidade de José Miguel Wisnik, Rômulo Fróes, Kiko Dinucci Celso Sim, Marcelo Cabral, Guilherme Kastrup, Felipe Roseno e Rodrigo Campos. Mas estes músicos, como os riffs, o feedback, os metais, a electrónica, estão ao serviço exclusivo da cantora. Nesta música, nestas canções os meios apontam exemplarmente para um fim: um desempenho musical e literário que se agiganta num ajuste de contas com a vida.
É assim que começa o disco, com Elza Soares a deixar entrar “o navio humano, quente, negreiro, do mangue!”. O tom é lento, elegíaco, mas aos poucos a voz cresce, borbulha, excitando as guitarras, apesar do cansaço, da cara quebrada. Ela quer continuar a cantar até ao fim e vai continuar a cantar, a vontade tornar-se-á acção. E pisando os confettis e as asas do anjo caídas no chão, atravessará a avenida.
Renascida, ajusta contas com a violência doméstica em Maria Da Vila Matilde, as guitarras num redemoinho agudo, as palavras disparadas numa fúria ameaçadora e trocista (“você vai se arrepender de levantar a mão para mim!”). Isto é punk rock, como também é Luz Vermelha, canção de uma cidade onde não há ninguém para abandonar, para ver e contar, onde só há um sol sem graça. Não é necessário ir ao Rio ou São Paulo. Em dois passos, estamos na periferia, com os fantasmas das nossas cidades.
Pra Fuder acelera o samba, com o corpo onde a lava escorre. A pele em chamas e Elza, qual loba, a celebrar, sem pudor, o transe do sexo, como se, à beira do apocalipse, esse fosse afinal seu único, grande consolo. Benedita, dedicada a uma jovem transexual perseguida pela polícia, dá-se a ouvir em tons diferentes. Assustada e vigilante, como se estivesse a falar de uma história proibida, grita no fim a denúncia de uma bala perdida. Na companhia de Rodrigo Campos, em Firmeza, a diva abraça o funk, deixa entrar a alegria do mundo comum. Os metais saúdam o reencontro, as saudações (“mando beijo pra menina, você é meu irmão, moleque”), e ouvinte torna-se espectador de uma cidade, de uma rua.
O tango insinua-se triste em Dança, com a respiração a falhar, o corpo a despedir-se. “Debaixo do cimento, não tenho pressa/ não há quem queira dançar/ deixo a chuva que derruba o céu, lavar/ lavar a carne que ainda tem no osso”. Mas não há nada de fúnebre. Elza insiste: quer continuar a falar, a dançar, a cantar. É essa firmeza que a leva a O Canal e acima de tudo a Solto, retrato de um corpo que caminha solitário na sua sombra “clara, recta, preta”, belíssimo elogio à velhice, ao amor e à memória. A despedida chegará no breve Comigo que, depois se libertar do feedback, se conclui neste frase “Levo minha mãe comigo, embora se tenha ido, pois deu-me seu próprio ser”. Epílogo imortal em lágrimas de samba.