África e Turquia: oportunidades perdidas
A Europa ainda raciocina numa lógica de ‘mapa cor de rosa’, presa ao passado.
A inabilidade europeia para gerir o dossier da adesão Turca só tem equivalente na inexistência de uma política comum para África. Dois exemplos concretos da ausência de um modelo de governo eficaz e de uma política externa credível, pelo menos capaz de colocar o interesse colectivo da Europa à frente dos interesses particulares de alguns Estados.
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A inabilidade europeia para gerir o dossier da adesão Turca só tem equivalente na inexistência de uma política comum para África. Dois exemplos concretos da ausência de um modelo de governo eficaz e de uma política externa credível, pelo menos capaz de colocar o interesse colectivo da Europa à frente dos interesses particulares de alguns Estados.
Comecemos por Ancara. Com uma escala quase continental, durante grande parte do século passado o país fez um percurso de democratização e de abertura ao Ocidente liderado por Ataturk, o fundador da Turquia moderna. A ancoragem turca à Europa prova-se na sua adesão à NATO ou ao Conselho da Europa, bem como em inúmeros acordos, protocolos, adendas, calendários, pedidos de adesão, pareceres, pacotes, comunicações e critérios que sucessivamente e desde 1963 (há mais de 50 anos) foram sendo assinados, adoptados e (in)cumpridos. A Europa teve ganhos de causa importantes no domínio dos direitos, liberdades e garantias, como é disso exemplo a abolição da pena de morte ou o novo código penal. Mas meio século volvido, o que temos hoje é uma Turquia em percurso de radicalização, de afastamento do Ocidente e, paradoxalmente, em aproximação de antagonistas históricos como o Irão ou a Rússia.
A Europa falhou à Turquia. Comportou-se como uma donzela indecisa que hesita dar o passo para o noivado mas que alimenta eternamente a esperança do pretendente com medo de o perder e acabar só. O exercício que gostava de propor, todavia, é o de tentar trazer alguns factos que ajudam a perceber a indecisão da Europa.
A Turquia tem hoje cerca de 78 milhões de habitantes – quase tantos como os 81 milhões da Alemanha. Em 2050, as projecções da ONU apontam para uma Turquia com 96 milhões de habitantes que, nessa altura, compararão com 74 milhões da Alemanha. Ou seja, a Turquia será de longe a maior potência demográfica da UE. Do ponto de vista económico, e em paridade de poder de compra, a Turquia é hoje a 17.ª economia mundial. Já a maior economia do espaço europeu, a Alemanha, é a quinta no contexto internacional. Avançando para 2050, as projecções voltam a não abonar a favor da UE. Nessa altura, economia germânica será a décima do mundo com a Turquia apenas quatro lugares abaixo. Vamos a outro tema onde é evidente a magnitude do desafio que Ancara coloca aos grandes europeus: a defesa. As forças armadas turcas, em número de efectivos, igualam a força conjunta da Alemanha, Reino Unido e França. Isto diz bem do potencial estratégico-militar deste país. Para terminar, não massacrando o leitor com números esmagadores, basta lembrar que a Turquia tem um território duas vezes maior do que a Alemanha e faz fronteira com oito países – incluindo vizinhos turbulentos como o Iraque, o Irão e a Síria. Podia a Europa, com todos os receios e caldos de galinha, dar-se ao luxo de perder a oportunidade de incluir na sua esfera de influência um país com esta magnitude e impacto no processo de globalização? Não podia. E é um erro que todos nós, europeus, de hoje e de amanhã, pagaremos muito caro.
Com a deriva populista, autocrática e radical de Erdogan a ser legitimada pelo povo turco, dificilmente os europeus recuperarão o espaço perdido. O exemplo turco é bem evidente da incapacidade europeia de falar a uma voz na actual conjuntura. É por demais evidente que uma Turquia, na nossa Europa, seria uma ameaça para os grandes. Mas o nosso projecto colectivo tem de ser mais do que a soma dos vários quintais.
A Turquia era, e na minha opinião continua a ser, fundamental na manutenção da paz Europeia, bem como para o desenvolvimento económico e demográfico do nosso espaço comum. Tal como África o pode ser. O mais espantoso é que em ambos os casos a Europa só acumula falhanços. Haverá continente ou região geográfica que tenha com a Europa relações mais ancestrais e de conhecimento mútuo do que aquela que tem o continente africano? Não. Pois seria natural que a Europa liderasse o investimento e as relações económicas com o continente vizinho ao sul. Infelizmente, não é a isso que assistimos. Enquanto cada estado-membro tenta à sua maneira desenvolver politicas de cooperação e desenvolvimento económico com África, como é o caso de Portugal através da CPLP, ou França para a francofonia do norte de África, ou ainda o reino unido com a sua Commonwealth, a China não perde tempo e numa estratégia concertada, orientada e eficaz ocupou um espaço que tradicionalmente e naturalmente seria da Europa – se esta falasse a uma voz, tivesse uma política externa planeada e, acima de tudo, se jogasse em equipa.
África será, seguramente, a maior fonte de recursos naturais e humanos para os próximos séculos. A China sabe isso – e os nossos líderes também. Mas enquanto Pequim consegue colocar no terreno uma diplomacia alinhada com a estratégia económica e política, a Europa ainda raciocina numa lógica de ‘mapa cor de rosa’, presa ao passado, a uma certa arrogância geográfica e a uma insustentável superioridade moral que a impedem de cumprir a vocação de líder legítimo das relações com África. Turquia e África, dois exemplos, dois erros, duas oportunidades perdidas.
Gestor, vice-presidente da Câmara Municipal de Cascais