Anatomia do golpe
Este golpe não se fez só contra Dilma, é um atentado contra todos os avanços sociais que o PT trouxe ao Brasil.
Na madrugada de 17 de março, o impeachment de Dilma Rousseff revelou-se ao mundo como uma farsa. Na Câmara dos Deputados, 367 eleitos disseram “sim”, justificando o seu voto com todos os motivos absurdos pelos quais não se derruba um governo eleito: pelo neto Gabriel, pelos evangélicos, “para a acabar com a Central Única dos Trabalhadores e os seus marginais”, pela Ditadura Militar de 1964 e em homenagem ao torturador Alberto Brilhante Ustra, “que foi o pavor de Dilma Rousseff”.
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Na madrugada de 17 de março, o impeachment de Dilma Rousseff revelou-se ao mundo como uma farsa. Na Câmara dos Deputados, 367 eleitos disseram “sim”, justificando o seu voto com todos os motivos absurdos pelos quais não se derruba um governo eleito: pelo neto Gabriel, pelos evangélicos, “para a acabar com a Central Única dos Trabalhadores e os seus marginais”, pela Ditadura Militar de 1964 e em homenagem ao torturador Alberto Brilhante Ustra, “que foi o pavor de Dilma Rousseff”.
Nessa noite ninguém ouviu falar de “pedaladas fiscais”, nem dos tais crimes de responsabilidade, o impeachment não passou de um julgamento político feito à margem da democracia decidido por juízes que são, simultaneamente, autores e beneficiários do golpe, representantes partidários prontos para ocupar o condomínio do poder depois de terem despejado o seu legítimo ocupante.
Agora que o caso “está arrumado”, ouviremos dizer que só à História caberá a tarefa de ajuizar sobre a injustiça do golpe no Brasil, seja por branqueamento ou longínqua condenação histórica, como se a história tivesse travado deputados como Jair Bolsonaro de dizer coisas como “o erro da ditadura foi torturar e não matar”.
O golpe no Brasil foi um assalto ao poder para desrespeitar a decisão de 54 milhões de eleitores que votaram num governo, bom ou mau, mas democraticamente eleito. Por si só, o ato já merece condenação. Mas ainda mais assustador é a anatomia do golpe: quem e porquê.
Há duas personagens principais. Eduardo Cunha, o Presidente da Câmara dos Deputados que aceitou o impeachment, enfrenta um processo por esconder contas secretas na Suíça, onde guarda o saque de várias propinas e subornos e tem pendente um mandato de prisão preventiva. O outro é Michel Temer, ex-vice e atual Presidente, envolvido no Lava Jato.
Estes misturam-se com a direita evangélica e toda a extrema-direita partidária do tal Bolsonaro, conhecido por dizer a uma deputada “não te estupro porque você não merece” ou por garantir que os seus filhos nunca se relacionariam com uma mulher negra porque “foram bem educados”.
Este é o exemplo mais chocante da direita que o golpe reuniu e normalizou, parte dela sustentada aos longo dos anos pela participação em governos do PT, e que agora se desfez do intermediário para assegurar um governo de “sangue puro” da elite dominante financeira, industrial e latifundiária do Brasil.
O golpe é feito por uma direita retrógrada, autoritária, radicalizada contra os direitos alcançados pelo povo. Numa caricatura humorística, essa elite é representada pelo “odeio pobre”, a frase mais batida de Caco Antibes, personagem do famoso programa “Sai de Baixo”.
A agenda dessa elite é clara: impor um retrocesso social sem precedentes ao Brasil, que passa tanto pelos cortes sociais, pela lei da selva laboral, como pela exclusão da chamada “ideologia de género”, ou seja, das palavras género, orientação sexual, nome social das escolas brasileiras e de qualquer política pública.
Mas há outro porquê na anatomia deste golpe, a agenda da impunidade, que ficou a nu quando Renan Calheiros, Presidente do Congresso, Romero Jucá, Senador e José Sarney, ex-Presidente da República, que foram apanhados numa gravação em que elaboravam um plano para travar o Lava Jato, incluindo o impeachment de Dilma.
Este golpe não se fez só contra Dilma, é um atentado contra todos os avanços sociais que o PT trouxe ao Brasil. No entanto, a direita alimentou-se do fracasso do PT, incapaz de manter as mãos limpas, cada vez mais dependente da direita para governar, que aceitou a recessão como legitimação de políticas de austeridade, que deixou ao vento as promessas de reforma do sistema político e de aprofundamento das conquistas sociais.
Com tudo o que sabemos sobre a anatomia do golpe, é muito provável que a farsa se transforme em tragédia para o povo brasileiro. E é por isso que não podemos esperar que a História faça o seu julgamento, nem aceitar as cumplicidades que, também na direita portuguesa, o legitimaram. O julgamento do golpe cabe-nos a todos, democratas de qualquer país. Mas a sua condenação cabe ao povo brasileiro na luta pelos seus direitos, uma tarefa do presente.
Deputada do Bloco de Esquerda