Câmara pára obras da Segunda Circular para evitar favorecimento
Empresa que fez caderno de encargos passou a vender material previsto na obra. Concorrentes queixaram-se e município vai apurar responsabilidades
A Câmara Municipal de Lisboa mandou parar as obras na Segunda Circular e anulou o concurso público para a requalificação desta via por suspeita de conflito de interesses. Em causa está o facto de o consultor do projecto da obra ser ao mesmo tempo o vendedor do material que aconselhou. A empresa de consultoria Consulpav fez uma alteração ao estatuto da sociedade em janeiro deste ano para poder passar a "fabricar e comercializar" o pavimento que aconselhara à Câmara, meses antes.
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A Câmara Municipal de Lisboa mandou parar as obras na Segunda Circular e anulou o concurso público para a requalificação desta via por suspeita de conflito de interesses. Em causa está o facto de o consultor do projecto da obra ser ao mesmo tempo o vendedor do material que aconselhou. A empresa de consultoria Consulpav fez uma alteração ao estatuto da sociedade em janeiro deste ano para poder passar a "fabricar e comercializar" o pavimento que aconselhara à Câmara, meses antes.
A história começou no ano passado quando a Câmara contratou uma empresa para fazer o projecto da obra. Essa empresa subcontratou a consultora em pavimentos, a Consulpav, que, à data em que foi convidada a participar, fazia apenas aconselhamento e não estava autorizada a fabricar e vender o material, apurou o PÚBLICO. A consultoria era o único objecto social desta empresa, mas acabou por ser mais tarde alterado.
O projecto da obra chegou à Câmara no final do ano e, cerca de um mês depois, no final de Janeiro, a Consulpav passou a ser outra coisa. Alterou o seu contrato de sociedade e passou a incluir na sua actividade o “fabrico e comercialização de borracha distentida e reagida proveniente da valorização de borracha reciclada de pneus de carros ou camiões e de outros óleos e fillers minerais”, como se pode ler no documento de alteração ao contrato da sociedade, que foi entregue nos serviços do Ministério da Justiça.
Ora, esta nova alteração – havia uma outra anterior data a 2013 -, passou a permitir à empresa o fornecimento da solução de pavimento que tinha aconselhado à CML, a 23 de Dezembro de 2015. A partir daqui, houve empreiteiros que souberam que a empresa estava a comercializar o produto que tinha aconselhado e fizeram chegar queixas à autarquia por potencial conflito de interesses e por suspeitas de ilegalidade. O PÚBLICO tentou confrontar a Consulpav com estas queixas, sem sucesso.
Ao final da tarde desta sexta-feira, Fernando Medina anunciou que o próximo passo será apurar as responsabilidades, "em particular o que deu origem à anulação deste concurso" e "só depois então tomar a iniciativa de prosseguir", disse, sem se comprometer com qualquer data. "No seu próprio tempo teremos outro concurso lançado", limitou-se a avançar o líder do executivo de maioria socialista.
No entanto, de acordo com o artigo n.º 79 do Código dos Contratos Públicos, quando se verifica a necessidade de “alterar aspectos fundamentais das peças do procedimento após o termo do prazo fixado para a apresentação das propostas”, "é obrigatório dar início a um novo procedimento no prazo máximo de seis meses a contar da data da notificação da decisão de não adjudicação”.
Fernando Medina decidiu “cancelar o concurso e fazer uma avaliação extensiva das responsabilidades e do apuramento dos conflitos de interesses existentes”, que o autarca sublinha só terem sido detectados “numa fase tardia”, no relatório do júri do concurso que só agora lhe foi entregue. “Tentámos afastar todas as dúvidas", destacou. "Não foi possível esclarecer que não havia conflitos de interesses. Não sendo possível esclarecer, tomámos a decisão de não prosseguir com o concurso”, resumiu.
O autarca repetiu que não quer que existam dúvidas sobre a posição da câmara de Lisboa, sobre questões que considera fundamentais numa instituição pública, “a transparência, a legalidade, a correcção”. E sublinhou que tomou a decisão “em consciência. Mantenho a minha convicção que o projecto da Segunda Circular é importante para a cidade, mas há uma realidade que um decisor público não pode transigir”, defendeu o autarca. "Quando há dúvidas sobre a legalidade, nós só temos, em consciência, de tomar uma decisão: agir", argumentou.
Não obstante, Medina garantiu que serão adoptadas “medidas de segurança e contingência, de emergência, que a Segunda Circular necessita”, nomeadamente no que respeita ao “pavimento, buracos, iluminação e sinalização que estavam incluídas nesta empreitada”.
A primeira fase das obras começou em Julho e deveria ocorrer até Outubro, que incluía troço do nó do RALIS e a Avenida de Berlim, nos Olivais, com um custo previsto de 750 mil euros. A segunda fase implicaria a intervenção na via desde o nó da Buraca até ao aeroporto, numa extensão de dez quilómetros e estaria avaliada em 9,5 milhões de euros. As obras incluiriam a arborização da Segunda Circular com cerca de 500 freixos, o alargamento do separador central e a renovação da sinalização.